4 de maio de 2005
(El Otro) Ernie Pike. Héctor Gérman Oesterheld, com Hugo Pratt e outros.
Não há outra forma de dizer isto: Héctor Germán Oesterheld foi sem dúvida o melhor escritor de banda desenhada argentino, muito possivelmente da América do Sul, e merece destaque em qualquer consideração que se faça da banda desenhada a nível mundial. Como se não bastassem no seu currículo algumas das melhores séries de banda desenhada como Sherlock Time, El Eternauta, Mort Cinder, Sargento Kirk, entre outras trabalhos menores que vão sendo agora difundidos fora da Argentina, sendo por isso quase responsável por uma espécie de Risorgimento da bd argentina entre os anos 50 e 60, é também o criador do belíssimo, politiquíssimo e já hagiográfico[1] álbum Vida del Che, com Alberto e Enrique Breccia (pai e filho), dedicado a Guevara, tão imediatamente após a sua morte como 1968, cuja história já faria um interessantíssimo livro, com o pai Breccia a enterrar cópias no jardim para não serem confiscadas...
Em 1957 funda com o seu irmão Jorge Oesterheld as Ediciones Frontera, publicando revistas como as Hora Cero (Semanal, Mensual, Extra), na qual seriam apresentadas as primeiras aventuras da personagem Ernie Pike. Oesterheld era um escritor profícuo, chegando a trabalhar em várias frentes ao mesmo tempo, com os mais variadíssimos desenhadores, entre os quais Solano Lopéz, Hugo Pratt, Alberto Breccia, Dino Battaglia e, mais tarde, Muñoz. Se são mais propriamente os seus escritos tardios, com um grosso sublinhar nesse aspecto em Che e a segunda parte da série El Eternauta[2], iniciada com López em 76, que Oesterheld assume de uma vez por todas as suas posições políticas de esquerda, algumas das suas atitudes são já visíveis nas obras anteriores. As quatro filhas, como muitas jovens do tempo, associavam-se aos movimentos socialistas de então, e chegaram a integrar-se ao grupo Montoneros, guerrilheiros socialistas que apoiavam o Peronismo (mesmo contra o próprio Peron e depois o regime de general Videla) em 1970, cujas acções se exacerbariam na luta contra a ditadura militar argentina, chegando mesmo a cair na clandestinidade, já que o movimento levava a cabo acções violentas (assassinatos inclusive). Apesar de Oesterheld não ser um “Peronista”, era sim um homem livre, de ideais de esquerda, o que não o impedia de ser amigo pessoal de Jorge Luís Borges; seja como for, pelas suas ideias, e sobretudo pelo livro dedicado a Guevara, será “preso” em 77, e nunca mais é visto. Da sua família próxima, apenas a mulher, Elsa Sánchez, sobrevive.
Oesterheld parece ter posto a uso todo e qualquer género típico da bd – ficção científica, western, histórica, etc. – mas apenas como meio para o seu fim eterno: demonstrar todas as dimensões que pertencem ao humano e que tanto servem para nos unir como para nos separar. O Sargento Kirk, por exemplo, pode ser visto como o primeiro antiherói de Oesterheld, pela transgressão dos princípios do género do western.
Quanto a Hugo Pratt, presumo que o criador de vários dos álbuns mais importantes e famosos alguma vez feitos dispense apresentações. Corto Maltese é uma das grandes personagens da história desta arte, pelas mais variadas razões e, goste-se ou não, é imprescindível ao entendimento da sua evolução. Oesterheld já trabalhara com Pratt em 1952 para a revista Misterix, com a série Sargento Kirk[3], criaria junto a ele Ernie Pike em 57, e mais tarde, voltaria a escrever para o artista italiano, com Ticonderonga. Pratt e Oesterheld entrariam em desavenças autorais que os levaram à separação criativa – daí que se explique alguns dos livros terem na capa apenas o nome de Pratt.
Ernie Pike é um correspondente americano da 2ª Guerra Mundial, que nos conta vários episódios da vida dos combatentes, tanto dos Aliados como os do Eixo, como ainda os que são apanhados no meio. Apesar de ter o seu nome, Pike não é propriamente o protagonista, mas antes um narrador visível das outras personagens. É baseado na figura real de Ernest Taylor Pyle, ou “Ernie”, correspondente norte-americano desde 1935, e depois da entrada dos EUA na 2ª Grande Guerra, correspondente de guerra, cujas crónicas muito pessoais lhe garantiram ser publicados numa centena de jornais, e um exército de fãs na altura. Algumas das suas crónicas influenciaram escritores literários, chegaram a levar à aprovação de leis relativas à soldadesca, e outra curiosidade é o facto de ter sido ele quem “inventou” o termo “G.I. Joe”, aplicado a qualquer soldado americano, anónimo e à partida sem relevo[4]. Ganhou o Pulitzer em 1944, e morreu na batalha de Okinawa de forma estúpida no ano seguinte (já a batalha tinha terminado, a guerra também, mas faltavam uns quantos atiradores furtivos...); muitas das suas crónicas e livros estão acessíveis por edições recentes.
Desconheço de todo até que ponto as histórias contadas pela dupla Oesterheld-Pratt são imediatamente relacionadas com as crónicas de Pyle, mas as histórias que nos ocupam aqui também sublinham, acima de tudo, que se existe heroicidade, ela não é feita em nome da bandeira, mas antes em nome do companheirismo: apesar de tudo, de ser uma guerra e se prestar à lógica do “matar para não morrer”, as personagens acabam por seguir uma determinada ética, e perpassa por muitos episódios uma espécie de deusa Nemesis ao contrário: em que alguém é perdoado numa hora de maior violência por um pequena acção que fizera, até mesmo imponderadamente.
Oesterheld não escolhe uma linguagem propagandística, as coisas não são ditas tão directamente como em Harvey Kurtzman (Two-Fisted Tales e Frontline Combat). Os princípios do respeito pelo ser humano são imanentes, não imediatos. Nunca se é maniqueísta nestas histórias. Algumas são um retrato de como relações mesquinhas sobrevivem à circunstância da guerra, outras de como elas são ultrapassadas, outras em como a heroicidade e o patriotismo – o patrinhoteirismo, diria Eça – se apaga com o amor pelo próximo (mas de uma forma mais profunda que aquela das religiões), as possíveis alianças entre os códigos de honra entre gentleman ou entre verdadeiros guerreiros (nos momentos mais macho de Pike). Por vezes, outras estórias, como a Destinos Cruzados, sobre uma americana encontrando dois “homens da sua vida” no centro dos conflitos, parece partir das premissas de uma comédia de situação de precisamente “destinos cruzados”, quase similares a de um filme de Frank Capra ou Howard Hawks.
O texto é por vezes redundante em relação à acção descrita pelas imagens, o que se desculpará por Oesterheld escrever para muitas séries ao mesmo tempo e estar a contar a história completa antes das imagens. De acordo com Dominique Petitfaux, na introdução francesa (Casterman) a Ernie Pike, era Oesterheld quem escrevia as histórias (o tom oral, “jornalístico”) mas Pratt intervinha bastante. Seria um dificultoso mas não impossível exercício tentar destrinçar a quem cabe os domínios de construção destas histórias, mas lendo quer o que Pratt veio a fazer sozinho em datas posteriores quer lendo as outras “crónicas” de Pike desenhadas por outros autores (e demais histórias de Oesterheld), talvez seja ainda mais simples do que parece à partida. Pratt parece melhorar de facto os guiones de Oesterheld com a sua arte, já que os episódios desenhados por Breccia e López (a série chegou a ser desenhada por outros artistas, para além dos mencionados, também José Muñoz; edições argentinas planeiam disponibilizar tudo) são um pouco mais palavrosos. No entanto, toda a ética e inventabilidade humana pertence a Oesterheld.
Pratt viria a criar, já depois de sair da Argentina, em 1960, duas histórias sobre a II Guerra Mundial para a série War Picture Library da Fleetway (Reino Unido), as quais foram publicadas em Portugal a partir da edição italiana[5]. Estas histórias revelam-se bem diferentes das de Pike, com um heroísmo mais primário, macho, até mesmo abjecto, já que os soldados se comprazem ao máximo com a morte dos inimigos (recorrendo a todo o tipo de artimanhas). A segunda história do livro em português conta a história de um tanque, que poderia lembrar uma escrita por Oesterheld para Pratt (Los Dos Amigos), mas ao passo que a do repórter terminava com uma trágica amizade, reformulando a idiotice dos conflitos de guerra e dos enganos que ela traz, a de Pratt parece viver de um prazer em discorrer sobre armamento (os prefácios de muitos álbuns do argentino vivem dum prazer pouco oculto nas armas).
A preocupação, parece, uma vez que a única personagem regular é o repórter Pike (que não participa nos enredos) – que, como um exponencial Tintin, parece menos escrever reportagens e interagir que servir de catalisador ao contar a acção – obter um personagem que sirva de sábio, quase um filósofo do humanismo, imanente a todos: as nacionalidades passam por todos os campos, de ingleses, americanos, brasileiros, italianos, alemães, senegaleses, japoneses, chineses, franceses... Os pretos são tratados, porém, a maioria das vezes, como selvagens e brutos. Não quero chegar a dizer que há aqui um velado racismo, mas é sintomático que as personagens negras aparecem como representantes de civilizações e/ou culturas ainda pouco associadas à polidez da cidade.
Essa universalidade é procurada através da ausência de introduções circunstanciais: isto é, joga-se com a cultura do leitor para que este entenda que palcos da 2ª GG estão em jogo, e que forças se opondo. Por outro lado, apesar dessa aparente desincorporação de um espaço real, a veracidade das crónicas é acrescida pelo facto de se repetir a fórmula “estou a ser fiel ao que me contaram”, a um só tempo sublinhando a exactidão das mesmas e integrando-as numa longa tradição de contos, quer da literatura fantástica (onde se integrariam nomes como os de Poe, Borges, Eco), mas também os de outras vertentes, desde Heródoto a Rustichello da Pisa. O narrador, logo no primeiro episódio, ao dizer que estas crónicas nunca seriam publicadas na Time ou na Life (e mais tarde, num episódio desenhado por Solano López, vemos mesmo um editor a recusar uma peça de Pike, que nos é contada), mas contando-as à mesma, torna o seu poder ético e veracidade num grau superior àquele que teriam se fossem encontradas nessas publicações mainstream. É mais um sobejamente conhecido recurso retórico a aliar ao apelo pela benevolência dos leitores.
Alguns dos aspectos retratados nestas crónicas são muito avançados para a época e não têm apenas a ver com o facto de retratarem pessoas de ambos os lados das barricadas: em A Grande Marcha, o soldados dizem que a guerra não passa de um “espectáculo”. Guy Debord só viria em 1967, mais de dez anos depois.
A construção de cada história parece obedecer a uma espécie de catálogo de associações e emoções humanas. Não há uma situação repetida em todas as crónicas de Pike. Um caminho paralelo a estas histórias é El Cuaderno Rojo, nas quais Pike “conta” episódios passados com crianças (desenhados por López). Mas haverá outras formas de entender estas histórias? Um dos episódios (Un Teniente Alemán) envolve um cargueiro inglês chamado “Lacinia”, que é bombardeado por um submarino alemão, o qual resgata os sobreviventes e depois é atacado - não obstante o protegerem os seus próprios prisioneiros - por um bombardeiro americano “Liberator” (tipo de B-52). Pensando que “Lacínia” é o nome de uma cidade italiana que dá também um dos epítetos de Juno, e “Liberator” um dos apodos de Júpiter, a leitura de um aparentemente superficial encontro pode imediatamente assumir uma dimensão analógica interessante. Obviamente que essa leitura só se torna iluminadora do texto se de facto uma leitura desse tipo se manifeste nos restantes textos, e exerça uma forma de atenção sobre todos eles que se demonstre válida. Será interessante estudar os episódios baseados totalmente em casos verídicos (em Pyle), os que misturam invenções com factos reais, ou os que são totalmente falsos (isto é, literários, como a breve adaptação do conto de Jack London – citado! – de Lost Face). Mas essa caça a referências e fontes pouco adiantaria à moral da história e à investigação dos seus mecanismos formais.A arte de Pratt tem muitas soluções soberbas, como a mistura de tinta-da-china e aguarelas a preto (as edições a cores, como a da Norma, desvirtuam por completo a arte original), chegando por vezes ao nível da abstracção: em Guardia Nocturna, os traços que servem para erigir uma densa e pesada selva atingem um grau belíssimo tal que lembram os do isolado Wu Zheng (séc. 13), mestre do subgénero da pintura chinesa do ciclo da vida do bambu, naquilo que foi o mais feliz encontro entre caligrafia e pintura (afinal, uma sublimação do que a bd também é, encontro entre escrita e desenho). No entanto, há problemas quanto à narratividade das imagens, como os constantes “salto no eixo” errados, que provocam alguma disrupção na sua leitura. É uma pena não ter tido acesso a edições completas ou calendarizadas, de forma a poder apreciar a evolução das escolhas e experiências gráficas e narrativas da dupla (e dos outros), mas sobretudo de Pratt, na sua segunda fase da carreira.
[1] Não seria preciso ser Jan Baetens a utilizar o termo, mas o seu ensaio – incluído no título da bibliografia - sobre este livro é indispensável a um bom entendimento do valor cultural e político que este álbum de banda desenhada teve na construção da imagem do Che nos anos vindouros.
[2] El Eternauta, por exemplo, foi distribuído com o diário Clarín, numa daquelas colecções como e fazem cá no burgo: Clásicos de la Biblioteca Argentina. Representa algo a junção de autores como Borges, Sábato e Cortázar a este álbum de bd... Uma abertura de espírito que por aqui falta generalizar.
[3] Editado em Portugal, em dois volumes, pela Bertrand, em 1986. O nome de Oesterheld não aparece em ldo algum, já que estas séries foram feitas a partir das italianas. Um primeiro volume de Ernie Pike chegou a ser traduzido e paginado para a mesma colecção, mas à última da hora, infelizmente para nós, foi cancelado.
[4] Termo que seria mais tarde heroicizado e utilizado para o nome de mais um super-herói de guerra.
[5] Relatos de Guerra (Edições 70).
Este artigo é feito com material de apontamentos subsequentemente utilizado num artigo publicado na Vértice, sobre banda desenhada e guerra. A capa corresponde à edição recente, de 2004, de 2 vols., pela Ancares (Argentina) com os "Pikes" de Breccia e López.
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