7 de julho de 2005
Ice Haven. Daniel Clowes (Pantheon books)
Através de vários registos, acompanhamos a vida de uma mão-cheia de personagens díspares de uma pequena cidade norte-americana. Vários registos, porque não estamos perante um livro organizado linearmente, mas através de diversos episódios, cada um num estilo diverso. Mesmo um autor mais mainstream como Alan Moore já havia brincado com a uma certa profusão de registos e de pastiches de bds existentes para contar uma única história. Talvez as primeiras raízes possam ser encontradas nos experimentalismos pontuais de Watchmen (DC), como a bd dos piratas, os textos integrados, etc., depois mais estruturalmente, sobretudo em Supreme (Wildstorm)... Ware é também um cultor deste registo múltiplo. Clowes já em anteriores livros seguia esta compartimentação em pequenos episódios, quer em Like a Velvet Glove Cast in Iron quer em Ghost World, mas aqui assume-se cada episódio com uma linguagem absolutamente diferente da anterior: um episódio é narrado pelo protagonista, com recursos a flahsbacks, outro é apresentado como uma recriação de um livro fictício, outro como gags clássicos de jornais, outros como diegese linear, passando por vários registos de impressão, etc. Há momentos em que essa alteração de estilo interno é feita mesmo no interior de um episódio, como em David Goldberg is Alive, em que os habitantes de Ice Haven aparecem em versões “abonecadas” (p. 75 desta edição), lembrando a estratégia japonesa chamada de chibi (vejam o glossário do club otaku).
Clowes utiliza esta compartimentação para evidenciar aspectos de cada personagem cujo único ponto de relação em comum com as restantes é o espaço da cidade em que se deslocam e vivem, ou melhor, tentam sobreviver. Mas sobrevivência em relação a quê? À vida de merda de sempre... Ou se quisermos ser um pouco menos brutos e mais patéticos, citemos a “insustentável leveza do ser”, ou “a necessidade de consolo é impossível de satisfazer”, ou, enfim, “a vida de todos os dias cansa”. O drama em torno do desaparecimento da criança é mais uma justificação (cá está, McGuffins...) para Clowes se poder dilatar sobre os chãos sentimentos da humanidade do que como nó organizativo de uma estória coesa.
Quase todos os detalhes da vida de cada personagem imbricam com os de uma outra, por vezes directa por outras obliquamente. O mesmo sucede com frases, pensamentos, farrapos quaisquer que significarão algo mais marcante num outro contexto. Sem dúvida nenhuma que o conceito de “tessitura” assume aqui uma importância central, em Ice Haven – mais que noutras “novelas” de Clowes, como David Boring ou Like a Velvet...
Se bem que de um modo mais diluído, e menos intensivo do que Spiegelman em SNT, Clowes também recorre à nossa memória de uma história da cultura popular, sobretudo dos comics – linha, seja como for, recorrente da sua obra, para trazer mais uma dimensão de leitura a toda a diegese.
Nota: este livro é um “repackaging” da sua revista irregular Eightball no. 22, publicada pela Fantagraphics em 2001. As únicas diferenças são o formato (cada página da revista passa a duas no livro), dois a três episódios extra no livro, e um ligeiro rearranjo da última parte, com um crítico falando do próprio livro... Haveria aqui algo a debater em relação a esta personagem que Clowes usa para brincar com os críticos, “as moscas nos rabos dos cavalos”, desde a auto-consciência do autor em relação ao seu próprio trabalho, até aos erros de interpretação que misturam os factos da vida de um autor com sua a arte, até à auto-publicidade, auto-censura, estado das coisas nos E.U.A. em relação à crítica e recepção da banda desenhada, etc. Mas fiquemos por aqui, que já sinto a cauda do autor a enxotar-me.
Sem comentários:
Enviar um comentário