6 de agosto de 2005
Anita O'Day & Chet. João Paulo Cotrim, com Pedro Nora e João Fazenda (Éditions Nocturne/Corda Seca, distr. Público)
Não é meu papel (nem tenho conhecimentos para tal) ser crítico a colecções de música, mais especificamente de jazz, mas não me parece que esta colecção – se continuar congénere à original francesa das Éditions Nocturne (que se dedica a edições do género, mesclando cinema e música a uma divulgação via bd), que atingiu quase uma trintena de títulos – seja a mais óbvia em termos de escolha dos músicos retratados, passando pelos nomes incontornáveis do costume mas fazendo apostas incomuns e felizes. No entanto, no que diz respeito à escolha de autores de banda desenhada e das pequenas narrativas complementares aos volumes, parece ter-se feito sobretudo uma aposta numa “segunda divisão” ou “de honra”, com autores menos famosos, mas também menos interessantes, sem desfazer no nosso Pedro Zamith, cujo volume foi editado em França igualmente.
Por cá, a maioria da colecção até à data tem sido a tradução dessas edições (9 volumes, inclusive a de Zamith). A excepção felicíssima, a differance, é o gesto da editora portuguesa, Corda Seca (responsável também por edições de divulgação, inclusive uma colecção de fado ilustrada por Pedro Nora, refeita na colecção O Fado do Público) em ter convidado para os volumes dedicados a Chet Baker e Anita O’Day João Paulo Cotrim, acompanhado ao lápis por João Fazenda (o primeiro, 10º da colecção) e Pedro Nora (o segundo, 11º).
Já aqui falei doutros livros (ainda * e *) de Cotrim, mas este não se dirige transversalmente às crianças, mas sim a um outro público, que, sem paradoxo, acaba por ser o mesmo, isto é, os leitores e apreciadores da escrita de Cotrim. Tratando-se de uma colecção de divulgação, em que se pede para (re)contar a biografia das figuras relembradas, seria fácil cair em chavões, baixas expectativas, nulas surpresas. Qualquer dos outros volumes (até à data) é única e exclusivamente prova disso. Mas João Paulo Cotrim, consciente desse mesmo constrangimento, dá a proverbial “volta”. (Aliás, já tinha mencionado que uma das mais fabulosas capacidades de Cotrim é a capacidade de aceitar trabalhos “de encomenda”, mas ser capaz de escapar de quaisquer expectativas institucionais e presentear-nos com a sua verve e visão alargada - sem desfazer nos livros que não se inscrevem nessa categoria).
Para já, pouco interessa a cronologia – apontando-se mais para um tempo quase fora do tempo (não transcendental, por favor). Um tempo “out of joint” (Shakespeare), não sinónimo do desconcerto do mundo, mas antes um tempo que deslaça os nós (subst.) que nós (pron.) atamos com a razão, com as medidas, com as contas. Um tempo de anjos, drogas, memória, música, de aprendizagem de tudo o que nos rodeia e compõe. É um tempo que, em ambos os casos, passa à vol d’oiseau pelas vidas do trompetista e da cantora, mas sem o seu significado pejorativo comum. É como se apenas essa bird’s view fosse generosa e abarcadora o suficiente da imensidade dessas (de qualquer) vidas, acompanhadas pela música de Chet e Anita. Sublinhando com esmero e beleza esses ambiente etéreos, surgem as composições gráficas de Fazenda e Nora, sem cenários, sem espaços delimitados, sem vinhetas rectas, um rol de sems para podermos ver apenas corpos vogando numa mancha de meia dúzia de linhas e de cores suaves, com espaço para todo o fulgor do que se conta. Apesar dos percursos, idades, estratégias diferentes de ambos os desenhadores, há aqui uma irmandade qualquer de tom, que só pode ser o caminho aberto pelas palavras de João Paulo Cotrim, sempre na busca de uma exactidão lírica, na melhor das acepções: sépia de fotografias velhas em Nora, ligeiramente idêntico em Fazenda, tirando os últimos desenhos deste em Chet, que parecem representar toda a adição – em ambos os sentidos – da vida de Baker.
João Fazenda parece continuar o seu estilo mais moderno, longe idos os tempos dos seus primeiros trabalhos, com as suas linhas suaves. Pedro Nora tem apostado ultimamente num estilo mais vulgar, mais rápido talvez, mais imediato, bem diverso das suas experiências gráficas iniciais, mais experimentais. Mas, quanto a mim, e que me perdoe, pois é amigo meu, acho que parece ser mais uma aposta a nível comercial, demarcada por eventuais constrangimentos editoriais, do uma continuação da sua mais pessoal expressão criativa, já que essoutros “rabiscos” (para citar um termo técnico utilizado pelos detractores desse tipo de bd) era de longe menos vulgar e mais arrojado. Isto não é, porém, um juízo de valor dizendo que “é melhor/pior que”, nem que este é um trabalho “mais fraco”. É uma mera constatação de factos e é bom ver alguma capacidade significativa de diversidade.
Enfim, dois livros (e quatro CDs) para nos ajudar a get lost numa lonesome road, cujo horizonte é bem mais próximo do que julgamos.
Nota: Único reparo, e que dará ocasião a discussões (salutares, espero), é a precedência do nome dos desenhadores ao do escritor. Mas este é um tema controverso, pois prefiro que não se faça a distinção, indicando “desenhos de”, “argumento (!!) de”, etc., mas ao mesmo tempo percebo que onde existe anterioridade do texto deve ser isso indicado. Enfim, algo de que não há, penso, nem concordância nem eu estou seguro do que será “melhor”.
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