Usamaru Furuya teve ou tem um percurso curioso. Tendo começado a sua carreira na revista Garo, famosa pela sua aproximação irreverente e mesmo formalmente experimental à mangá, lentamente se foi aproximando de estruturas mais clássicas. Começara por Palepoli (de que se pode encontrar uma selecção traduzida para inglês em Secret Comics Japan, da Viz), que quase parecem exercícios – apesar de serem sempre pranchas divididas em quatro vinhetas, invariavelmente – através dos quais Furuya foi fazendo uma sua pessoal e possível aprendizagem, quer dos limites plásticos das suas capacidades, quer de humores, géneros, visitações de temas, etc. Segue-se o divertidíssimo Short Cuts (2 vols., também na Viz para a ed. norte-americana), totalmente dedicado à desconstrução do fetichismo em torno das “ko-gal” (as liceais japonesas), aproveitando para reutilizar temas e técnicas, formalismos e misturas de géneros. (Mais)
La Musique de Marie é uma incursão de Furuya por territórios, como já disse, mais clássicos, ou “normalizados”... Penso que uma rápida pesca por influências e pontos de ligação com óbvias referências não será um acto displicente neste caso, e bastará citar dois nomes. Em primeiro lugar, o de Moebius, cada vez mais sentido e visível na “paternidade” de certos artistas japoneses (como Taiyo Matsumoto), o que não nos deve surpreender, pois a recepção dessa grande referência da banda desenhada dos anos 70 e 80 chegou mais tarde ao Japão. Nesta história de Furuya, sente-se essa presença não só pela plasticidade das formas, os cruzamentos entre o orgânico e o biológico, o místico e o científico, mas também por um espiritual holístico, uma profunda crença na possibilidade (e não utopia) do entendimento humano global, a existência de um “sonho comum” que pode reescrever a existência do planeta.
O segundo nome é o de Hayao Miyazaki. É conhecido o amor que este artista da animação japonesa tem pelo planeta Terra (e Nausicaä estará no centro da comparação com La Musique...) e pelas lendas e contos tradicionais, quer japoneses quer ocidentais. Esses são temas centrais também no conto de uma estranha distopia futurística de Furuya. As relações impossíveis entre duas pessoas é também um pequeno detalhe que ecoa mecanismos repetidos na obra de Miyazaki.
Não quero com isto diminuir a obra do presente autor japonês a uma espécie de junção de temas provindos de dois outros autores. Simplesmente que, com uma visão ampla das produções de banda desenhada, é possível estabelecer como que “famílias”, ora de temas ora de preocupações ora de estilos, mesmo. E fazê-lo não é diminuir a qualidade, o interesse ou a validade do trabalho em discussão. Se bem que não pense ser Furuya, e muito menos com estes dois volumes, um autor particularmente inovador ou surpreendente, ainda assim é um excelente profissional e merecedor de algum crédito e aposta.
A evolução do mundo chegou a um ponto para além do qual não consegue avançar. São forças místicas que o impedem de acontecer. É como se o tempo parasse. Marie, espírito tutelar e global, unindo as várias manifestações de fé num fundo comum, está por detrás desse harmonioso e feliz impedimento. É óbvio que os homens intentam sempre todos os “mais” que conseguirem, sem contemplar os preços a pagar, e também vivem na ignorância do idílico e benevolente mundo que habitam. E um sonho concretizado custa um outro sonho destruído. O inimigo da fé não é, naturalmente, o ateísmo, a indiferença ou mesmo um antagónico ódio, mas a dúvida. Kaï, estranho jovem e único ser capaz de ver Marie nos céus quando esta passa, será a vítima dessa dúvida que o colocará na obrigatoriedade de opções que mudarão o mundo. A sua relação, que descobriremos impossível, como Phiphy, traz uma nota de humanismo ainda mais sublinhada (e que no desfecho a torna central) a todo o relato fantástico.
Uma das razões limitativas a uma apreciação mais livre do seu esforço é o facto de que estamos perante uma mera fábula ecológica com laivos de religiosidade New Age, por um lado, mas também por razões visuais. Não sou dos que pensa ser a mangá “sempre igual”, mas a verdade é que existem certos traços e técnicas que são mais permanentes e repetidos na banda desenhada japonesa do que na ocidental – se bem que essa visibilidade está mais na “invisibilidade” ou “normalidade” do que se repete na nossa banda desenhada, do que numa efectiva “epigonia” japonesa; mais, os simples números de edições, artistas, etc., em relação ao nosso “eixo” (Portugal, claro, mas mesmo a Europa e a América na equação) deixar-nos-ia envergonhados. E um desses traços, e que me desagrada, é a tipificada juventude eterna das personagens, como se apenas aos adolescentes pertencesse o mundo. Mas se em obras tão díspares como Ghost World (Daniel Clowes) ou a de Junko Mizuno isso faz todo o sentido e é diegeticamente necessário, neste tipo de produções (e o Dragon Head de Mochizuki Minetaro é um exemplo máximo) trata-se de simples complacência em relação ao público-alvo. Bom, existem atenuantes (repetidas também em Nausicaä), que passam desde tipologias de género e subgénero, questões de heroicidade (já Tintin é um eterno adolescente), de representação de ideais, etc. Mas é uma nota pessoal de geral desagrado em relação a essas opções.
No panorama criado pela colecção Sakka, já indicados outros títulos aqui, este é uma espécie de compromisso entre a aposta num interessante e arrojado autor, mas num seu projecto mais comercial.
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