
La Musique de Marie é uma incursão de Furuya por territórios, como já disse, mais clássicos, ou “normalizados”... Penso que uma rápida pesca por influências e pontos de ligação com óbvias referências não será um acto displicente neste caso, e bastará citar dois nomes. Em primeiro lugar, o de Moebius, cada vez mais sentido e visível na “paternidade” de certos artistas japoneses (como Taiyo Matsumoto), o que não nos deve surpreender, pois a recepção dessa grande referência da banda desenhada dos anos 70 e 80 chegou mais tarde ao Japão. Nesta história de Furuya, sente-se essa presença não só pela plasticidade das formas, os cruzamentos entre o orgânico e o biológico, o místico e o científico, mas também por um espiritual holístico, uma profunda crença na possibilidade (e não utopia) do entendimento humano global, a existência de um “sonho comum” que pode reescrever a existência do planeta.
O segundo nome é o de Hayao Miyazaki. É conhecido o amor que este artista da animação japonesa tem pelo planeta Terra (e Nausicaä estará no centro da comparação com La Musique...) e pelas lendas e contos tradicionais, quer japoneses quer ocidentais. Esses são temas centrais também no conto de uma estranha distopia futurística de Furuya. As relações impossíveis entre duas pessoas é também um pequeno detalhe que ecoa mecanismos repetidos na obra de Miyazaki.
Não quero com isto diminuir a obra do presente autor japonês a uma espécie de junção de temas provindos de dois outros autores. Simplesmente que, com uma visão ampla das produções de banda desenhada, é possível estabelecer como que “famílias”, ora de temas ora de preocupações ora de estilos, mesmo. E fazê-lo não é diminuir a qualidade, o interesse ou a validade do trabalho em discussão. Se bem que não pense ser Furuya, e muito menos com estes dois volumes, um autor particularmente inovador ou surpreendente, ainda assim é um excelente profissional e merecedor de algum crédito e aposta.
A evolução do mundo chegou a um ponto para além do qual não consegue avançar. São forças místicas que o impedem de acontecer. É como se o tempo parasse. Marie, espírito tutelar e global, unindo as várias manifestações de fé num fundo comum, está por detrás desse harmonioso e feliz impedimento. É óbvio que os homens intentam sempre todos os “mais” que conseguirem, sem contemplar os preços a pagar, e também vivem na ignorância do idílico e benevolente mundo que habitam. E um sonho concretizado custa um outro sonho destruído. O inimigo da fé não é, naturalmente, o ateísmo, a indiferença ou mesmo um antagónico ódio, mas a dúvida. Kaï, estranho jovem e único ser capaz de ver Marie nos céus quando esta passa, será a vítima dessa dúvida que o colocará na obrigatoriedade de opções que mudarão o mundo. A sua relação, que descobriremos impossível, como Phiphy, traz uma nota de humanismo ainda mais sublinhada (e que no desfecho a torna central) a todo o relato fantástico.
Uma das razões limitativas a uma apreciação mais livre do seu esforço é o facto de que estamos perante uma mera fábula ecológica com laivos de religiosidade New Age, por um lado, mas também por razões visuais. Não sou dos que pensa ser a mangá “sempre igual”, mas a verdade é que existem certos traços e técnicas que são mais permanentes e repetidos na banda desenhada japonesa do que na ocidental – se bem que essa visibilidade está mais na “invisibilidade” ou “normalidade” do que se repete na nossa banda desenhada, do que numa efectiva “epigonia” japonesa; mais, os simples números de edições, artistas, etc., em relação ao nosso “eixo” (Portugal, claro, mas mesmo a Europa e a América na equação) deixar-nos-ia envergonhados. E um desses traços, e que me desagrada, é a tipificada juventude eterna das personagens, como se apenas aos adolescentes pertencesse o mundo. Mas se em obras tão díspares como Ghost World (Daniel Clowes) ou a de Junko Mizuno isso faz todo o sentido e é diegeticamente necessário, neste tipo de produções (e o Dragon Head de Mochizuki Minetaro é um exemplo máximo) trata-se de simples complacência em relação ao público-alvo. Bom, existem atenuantes (repetidas também em Nausicaä), que passam desde tipologias de género e subgénero, questões de heroicidade (já Tintin é um eterno adolescente), de representação de ideais, etc. Mas é uma nota pessoal de geral desagrado em relação a essas opções.
No panorama criado pela colecção Sakka, já indicados outros títulos aqui, este é uma espécie de compromisso entre a aposta num interessante e arrojado autor, mas num seu projecto mais comercial.
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