11 de agosto de 2005
L'homme sans talent. Yoshiharu Tsuge (ego comme x)
O que nos faz adiar o inadiável? Não se trata de um oxímoro, mas uma observância de factos a que nos entregamos nas nossas vidas. Vivendo todos os dias, sendo impossível podermos interromper essa vida por uns breves momentos que sonhamos serem de descanso, ou sendo-nos impossível viver diferentes vidas, como se existisse alguma consolação na sua multiplicação, não nos podemos furtar ao que lhe surge pela frente como, não somente necessário, nem sequer obrigatório, mas intrinsecamente imperativo. Quando tomamos consciência, mesmo que quase imperceptivelmente, como se fosse um laivo de intuição que nos segredasse o que se aproximava mas não o fizesse por palavras, de algo que se aproxima com consequências irrefutáveis para as nossas vidas, fazemos tudo para que esse encontro e a subsequente metamorfose de nós próprios seja sempre “um pouco mais tarde”, um “mais tarde” indefinido... Aos poucos, por repetir esse gesto, a felicidade surge-nos como a ilusão de evitar que alguma vez esse encontro se dê. Em vez de abraçarmos esse vulto que nos parece incomportável, insuportável até, mas nos transfiguraria, é-nos mais fácil vê-lo como uma espécie de inimigo, ou melhor, um primo indesejável, que convidámos a aparecer “um dia destes”, mas esperamos que jamais apareça. E sempre se inventam desculpas para que não seja hoje, nem este fim-de-semana, que ele nos visite... “Temos tempo”, pensamos para nós mesmos.
Não temos tempo. Essa é a única – afora mais duas ou três – certezas que podemos ter na vida. Sukezô Sukegawa, o protagonista desta narrativa dividida em cinco capítulos, parece saber melhor que ninguém que não há tempo para nada, por isso entrega-se mais depressa a um devaneio mole por sonhos que jamais serão cumpridos, a uma espécie de arrastamento mole de cada dia, concentrando o seu esforço não no esforço, mas na mais leve fantasia que esse esforço permite. Não é escapista, Sukezô, porque para escapar é preciso estar-se num sítio de onde se escapa, e ele vive no mundo quase como que por acaso, fantasmando-se pelas esquinas.
Num mundo perfeito, não precisaríamos de apresentar Yoshiharu Tsuge e conheceríamos com maior intimidade a sua obra. Mas aos poucos, através de edições esparsas e dispersas vamos descobrindo o valor deste autor, grande entre os grandes, não só em termos da mangá como na banda desenhada. Esta, como arte, tem de facto os seus autores “universais”. Tsuge é um deles sem a mais tremebunda das dúvidas. O texto que acompanha esta edição é curto mas incisivo e resume parte do peso do autor. Outra fonte de informação é a Raw (inclusive nas edições mais tardias na Penguin), onde se editaram, julgo, só duas histórias (uma delas capaz de levar às lágrimas críticos “virulentos”: wink! wink! e olá!), The Comics Journal #250, os livros de Frederick Schodt, o texto de Mitsuhiro Asakawa na 9e. Art # 10, e este excelente artigo de Beatrice Marechal, que só nos amola por não termos acesso às obras citadas. Mas é-me incomportável se não mesmo insuportável querer num tão curto espaço dar-vos a amplitude de Tsuge. Seria um desmerecimento. Centremo-nos no livro que se nos apresenta. É um livro relativamente caro, mas para quem não busca satisfações e prazeres fáceis (que na bd, os há aos montes), e procura antes uma educação e uma emoção inaudita, é uma obrigatoriedade.
Logo à superfície, poderíamos dizer que O Homem sem Talento resulta da linha dos gekika, da mangá de autor, que é semi-autobiográfico, que voga pelas amarguras da falta de vontade em criar, no engano em procurar as qualidades próprias, no peso esmagador que a vida de todos os dias exerce na existência mundana de um homem. Apesar de haver quem salte de imediato à comparação, mais por paranóia do título que qualquer outra coisa, com O Homem sem Qualidades, de Musil, não poderia essa aproximação ser mais errónea. O Mann ohne Eigenschaften, Ulrich, é a criatura epíteto do século XX, o eterno adaptado, o verdadeiro Super-Homem anunciado e não “efeminado” que não poderia de modo algum herdar a Terra – mas que acabou por herdar (veja-se o texto de João Urbano, na Nada #3). O Homem sem Talento é alguém que não tem mãos hábeis para nenhum dos seus dias, que desfaz o trabalho feito, que não encontra mesura que lhe sirva. Nada disso nega a beleza que surge de momentos mais ocultos e subtis (uma sesta na neblina, as recordações de um passeio, a descoberta momentânea da capacidade em consertar máquinas fotográficas).
Uma outra possível linha temática é estabelecida com o último capítulo e terá repercussões específicas para nós, ocidentais, que vivemos num certo fascínio pela cultura japonesa – sobejamente apresentada como o epíteto do Outro. O fascínio é estruturalmente diferente, por um lado, da atracção e, por outro, do gosto. Pois a atracção é exercida apenas superficial e momentaneamente, senão intermitentemente, o gosto é algo que se cultiva com paciência, esforço intelectual e intimidade crescente, e o fascínio vive da alimentação de um certo tipo de ignorância; isto é, alimenta-se de mitos. E o Japão presta-se sobretudo a esse tipo de aproximação: veja-se o culto dos samurais, eleitos como honrados homens de batalhas de grandes valores, defensores de uma ética perdida, quando não passavam de um símbolo do exercício do poder feudal, corruptíveis e prepotentes. Se a palavra fosse traduzida por “jagunço”, já a cultura samurai (tardia, por sinal) não exerceria tanto “fascínio”.
Este último capítulo faz-nos testemunhar ainda um aprofundamento da relação entre Sukezô e o alfarrabista Yamaï, através da leitura – que aqui Tsuge demonstra, por cotejamento aos restantes capítulos, que é também literalmente uma “viagem” – da biografia e obra do poeta Seigetsu Yanaginoya. Aos poucos, mais subtil ou mais obviamente, apercebemo-nos de que é possível estabelecer uma comparação muito estreita entre esse velho monge-poeta e as duas personagens contemporâneas. Mas é precisamente nessa comparação que o contexto de cada um dos termos se consolida, em relação um ao outro, como absolutos contrastes: o que nos poderá parecer romântico e louvável numa História já tornada egrégia pela distância soa-nos a displicente egoísmo e alienação no nosso tempo.
A arte de Tsuge parece-nos pôr em questão sempre toda a tentativa em estabelecer tipologias de banda desenhada: estaremos perante um desenho realista? Minimalista? Art brut? Estilizado? Tipicamente mangá (utilizando algumas das suas estratégias sobejamente conhecidas)? Penso que sim a tudo, de forma débil. Penso que não, quando penso estarmos perante a arte de Yoshiharu Tsuge. Por exemplo, como compreender a não-representação do rosto da mulher até um determinado ponto, se não aliando essa representação apenas superficialmente gráfica à imediata e momêntanea flutuação emotiva entre ambas as personagens, uma certa aproximação a um tempo pretérito em relação ao que nos introduziu a esta diegese, e, quem sabe, a outros imperativos exteriores à obra em si (e impossível para mim, neste patamar, de os descobrir: uma imposição editorial, uma mudança na edição original, uma vontade súbita do autor em alterar a escolha...). Uma última leitura operativa será a de que esta personagem, como autor de bandas desenhadas “falhado” – perante o grande público mas não uma crítica minoritária (e não vamos entrar aqui em considerações em relação à possível identificação e aproximação do autor real, Tsuge) -, se procura uma série de soluções de emprego, tarefas, formas de ganhar a vida e sentir-se realizado perante a sociedade, não são mais do que devaneios que permitem uma experimentação de vários estados de consciência e humor e, em última instância e num movimento em direcção à obra e ao leitor, de criar condições para a representação multímoda de que esta banda desenhada (entenda-se, de Yoshiharu Tsuge) é capaz.
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