11 de agosto de 2005
Spiral-Bound. Aaron Renier (Top Shelf)
Será possível criar algo de interessante dentro das limitações da banda desenhada infanto-juvenil? Esta é uma daquelas tolas “perguntas retóricas” que apenas se colocam quando não se sabe muito bem como começar um texto, como agora, e cuja resposta, que se segue, pode simplesmente surgir como uma lista de nomes, a qual tenta, não espalmar as diferenças e colocar todos num mesmo nível, mas demonstrar a variedade das (muitas) qualidades que se descobrem nessa produção: Gustave Verbeek, Hergé, John Stanley, Carl Barks, Osamu Tezuka, Goscinny e Uderzo, Mattioli, Joann Sfar, Lewis Trondheim, Ziraldo, e um gigantesco Etc.
Mas que acontece quando um autor pretende criar um livro infantil mas no seio de uma produção independente? A Top Shelf publica um catálogo muito variado, quer em termos de géneros, propósitos, estratégias comerciais e, claro está, qualidade. Alguma banda desenhada de cariz universal, em termos de leitorado, não é uma novidade nesta editora: poder-se-ia falar sem dúvida de Owl, de Andy Runton, alguns dos títulos de Kochalka, o Goodbye, Chunky Rice de Craig Thompson, e de Mawil Witzel, Beach Safari. Esta aposta num título de um novo autor não surge, portanto, como surpresa.
Uma das comparações que a própria editora faz a Renier é com Richard Scarry, que é conhecido dos portugueses mesmo que não lhe conheçam o nome. Mas essa comparação é apenas feita a nível superficial, isto é, por utilizar animais semi-personificadas (vestem-se como humanos, bebem café latte como humanos, mas esgaravatam o solo, voam ou respiram debaixo de água conforme a espécie a que pertencem) como personagens. A um nível narrativo, acho que se aproxima mais dos imaginários suburbanos de um Bushmiller (Nancy), John Stanley (Luluzinha), C. Thompson (Chunky Rice), ou até de um Steve Weissman, em que são as crianças que imaginativamente fazem criar os mundos que se erguem à sua volta. Para além disso, longe estamos do tempo da banda desenhada como algo somente infantil (algumas vez o “somente” foi?), ou como algo sempre “dos 7 aos 77”, mas isso não significa que não possam surgir de vez em quando bandas desenhadas criadas para um público bem mais vasto, que abranja o público infantil, de uma excelente qualidade e apreciável por todos nós. O grande último exemplo disso, na minha opinião, foi a série Bone de Smith, ou as várias francesas da Poisson Pilote/Dargaud.
O que é surpreendente é a qualidade sustentada com que Renier consegue manter 178 pranchas nesta sua primeira obra. Há um mistério, uma cidade com segredos inteligentemente escondidos a cada esquina, paixonetas adolescentes, uma banda na moda, influências variadíssimas de uma série de imaginários... A escolha por protagonistas femininas – uma coelhinha e uma... passarinha – não surpreenderá a quem leu os nomes de Nancy e Little Lulu acima, e a variedade de espécies mostra alguma criatividade em relação à tão gigantesca tradição que o antecede (que tanto pode começar nas fábulas gregas como em Kenneth Grahame ou Mary Tourtel, ou na banda desenhada passando por Disney e Walt Kelly, por Macherot, por Vilhelm Hansen – o Petzi – etc.).
A planificação do livro é clássica, convencional até, mas mantendo sempre uma leitura sedutora e nunca claudicante nos seus mecanismos. O arranjo gráfico do livro em forma de caderno escolar de argolas (daí o título) é um jogo de várias leituras: trata-se das notas de Ana, a protagonista, mas também da descontraída aproximação de Alex Renier à produção do seu livro, e ainda uma expressão que aponta para a aventura que retrata (qualquer coisa como “entregue a uma espiral”). Como disse, podemos estar longe dos tempos de revistas dos “7 aos 77 anos”, mas nada nos impede encontrar livros que interessem leitores dos “8 aos 80”.
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