11 de agosto de 2005

Tricked. Alex Robinson (Top Shelf)


Houve um amigo meu que se referiu a este novo livro de Alex Robinson como “altmaniano”, mas não o disse sem alguma ironia. Se bem que se repete, em relação a Box Office Poison (B.O.P.), um desejo em acompanhar a vida de uma mão-cheia de personagens que nem sempre convivem proximamente, o peso da estruturação narrativa em Tricked é tão visível que acaba por romper alguns outros valores que poderiam emergir.
Em B.O.P., era claro estar Robinson em busca de soluções, e ao longo das páginas somos testemunhas do seu processo estocástico, apalpadelas, recuos (especialemnte se se comparar a edição de comics e o trade paperback); já em Tricked parece ter existido uma planificação inicial da qual não se desviou, e essa linha tensa é que torna visível o peso de que falei.
Estarão todos familiarizados como as repetidas utilizações da parte de jornalistas, supostos “críticos”, leitores, opinadores e lerbdbloguistas da palavra “realismo” ou “realista” para este ou aquele livro, por um lado, ou ainda de “minimalista”. O problema das teorias de géneros ou generalizações de técnicas e/ou estratégias gráficas é que muitas vezes não se aguentam face a exemplos concretos da produção de banda desenhada.
Quando se fala em “realismo” estar-se-á a falar em relação ao desenho? Assim sendo, Hal Foster, Julio Ribera, Frank Quitely ou até Uderzo são “realistas”. Ao passo que John Porcellino, Marjane Satrapi, Marcos Farrajota e Alex Robinson não o são, pois os seus desenhos representam corpos humanos que não têm, para além dos contornos e princípios gerais, qualquer tipo de proporção “realista”. Mas o que se passa nessa consideração é um terrível desequilíbrio conceptual: não se deveria falar de real, mas antes de referencial. Pois real são todos: afinal, existem enquanto obras de banda desenhada! São legíveis, observáveis, consumíveis. Existem. Já a sua relação referencial é que é analisável, e importa mais as relações que as obras estabelecem do que a espécie a que supostamente pertencem (que sempre se alterará conforme os pressupostos do crítico, as modas, a História). Por essa direcção da referência, entenderemos que, não obstante os desenhos do primeiro grupo de artistas ser de facto mais próximo de um regrário clássico de representação (proporção interna das figuras, perspectiva, sombras naturalistas, etc.), não serão as aventuras de um belo príncipe nos tempos mitificados do Rei Artur, um explorador espacial em busca da mulher dos seus sonhos (literalmente), o mais famoso grupo de mutantes em spandex, e um duo de pilotos de caça franceses em rambóias cómicas que mais estarão próximos do nosso universo de todos os dias. Por outro lado, apesar aos desenhos do segundo grupo poder faltar toda e qualquer proporção natural, não faltará harmonia, e mesmo que King Cat Comics, Poulet aux Prunes, Bebedeiras e Duprês e Tricked não espelhem exactamente episódios das nossas vidas pessoais, certamente existirão pontos dela que se encontrarão com as desses livros. Se preferirem, o segundo grupo é mais “realista” que o primeiro.
Quanto ao "minimalismo", estou seguro que poucos dirão que Alex Robinson pertence a essa categoria, mas quando se revêem as inúmeras vinhetas da personagem delineada contra um fundo absolutamente branco (ou negro), a silhueta da personagem vogando no nada, ou o apagamento de traços fisionómicos (os olhos, toda a face) em determinados pontos da narrativa, pergunto-me até que ponto se podem utilizar esses termos mais genéricos.
As opções gráficas de Robinson em apresentar personagens com traços fisionómicos simplificados pode não criar os mais belos desenhos para se contemplarem, mas aproximam-se daquela “grafia” de que muitos estudiosos se referem, e que torna o livro extremamente legível e aprazível de folhear. Mais, permite a Robinson, de uma forma espontânea, poder mostrar alterações de humor, de moral e até recuos e avanços no tempo, dessas mesmas personagens. Mas os problemas que possam surgir com os desenhos de Robinson são equilibrados no livro por outras soluções – que por serem extremamente óbvias não são por isso menos válidas – do arranjo das pranchas: molduras “flutuantes”, vinhetas fora de um eixo central imitando o movimento retratado, escalas diferenciadas, balões de diálogo ou caixas de narração invertidas, tombando, sobrepostas, texto mínimo e/ou ilegível, grandes planos, vinhetas “mudas”, focalização intercalada, etc. E essa catadupa de estratégias não emerge como uma espécie de catálogo de técnicas que tem de pôr a uso para demonstrar o seu engenho, já que toda e qualquer “opção” está coadunado ao passo diegético a que se aplica. Mais uma vez, reforçando a legibilidade e o “realismo” das acções de Tricked.
O elenco é, como em B.O.P., muito diverso – quase diria “estudado”, como as séries televisivas, procurando personagens diferentes com as quais todos se possam identificar (concorde-se ou não com essa teoria psicologista): uma estrela de rock, um fã desequilibrado, uma intern com sorte mas com alguns princípios morais, um par homossexual, uma gordinha afável, um trintão falso, uma filha em busca do pai, etc. aos poucos, a rede entre elas vai se complexificando, uma pequena valsa de encontros e relações cortadas, diálogos com “o sabor da vida” e esses clichés do costume. Todavia, repito-o, a estruturação dos acontecimentos acaba por ser demasiado visível (por exemplo, o destino da personagem de Ray não parece senão o correlato da pouca empatia que o autor lhe parece querer atribuir), o desenlace demasiado afastado do tom do resto do livro, quase como se tivesse sido decidido pela comissão editorial e não o autor, e a contagem decrescente dos capítulos sublinham em demasia a “tensão” que nos vamos apercebendo ter de acontecer.
Pouco subtil nesses aspectos, acaba por atropelar os outros ângulos, mais interessantes, pelos quais Alex Robinson vai conquistando leitores.
Adenda: ainda em relação ao "realismo"... Devemos mesmo rever esse tipo de categorizações, colocando em cheque todos e quaisquer pressupostos herdados. Mais um exemplo: o "Pato Donald" de Barks pode não ser "realista" em termos de imagem - não temos bico, não andamos sem calças, não saltamos de pernas abertas quando estamos irritados; mas em termos de alma, não serão a esmagadora maioria das suas histórias mais próximas do nosso "real", do "quotidiano", do que, por exemplo, qualquer dos trabalhos fotorealistas de superheróis de Alex Ross?Posted by Picasa

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