11 de agosto de 2005
Vários títulos. Yoshihiro Tatsumi (Vertige Graphic + La Cúpula)
“Cadáveres adiados que procriam”. Seguramente conhecerão esta conhecida frase de Fernando Pessoa. Eis o tema que me parece surgir a cada história de Yoshihiro Tatsumi, eis o nome que parecem carregar todos seus protagonistas.
Tal como Osamu Tezuka é invariavelmente apontado como o inventor da mangá moderna (da banda desenhada moderna no Japão), também Tatsumi é indicado como o responsável – dentro destas generalizações que tornam uma só pessoa responsável por uma transformação profunda de qualquer coisa, atitude típica de uma Velha História, por um lado, e por outro de uma reificação do Herói, própria destas bandas – do advento de uma mangá mais adulta, realista, “alternativa”. Tatsumi chegou mesmo a inventar um neologismo, de que fez sua missão divulgar, influenciar outros, etc.: “Gekiga” (proponho, desde já, a grafia gekigá em português), usualmente traduzido por “imagens dramáticas”. No entanto (cf. glossário no clubotaku.org), este é um termo em desuso no Japão e que se presta aos abusos típicos de outros, como “graphic novel”. É inegável, porém, que estamos longe de uma manga dirigida a um público infantil, ou mesmo juvenil, ou a qualquer dos temas que tipificam os escapismos também próprios da maior indústria de banda desenhada do mundo (e quantidade não significa nada mais, como se sabe...).
Parece estarmos num momento decisivo em (re)descobrir uma produção mais interessante de mangá. Não obstante o tempo que demorou ser-nos acessível estoutro tipo de trabalho, parece haver um certo concerto em nos franquearem as portas de acesso: nos últimos dois anos, as baterias editoriais em França, Espanha e Estados Unidos começaram a publicar traduções dos curtos relatos de Tatsumi, que agora nos ocupa. Enquanto que a Drawn & Quarterly já havia publicado uma das histórias na sua revista homónima (no. 5) e está prestes a iniciar uma colecção de livros da sua obra integral, já a Vertige Graphic e a La Cúpula editavam vários volumes (3 a primeira, 2 a segunda). A comparação das estratégias editoriais, a tradução, as apresentações, as selecções, dessas edições levarão a algum grau de entendimento da dificuldade que será em se ser objectivo na translação da mangá para as nossas (ocidentais) páginas.
Vejamos a história que se encontra já traduzida em inglês, espanhol e francês, cujo título original é “shiikú”, substantivo aplicado à “educação” ou “criação”, usualmente de animais de estimação, e traduzido respectivamente por Kept, La Caseta e La Nourrice. A opção em manter a mesma paginação e orientação de leitura japonesa (opção francesa) é a única que parece apostada em não exercer violência na arte original, mas as outras opções não se modo algum mal-vindas. Simplesmente leva-nos a estas questões sobre edição, que ficarão sem resposta, precisamente pela liberdade dessas opções. O protagonista não diz uma única palavra, somente ladra numa vinheta. Mas não estamos perante uma alegoria, nem perante uma parábola de Kafka, nem um conto sobre a loucura. Estamos somente sendo testemunhas de a que é que o desespero e a falta de orientação humana pode reduzir um homem. O sofrimento humano poderá possuir muitas feições, mas é como uma dessas máscaras Noh que o mestre escultor tenta criar numa das histórias, que só consegue ser criada pela morte, e apesar dos jogos de luz lhe darem a ilusão de vida, está sempre petrificada num esgar inflexível, um sorriso de Gioconda, belo mas frio, magnífico porque em silêncio.
Os desenhos simples, abonecados, de Tatsumi só superficialmente parecem convir a histórias calmas e simples. Bem pelo contrário, e apesar dos dramas apresentados nunca se tornarem histéricos, explosivos – nisto parece ter influenciado muitos autores futuros, de várias gerações, de Taniguchi a Kiriko Nananan – são negras as tempestades que se desenrolam nos peitos das suas personagens. Apesar de Tatsumi ter “limpo” as suas histórias dos normais trejeitos e mecanismos espectaculares de mangás mais comerciais, um ao deixa de utilizar sobejamente é mostrar as personagens a olhar para cima e para o lado, com os corpos virados para nós (espectadores-leitores), mas vendo o que se passa “atrás” deles. Esse olhar é como um olhar por cima dos ombros, para trás, que tanto abarca o espaço em questão como um tempo ao qual é impossível retornar e que ergue uma espécie de muro invisível e mudo de uma qualquer situação impossível de remediar. É também um olhar de acossado, impelido inexoravelmente para um desfecho qualquer, raramente “feliz” e nunca turbulento. Podemos falar de “desenlace”, de “resolução” ou simplesmente de “fim” nestas histórias, mas jamais em “clímax”. O seu auge é sempre um understatement.
Para além da frase de Pessoa, há duas outras frases feitas que se parecem alojar em perfeição com a obra de Tatsumi. Mais vale só que acompanhado, por exemplo, apesar das suas histórias demonstrarem que estamos sempre, sempre, rodeados por outros, mas que as únicas realizações possíveis, só o seriam na maior das solidões, e mesmo assim seriam meras ilusões. E (partindo duma frase sartriiana na edição espanhola) o inferno são os outros, mas somos sempre nós apenas que cumprimos as suas penas.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, que me emprestou estes três volumes.
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