25 de outubro de 2005

Vários fanzines. Marco Mendes & Miguel Carneiro, amigos (autoedição)


Apesar deste ser um fanzine singular, talvez não incorra no erro de o colocar no seguimento dos outros três anteriores, Paint Suck’s, Lamb-Hãert e Hum, Hum! Estou a ver... (aliás, corroborado pela capa deste mesmo fanzine, como podem confirmar). Nem em considerá-lo como palco de experiências gráficas e de expressão, ou laboratório, a outras edições futuras, uma vez que a mesma equipa se prepara para lançar uma nova publicação, em moldes menos “fanzinistas”..., a Cospe Aqui, com colaborações de mais artistas nacionais (Janus inclusive) e internacionais (o famigerado Mike Diana). Nada disto implica uma minha consideração de “melhorias” ou “evoluções”, como se o fanzine de nada servisse senão “tentativas”, “experiências”, “brincadeiras”. Insisto nos mesmos pontos, sempre.
Aliás, asseveram os mentores do(s) projecto(s), Marco Mendes e Miguel Carneiro, que “o que nos movia era a vontade de compilar desenhos, histórias e outros trabalhos, que se encontravam “perdidos” em casa e nos ateliers de alguns amigos nossos”. Nada de novo a Oeste, em termos de fanzines. E coligir ruínas para erguer novos e brilhantes edifícios não é tarefa irrealizável, de Piranesi a Walter Benjamin, e passando aos novos “Gabinetes de Curiosidades” que pululam nas artes visuais e mesmo na banda desenhada (sendo o fanzine o seu privilegiado território).
A nucleização natural destes meios tem a Faculdade de Belas Artes do Porto como ponto agregador, mas sobretudo o “desencantamento com a realidade do meio artístico local\nacional e internacional, que nos deprime”. Ou seja, a toda uma costumeira “depressão jovem urbana” muito arreigada aos fanzines, aliam-se preocupações bem mais vastas e informadas num contexto estético complexo. Esta atitude não é, ainda assim, surpreendente, e recorda, entre nós, a experiência de Alice Geirinhas, João Fonte Santa e Pedro Amaral, d’A Vaca que Veio do Espaço e A Facada Mortal, também com conexões subterrâneas a uma certa veia da arte (sua) contemporânea. Notável num grupo de amigos unidos pelas bandas desenhadas (e estudo das artes visuais) que se reagregaria mais tarde como colectivo artístico, os Sparring Partners.
Este outro grupo também se move contra um certo “bom comportamento”, não por uma razão de choque bacoco, mas pela franca irritação que sentem face a... “conformismos moles”, se me permitirem que cite um dirigente político (sem com isso vos permitir fazer ilações políticas mais gerais)? Aceitemos, pois, mas de imediato se sente que se a irritação é natural nas relações do mundo da arte contemporânea portuguesa (e suas danças galerísticas, museológicas, institucionais, críticas, premeísticas e apoiísticas, publicitárias e etc.) a reacção tomada é um tanto ou quanto “fora do penico”. Ok, João Marçal faz uma piada porno-escandalosa com a obra de Robert Smithson... E então? Será que crêem, de facto, que o gesto que o fanzine tenta criar chega sequer às margens desse mundo, ou simplesmente atrai quem já está nessas mesmas margens e partilha do mesmo pensamento? Nesse sentido, não posso senão entender esse objectivo como francamente falho. Seja como for, vivemos um tempo com circunstâncias de produção e circulação das artes demasiado fluidas e maleáveis (resta saber como), para que este tipo de crítica “geral” ao “estado das coisas” esteja de facto a dirigir-se a algo em concreto. Soa mais a ressentimento mal colocado. Também os Red Hot Chili Peppers diziam que jamais tocariam na MTV e veja-se onde acabaram...
Mas se se desligar a produção destes fanzines desses objectivos ciclópicos (enormes e de um só olho) que os próprios autores parecem querer fazer passar, e os olharmos enquanto portadoras de valores que lhe são próprios, então estaremos um francamente bom grupo de fanzines portuguesas. Vejamos o trabalho dos dois “mentores” com mais atenção.
O trabalho de Marco Mendes é o mais surpreendente e mais interessante de todos, a meu ver, sem com isso diminuir o valor dos restantes. O seu desenho é realista como não se costuma encontrar pelas nossas paragens, sem com isso significar os facilitismos ou clichés que o realismo pretende invocar a maior parte das vezes neste círculo de produção. Confessando beber de uma certa aura e autoridade do amigo e pintor Arlindo Silva (cujos trabalhos se incluem nas publicações e se podem ver na sua gloriosa cor em www.anamnese.pt, relançando o tal “inconformismo” em relação ao mundo das artes em cheque), Marco Mendes não deixa nenhum detalhe de fora, desde que concorra para a liberdade do olho se demorar na ordem dos seus desenhos. De acordo com o próprio, estas breves compilações de “desenhos à vista” (mais esboçados aqui, mais finalizados ali) e “excertos de conversas” (apresentados das mais variadas maneiras) poderão eventualmente ser arrumados de acordo com alguma ordem cronológica, axiológica, logo, narrativa ou sequencial, e então funcionar “como páginas de um diário em banda desenhada, que para já narram um ano de vida em comum [com os amigos retratados]”. Havendo uma preocupação de facto com a narratologia permitida pela banda desenhada – e afastando-se assim de uma aproximação mais formal e “artística” da banda desenhada (leia-se, “experimental”?) – pergunto-me se não haverá aqui uma possibilidade de estarmos perante um projecto análogo ao Journal de Fabrice Neaud? Não digo que Mendes esteja imitando, e até me pergunto se conhecerá essa obra. Simplesmente noto entre estas breves páginas espalhadas nos fanzines e fora deles e a obra do francês (4 volumes pela ego comme x) uma busca e caminho comuns. Obviamente que a de Neaud, tendo atravessado o espaço necessário à publicação em forma de livro, atravessa toda uma série mais complexa de estratégias, necessariamente longínquas desta aproximação mais directa e imediata aos acontecimentos de Marco Mendes, mas a linguagem plástica, a estruturação/encenação das personagens (existe sempre, é inevitável; “deturpar as histórias”, diz o autor), é análoga à de Neaud. Até mesmo uma certa aura sensual do(s) corpo(s) masculino(s) se parece repetir no autor do Porto, ainda que a homossexualidade seja um dos temas centrais dos Journaux e nada o indique aqui (há, porém, uma curta “memória de Verão” à la Tomine no último fanzine por Nuno Ramalho). Não é que o que está apresentado não possua força, mas se alguma vez se coligir num só, e coeso, volume, talvez estejamos perante uma novidade de fôlego entre nós, pois uma aproximação autobiográfica a plenos pulmões jamais se cumpriu em Portugal (que eu saiba).
Quanto a Miguel Carneiro, não é de somenos importância nem desmerecedor da nossa atenção. As aventuras do Monsieur Pignon (ou Sr. Pinhão) seguem uma estratégia balançada e prevê-se mesmo a publicação de um livro. Esta personagem faz-me, fisicamente e em termos de relação diegética com as restantes personagens, recordar o Espião Acácio de Relvas, e o Fernando Pessoa enquanto personagem de Fernando Pessoa Contra o Homem-Aranha de Rui Sousa Coelho (Ulmeiro), colocando-se ora em situações de um quotidiano rasteiro (amigos, a namorada) ora estranhas, absurdas, povoadas por várias e estranhas personagens (prometendo o autor que ainda se complicará mais) e entregando-se a diálogos agora amorosos, agora citacionistas, ora mesmo metafísicos intercalados com piadas à Fernando Rocha. Dos nossos contemporâneos, tanto se poderia pensar em Kaz e Ivan Brunetti como em Johnny Ryan. Mas tendo em conta a ordem dos fanzines, talvez se venha a desligar das piadas mais brejeiras para de facto se aproximar de alguma força conceptual, sem vergonhas e preso à necessidade de dizer “caralhadas” para disfarçar a verdade intelectual acabada de proferir momentos antes.
A participação de outros dos colaboradores, mesmo os regulares, é muito díspar em termos de tipo e qualidade: as breves páginas de Mariana Santo surgem como uma espécie de variação sobre Carneiro, mas com as suas idiossincrasias, obviamente; os ratos de André Sousa e os “cromos” de João Marrucho mostram possibilidades inovadoras em termos de histórias de uma página/painel. É divertida a inclusão de desenhos infantis de Marco Mendes na Lamb-Hãert, que não deixando de ser infantis, são uma mostra do virtuosismo que viria a atingir. Para ser sincero e directo, as histórias de Didi Vassi são fracas e derivativas, existindo à esquerda e à direita o mesmo tipo de trabalhos “porcos, feios e maus”. E se se podem encontrar alguns exemplos cheios de humor e valor estético nessa família (Mike Diana, claro está, Pepe del Rey, e até mesmo Janus – se bem que a arte deste seja mais virtuosa), estas adolescências inconsequentes não têm perdão. Como será de esperar, há uma flutuação s. Alguns são francamente adolescentes e inconsequentes.
Esteve na lista para o prémio dos fanzines no Festival da Amadora este ano, que acabou por ser entregue ao Venham + 5. Mas não faz mal, dizem os editores, pois preferem outro tipo de atenção. Concordo, e espero que essa atenção apenas lhes sirva de alento e combustível a fogos mais altos.
Notas: agradecimentos a Marco Mendes e Miguel Carneiro pela longa resposta que me enviaram por email. As minhas contestações às mesmas ideias estão aqui dadas e as minhas desculpas por não ter escrito directamente antes. Agradecimentos também a Ana Luísa Mirra, que me emprestou o Paint Suck’s e me mostrou outros trabalhos esparsos de alguns dos artistas, e a Marcos Farrajota, pela troca de ideias. Se estiverem interessados em obter mais informações ou a publicação, escrevam para mcarneiro@hotmail.com e/ou marcofbaup@hotmail.com. Posted by Picasa

3 comentários:

  1. Hei, hei, hei...
    "A participação de outros dos colaboradores, mesmo os regulares, é muito díspar em termos de tipo e qualidade."
    ...é só diferente...
    Mesmo assim obrigado pela atenção.
    Marrucho.

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  2. Caro João,
    não percebi o comentário. Sabe qual é o significado de "díspar"?

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  3. Exmº falshfinger:
    Que não faz par. Percebe agora? Sei que sim e por isso nao se faça de desentendido. Se não era fita fica aqui a explicação:
    Díspar em termos de (..) qualidade: ou pior ou melhor.
    Sr...é só diferente...
    O juízo de valor é escusado quando não é assumido. Decida-se.
    Sem ressentimentos e mais assunto de momento, ficam os melhores cumprimetos
    João Alves Marrucho.
    ; )

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