25 de outubro de 2005
Or Else. Kevin Huizenga (Drawn & Quarterly). Histórias de dois semi-homens I.
Introdução: Não será vergonhoso para a valorização de um artista a sua inserção numa longa tradição, ou mesmo num género. Vivemos em dias demasiadamente preocupados com, a meu ver, vãos princípios tais como a originalidade, a novidade, o moderno, e/ou o cool, falsamente indícios da condição de um verdadeiro saber fazer artístico e cegos perante a História. Kevin Huizenga (KH) e Vincent Vanoli (VV) têm-se inscrito numa tradição de autores cujas personagens vivem em narrativas aparentemente displicentes, desprovidas de grandes acontecimentos que não os de uma vida dita “normal”, se bem que por vezes surjam momentos de maior desvario ficcional. Essa tradição poder-se-á – como é indicado vezes sem conta – iniciar nos trabalhos conjuntos de Harvey Pekar e Robert Crumb, e no qual se poderiam incluir muitos outros trabalhos mais recentes (sobretudo na América do Norte, com uma inúmera e sobejadamente conhecida lista, mas também na Europa, na qual além de autores alternativos, me parece também incluir-se a série comercial Monsieur Jean de Dupuy e Berberian). Mas poder-se-á talvez mesmo remontar às origens deste modo de expressão, se tivermos em conta a “pré-bd” Voyage entre deux eaux, de 1829, de Rodolphe Töpffer, na qual o próprio autor se representa desapreciadamente.
Kevin Huizenga. Ganges e seus afluentes.
KH é um artista (EUA) que vem do mundo das fanzines, com Supermonster, onde cultiva quer experiências formais (Chan Woo Kim; que republicada no primeiro número do comic aqui representado perde na paginação “normal” a especificidade inventiva original) quer episódios de um quotidiano cuja simplicidade é densa de ilações (Walkin’). Ambas prontas a consumir no seu site. Mas é sobretudo com os trabalhos nos quais desenvolve o seu alter-ego Glenn Ganges (GG), que há uma maior aproximação ao campo ficcional, e por vezes mesmo a géneros mais fantasiosos. Para já, não há correlação biográfica entre o autor e a personagem, ao contrário do que se poderia supor à partida. É isso o que me faz recordar M. Jean. Mas se a maior parte das preocupações da personagem a inscrevem numa realidade mais ou menos inteligível e comum a todos os mortais, há outros momentos nos quais ela se coloca num outro nível, mais próximo, como já tive oportunidade de o dizer (Quadrado 6), de autores literários como Paul Auster ou Haruki Murakami. Vejam-se os episódios incluídos em Drawn & Quarterly Showcase, nos quais a vida do jovem casal Ganges se cruza com um conto tradicional italiano e outras paranóias urbanas, como o chilrear fenético de pássaros ou uma limpeza às carpetes. Mas as histórias mantêm-se sempre claras, relativamente simples, sem pontos por dar. Esta personagem permite ao autor procurar contribuir à sua maneira para o minimalismo, escola gráfica tão em voga nos Estados Unidos, cuja formulaica “economia de meios” já parece ter-se tornado axioma, pelo momento... Pelo contrário, o desenho de KH é falsamente falso e nada tem de inacabado. É um desenho que baixa as personagens a um mínimo de informação gráfica, mas em que KH reverte os valores no sentido em que a sua economia lhe permite centrar-se na história, numa maior estruturação das narrativas e dos mecanismos que a fazem avançar, não perdendo tempo, por exemplo, numa cansativa busca por novidades formais. Outros fá-lo-ão de uma maneira bem mais conseguida e pertinente, como Nick Bertozzi (Rubber Necker) ou Jason Lutes (Berlin). Os acontecimentos relativos à vida de recém-casado, e depois de recém-pai, de GG, associam-se às pequenas revoluções típicas de um jovem casal, sobretudo o apalpar terreno cego à medida que se vive. Mas o interessante exemplo da inteligência deste autor, consciente ou não, é a integração do seu próprio programa num qualquer outro a que seja convidado. Numa antologia que reunia vários autores independentes de bd norte-americanos, Orchid, em que se pedia que adaptassem para bd contos de cariz fantástico do mundo literário anglófono do séc. XIX, KH optou por um conto do irlandês Joseph Sheridan Le Fanu: mas não o adaptou de uma forma mais ou menos previsível, optando antes por o integrar em mais um dos nós da contínua vida do semi-autobiográfico Ganges. (Esta parte foi antes publicada na revista Número, seguida pela parte sobre Vanoli.)
+ Or Else é o título das publicações de Huizenga na Drawn & Quarterly. Faz parte deste movimento a que chamei tentativamente de post-fanzine (* e *). Reúne trabalhos inéditos e éditos, sendo a maior destes últimos reformulados. Junta ainda pequenos exercícios formais, apontamentos e desenhos soltos, mais interessantes uns, menos significativos outros. Seguramente que haverá uma colecção de Ganges mais tarde, mas a busca de Huizenga mantém-se conforme os anteriores trabalhos.
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