8 de dezembro de 2005
Fritz Haber 1. L'Esprit du Temps. David Vandermeulen (Delcourt)
Qualquer biografia do autor, David Vandermeulen, mostrará a sua passagem mais ou menos gloriosa e mais ou menos purgatória por todo um diverso campo da criação e do amor pelas artes, como o teatro, o cinema, a edição independente, a arqueologia, a pintura, a banda desenhada. Les Champs de l’Obscène (6 Pieds sous terre) foi o seu primeiro trabalho de maior fôlego reconhecido, mas quero crer que haverá uma diferença substancial no esforço e nos frutos com esta prometida trilogia sobre a figura real de Fritz Haber.
Ler-se-á na badana do livro que Haber é uma figura faustiana e é muito difícil não concordar com essa visão. Químico respeitado, a quem foi atribuído mesmo o Nobel da área em 1918, é-lhe também dado o nome de “pai da guerra química”, sendo da sua lavra o infamemente conhecido Zyklon B, utilizado nas câmaras nazis. Haber era judeu. L’Esprit du Temps, apetecendo antes entrar pela sua versão alemã, Zeitgeist, para que o “fantasma” se torne ligeiramente mais tangível, voga porém pela sua biografia, pelos vários elementos que poderão compor uma pessoa (nunca o sendo possível de modo completo), pelas várias facetas que complicam uma forma redutora de se dizer “quem é”. As suas relações amorosas e o casamento, a sua dificuldade em gerir a herança judaica e o desejo em ser considerado um cidadão de primeira na Alemanha cosmopolita, um nacionalista e filantropo, um cientista e um interessado em assuntos políticos internos e externos... Pequenos paradoxos pelos quais viajará.
Vandermeulen emprega uma série de referências para a construção do seu Fritz Haber, como se compreenderá de imediato pelos complementos de arquivo disponibilizados na editora, nas profusas citações que articulam os capítulos e as suas partes (ou cenas), e sobretudo pelo seu óbvio jogo gráfico. A banda desenhada vive ainda hoje como que à sombra do cinema, dado um mal-entendido ainda pouco dissipado de relação histórica, técnica e até estética. Não é falso dizer que ela utiliza métodos visuais parentes dos do cinema, nem que esses métodos não nasceram no seio do cinema em primeiro lugar, mas não se pode daí entender uma espécie de filiação total. Vendermeulen, todavia, “imita” o cinema nesta sua obra: todas as vinhetas são apresentadas num intricado jogo de aguarelas em castanhos, sépias e negros, que diluem o fundo e a superfície num só “mundo e tempo”, enquadrados de um modo contido (possível a uma câmara real em relação ao mundo tangível), apresentando diálogos ou a voz narradora em cartões de inter-títulos, e a própria representação dos objectos visíveis parece fazer uso de um traço muito realista ou, quem sabe, de fotografias, ainda que posteriormente diluídos nos seus contornos e relações pelas aguarelas. Há, portanto, uma espécie de imitação, como disse, do cinema mudo. Mais, a presença regular de cenas retiradas do Siegfried de Fritz Lang (de 1924) reforça esse aspecto. (A multiplicação dos níveis das metáforas também se verificam no surgimento de Siegfried na sua floresta dos Nibelungos, e o seu combate com o dragão e a morte às mãos de Hagen: a relação de Fritz Jacob com o seu pai, a oposição judaísmo-anti-semitismo ou judaísmo (fé)-cosmopolitismo, Alemanha-estrangeiros, Passado (superstições)-Futuro (progresso científico), etc.).
Pergunto-me, porém, se essa opção ajuda nalgum ponto à obra em si... Não é que falhe em nos transmitir um certo ambiente epocal, mas considerando que esta biografia vai – oscilando – de 1888 a 1834, não há uma coincidência entre os tempos retratados e o patamar do cinema “em uso” neste livro. A utilização dos inter-títulos não obedece a um critério fixo, e torna-se por vezes confusa a sua ordem, já para não entrar nas considerações da relação com o som do “cinema mudo” e da banda desenhada, sempre “silenciosa” (“sem som”) mas não “muda” (“sem texto”). Não há uma mais-valia nesse emprego. Mas se o decalque de técnicas de uma arte funcionam de uma forma significativa em, por exemplo, Blitz de François Rivière e Floc’h, que se passa no palco de um teatro, ou no projecto experimental (em forma de livro) Chantier Musil de Vicent Fortemps, aqui não se torna clara a pertinência cabal do seu uso. Finalmente, a insistida divisão e sub-divisão em pequenas partes, as mais das vezes com hiatos e saltos cronológicos (analepses e prolepses, ou saltos para a frente e para trás, ainda que sempre internos às barreiras da vida de Haber, e mesmo que exteriores à sua acção directa), não abona a favor de uma certa unidade necessária a um bom fôlego de leitura. É sempre impossível fazer-se uma biografia total sem que se façam escolhas, obviamente, mas é por essa mesma razão que se podem criar hagiografias (como o Che dos Breccia pai e filho) ou recontar apenas as fases mais pertinentes da vida de uma personagem (como o Louis Riel de Chester Brown); Fritz Haber, nesse sentido, não possui essa fluidez, mas antes uma espécie de voo de borboleta, nervoso e que nunca poisa: talvez mesmo porque a metáfora se preste melhor ao “espírito do tempo”, inenarrável e inapreensível, apenas passível de ser vivido.
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