16 de fevereiro de 2006

Morgana e o Poço Misterioso. José Abrantes (Gailivro)


José Abrantes tem uma carreira longa, multímoda e desigual. A sua obra espraia-se por uma dezena de géneros, de públicos, de experiências gráficas, de níveis de sucesso. Do que conheço directamente, e por razões óbvias de afinidades de leitura, a minha escolha estritamente pessoal recairia na sua colaboração com Miguel Rocha, em O Enigma Diabólico, uma homenagem a Jacobs que foi publicada na saudosa colecção Quadradinho (ASIBDP). Da sua produção infantil, campo no qual construiu sobretudo a sua carreira, destacaria acima de tudo o resto um outro trabalho de colaboração, com Luís Diferr, Dakar, o Minossauro. O seu site oficial é bastante abrangente dessa longa carreira.
Centrar-nos-emos, portanto, somente neste título, sem querer com isso partir para considerações sobre a sua restante produção, como disse, bem diversa.
A inscrição de Morgana numa longa tradição de bruxinhas ou de personagens ligadas a uma versão “soft” desse universo necromântico não é difícil de estabelecer, cujas últimas e mais recentes pontas se encontram na série juvenil-feminina da Disney W.I.T.C.H. (de Barbara Caneppa e Alessandro Barbucci - não obstante a celeuma e os impedimentos da Disney), os romances e filmes de Harry Potter (bruxo!) e onde até as mais crassamente comerciais banalizações do Tarot e da Angeologia tem o seu papel. Morgana situa-se porém dedicado a uma faixa etária mais baixa que esses exemplos anteriores, quer pelo trabalho de grande legibilidade gráfica – contornos definidos, que não deixam margens para dúvidas em termos de representação, vinhetas grandes, cores claríssimas, e um número reduzido de personagens – quer pela estruturação diegética – esse punhado de personagens tem papéis definidos e unívocos, as acções sucedem-se de forma contínua, ritmada e linear, existem poucos desvios narrativos e quando existem são progressivos ou explicativos da trama principal, e a resolução não levanta problemas nem deixa crises instaladas.
No entanto, é precisamente por essas mesmas razões que me pergunto se estamos perante um bom livro. Afinal, qual a diferença entre Morgana e outras centenas de exemplos de livros de banda desenhada para crianças? Já Homodonte: O Ovo Azul me parecia algo que não destoava, e por isso nenhuma qualidade nova trazia à superfície da leitura sequer, em relação a, por exemplo, digamos, as produções de Maurício de Sousa: pequenas anedotas em sucessão, comédias de situação, na qual se integram, para mal ou para bem, personagens que se desenham para essas mesmas situações, no caso específico uma espécie de Caim e Abel enquanto se dão bem. Não se trata aqui de uma espécie de preconceito em relação a um nicho de leitura ou de produção, já que falei aqui de títulos outros, infantis, de grande qualidade, quer gráfica quer narrativa, como Ariol e Sardine de L’Espace, de Guibert e companhia, ou Spiral-Bound, ou ainda as aventuras de Vega, de R. Câmara. Trata-se de ver a transparência imediata e demasiadamente visível da discrepância entre as “intenções” e a sua “concretização”.
Não há dúvidas de que José Abrantes é capaz de criar personagens. Há uma espécie de imediatez na leitura das suas formas visuais que leva logo à atribuição de certas características pessoais. Também não duvido na sua proficuidade em imaginar redes complexas de relações entre famílias de personagens. Mas elas não são realizadas. Em Homodonte, as páginas finais presenteiam o leitor com quatro desenhos de “Alguns personagens...” Quem são? Para que servem? Aparecerão nos próximos livros? Nada é dito nem prometido. Soa a ideia-ara-ver-se-pega, logo, em ruído em relação ao livro presente, que se tem nas mãos, onde elas não surgem e não possuem qualquer relevância. Poder-se-ia rebater que se trata de uma espécie de promessa, de provocação do leitor, para aumentar o desejo... Mas até como estratégia comercial, não é completa. Em Morgana, a primeira página, extra-diegética de certa forma, mostra duas bruxas que comentam o facto de Morgana ter ganho a sua vassoura voadora “antes do tempo”. Estas bruxas jamais retornarão, e o episódio da vassoura não estabelece nenhuma ligação a estas palavras. Depois a acção não permite aos leitores nenhum tipo de descoberta, não há mistério nenhum, apesar do título: é-nos dito, verbalmente, quem é a culpada, qual o seu objectivo, e nada existe para tornar subtil a “maldade”. Maniqueísmo puro. As personagens secundárias, como o génio Pradoc ou o velho da floresta, parecem surgir para entregar mais uma desculpa de avanço na história através das palavras (e não da acção ou da força visual) para poderem ser apagadas logo a seguir sem dó nem piedade. As bruxas mais velhas, incluindo a mestra, surgem no fim, deus ex machina, mas sem integração nenhuma na acção nem uma equilibrada articulação... A explicação da origem da Lua e desaparecimento da Atlântida parece-me ser o “momento alto” da “imaginação”, mas acaba por se perder na acção principal – o rapto do gnomo Mogal... Poderia continuar, mas seria exagero da minha parte.
Não há, infelizmente, nenhum aspecto subtil nos diálogos e a construção da diegese não é feliz – parece-me haver um exagero de “ideias” e de “apontamentos” que acabaram juntos, mas descosidos. E é pena, porque a ideia-base poderia ver-se desenvolvida em todo um ambiente, personagens secundárias, espaços, pistas que se desenvolveriam mais tarde noutros álbuns etc., seguindo quer títulos já aqui citados (vejam-se os excelentes exemplos de Joann Sfar) quer seguindo textos da cultural popular do momento – que se goste quer não, e independentemente do seu valor estético restrito, o exemplo de uma “boa trama” – como Harry Potter.
Com todo o respeito para quem trabalha há décadas na área, e tem uma invejável produção, este é um álbum fraco, mesmo tendo em conta ser um livro escrito para crianças, as quais são capazes de entender mais do que se julga, se não formos condescendentes. E talvez seja precisamente por existir uma certa insistência nessa experiência que custe encontrar essas fragilidades espalhadas por várias formas no livro. Um outro ponto de fraqueza é o tratamento da balonagem ou legendagem, com um tipo de letra demasiado mecânico(electrónico), mesmo com erros de inserção (e um deslize absolutamente cómico, mas duvido que propositado). As cores não abonam a favor da arte, e é indesculpável num momento em que existem cada vez mais “coloristas” competentes em Portugal. Muitas das vinhetas apresentam ainda a personagem a flutuar numa vinheta que se destacam por não possuírem dentro de si nenhum outro objecto (e não se conteste com a liberdade de criatividade, pois não estamos perante um álbum de um autor dito “minimalista” ou “abstracto”, mas o mais clássico possível) e que podem ser vistas como condensação perfeita de Morgana: uma “boa ideia” a flutuar num branco não-preenchido... Posted by Picasa

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