Os contos folclóricos, pelo menos desde Propp, não podem deixar de ser vistos como um aglomerado de elementos narrativos menores e irredutíveis, como que nódulos narrativos. Por razões sociais sobejamente estudadas e conhecidas, o desenvolvimento dessas narrativas, a que damos também o nome de “contos tradicionais”, “lendas populares”, etc., deixaram de se desenvolver, isto é, deixou-se de se lhes acrescentar “um ponto” quando se “conta o conto”. Passaram a ser empregues outros tipos de entretimento, por um lado, e a fabricação oral desviou-se para outros modos: “o boato político”, “a lenda urbana”, uma recriação da memória colectiva não obstante os estudos da história, ou até mesmo contra esse discurso, por outro.
Mas os elementos em si não desapareceram de todo. Simplesmente emergem noutras linguagens. A banda desenhada, sendo um modo de criação em que resistiu particularmente e foi fértil a presença de determinados princípios míticos, apresenta muitos deles em diferentes acepções. O Super-homem, tal como Moisés, e outros, preenche o “infante abandonado em berço rio abaixo para sua salvação”, tal como Sansão, e outros, o da “fraqueza da sua força num detalhe”; a descida ao Inferno de Hércules, de Eneias, de Ulisses e de Jesus, e diferentemente da de Orfeu, a entrada na floresta pela Capuchinho Vermelho, a queda na caverna dos morcegos do pequeno Bruce Wayne e a descida aos subterrâneos por Billy Batson, são também unidas por razões óbvias.
Estes dois livros parecem estar unidos pelo mesmo desejo em querer empregar esses elementos, quer “functivos” quer “conjuntivos”. Se bem que o primeiro, de Jesse Moynihan, apresente episódios curtos, partes, histórias aparentemente separadas entre si, a recorrência de um protagonista (que parece um gnomo, jovem e tradicional) e outras personagens e espaços, leva-nos a imaginar uma procurar por um “universo ficcional” coerente, por mais desagregado e absurdo que ele nos parece ser a uma primeira leitura. Um dos autores a quem Moynihan agradece, no final deste primeiro número do seu título, é Tom [Thomas] Herpich, e é de facto com esse autor que parece estabelecer uma afinidade, se não plástica – Moynihan parece procurar uma maior completude na criação dos seus desenhos, na estruturação de uma página mais tradicional, ainda que se mantenha num referencial “naif” em relação à figuração, aos monstros, a uma certa perspectiva -, pelo menos diegética, em que apenas nos é ofertado uma mera (suposta) parte de uma história mais larga (que jamais viremos a saber, presumo). Outra afinidade, comprovada na prancha aqui apresentada, é com Mat Brinkman, por razões algo óbvias para quem conhece Teratoid Heights (surge uma criatura que é plasticamente análoga às que habitam esse estranho "planeta" de Brinkman); todavia, como esta criatura (o filho do “gnomo”) apenas surge neste episódio, talvez seja legível enquanto uma espécie de intromissão. Ainda como Herpich, mas tantos outros, a mais dura das ficções parece querer apontar para uma transformação radical, uma transfiguração, de eventos biográficos, que não importa reconstruir como reais, mas simplesmente sentir como emergentes da sua vida. O título, se bem que se refira a um objecto tangível, concreto e até banal, parece assumir, com esta nova série (bi-mensal, tendo saído já o segundo número), um sentido mais dissipado e até mesmo mágico.
Já o livrinho, do tamanho de um bloco de notas, de Dery, que pertence(ia) ao grupo de artistas de Fort Thunder, e mais próximo do fanzine d’arte clássico (páginas em fotocópias a negro, de alta qualidade, capa em cartão com cores litografadas; aliás, chamam-lhe mini-comic), faz avançar um conto uno, coeso, mas não por isso menos sugestivo.
Companheiros/irmãos/peregrinos avançam por uma terra, onde estão perdidos, quer em termos geográficos (não estão em “casa”) quer temporais (passam 1000 anos), encontrando-se depois entre leões sapientes, onde se partilha uma verdade zen – devemos parar de procurar por respostas – e ocorre um sucessivo corte e salvação...
O final é, mesmo em termos desta total liberdade e preocupação mais formal (repare-se no friso que decora a prancha, exercício constante no livrinho), algo abrupto. Todavia, e como se trata da continuação de uma série (apenas correspondente ao título, já que não às personagens nem aos locais, temas, etc.), quiçá ainda se sigam novos episódios, uma término, uma colecção completa. Seja como for, ainda assim merece folhear lenta e pausadamente este livro, em que cada página parece preencher essas “funções” folclóricas, abrindo-nos novos caminhos a um imaginário que apenas aparentemente a modernidade, e os seus valores demasiado acelerados, conseguiu ocultar.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, que mais uma vez me emprestou o livro, o de Moynihan, antes de o ter nas mãos.
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