25 de abril de 2006

Venham + 5 #2. AAVV (Toupeira/Bedeteca de Beja)


Em relação ao número anterior, há um número maior de histórias, e de autores, mas isso é mesmo prova de aumento quantitativo, não qualitativo.
Um aspecto recomendável desta publicação, mas que é inerente à própria existência de uma instituição como o atelier Toupeira, a Bedeteca de Beja, e um núcleo de trabalho dedicado, é o facto desta ser uma plataforma de edição e divulgação de autores de banda desenhada. Mas aí se esgota o gesto. Uma vez que há essa premência de “dar a conhecer o trabalho que se faz”, não se imporá qualquer outro critério, nem apriorístico nem de julgamento sobre os trabalhos feitos, e acabamos por ter em mãos um objecto heteróclito, muito diverso, mas que não é capaz de tornar essa diversidade interessante, mas somente confusa, flutuante da pior maneira e até inócua, em alguns momentos.
Não se pode dizer que os autores se agrupem num qualquer tema, nem que se plasmem por partilharem o mesmo espaço. Mas por alguma razão algumas destas histórias partilham uma espécie de desejo em criar “poemas” em banda desenhada: uma linguagem intimista, impressionista, acompanhada por imagens que pretendem abrir-se para um campo do “que fica por dizer”... Falo das bandas desenhadas de Zé Francisco, de Susa Monteiro, de Paulo Monteiro, de Carlos Apolo, de Lobato, de Manu Aine, de Maria João Careto. Todavia, a esmagadora maioria desses trabalhos participa mais no vago do que no sugestivo.
Paulo Monteiro, o mentor do projecto, é quem apresenta a mais conseguida banda desenhada, o que não nos surpreende. O seu traço, aqui, faz-me lembrar autores de uma certa linha de contornos carregados, como David B., Pauline Martin, entre outros, mas com uma estruturação muito própria, fazendo destas duas pranchas um trabalho de franca qualidade em termos de figuração. A escolha por um animal para mostrar a impossibilidade de uma aproximação amorosa, não sendo um registo inédito, é porém tratado de uma forma singular, já que há um equilíbrio notável entre o rosto do carneiro montês/ibex, praticamente inalterado, inexpressivo (se isso fosse possível), e o seu corpo, lançado para a frente na sua deambulação nocturna e confessando o seu amor nessa estranha, desconjuntada e frenética dança final. Susa Monteiro, cujo nível de produção escapa à gravidade de um qualquer amadorismo onde provavelmente nunca esteve, apresenta-nos quatro páginas de uma história digna de qualquer título da Vertigo, mas fazendo pensar mais em Al Columbia do que qualquer outro autor mais mainstream. E se bem que não me apareça existir uma ponderação da prancha(s) significativa, a força da representação de Susa Monteiro desloca o centro de gravidade para essas mesmas situações que retrata. O pendor decorativo das vinhetas (efeitos de padrões, flores, manchas de sangue, rendilhados, caveiras, papéis de parede; e só podemos imaginar as cores, uma vez que a reprodução é a preto e branco) e a flutuação dos tipos de letra empregue apenas reforçam essa sugestão onírica. O cliché do amor em querer-se ser “um” é aqui transfigurado numa operação invasiva total, cuja última vinheta nos faz duvidar ser real – em relação à protagonista: no despertar da razão, os monstros dissipam-se, mas podem viver no interior. O trabalho de Zé Francisco, neste número presente na capa e numa história de duas pranchas, confirma o que surgira no número anterior: a força deste novo autor reside antes na sua capacidade ilustrativa, bem mais significativamente do que na construção de banda desenhada – a flutuação da representação, a capacidade em representar um rosto próximo do realismo fotográfico em que se baseia (Sean Penn, neste caso) mas a subsequente falha em manter a mesma permanência, e a inconsequência narrativa (se na sua versão de “Alice” ainda se poderia pensar numa desculpa pelo “surrealismo” - cáspite! -, aqui apenas podemos brindar a história “Azul Gaivota” - a preto e branco a história, mais uma vez, e as gaivotas como “buracos brancos” - com um encolher de ombros). Já a capa é francamente competente, num motivo que parece ter partes iguais de um imaginário de teatro e escultura barrocos, homoerotismo e até de um certo “imaginário nacional”... Talvez a este autor possa ainda desenvolver algum trabalho mais interessante, se procurar ou uma colaboração mais consentânea em termos de narrativa ou se até se aventurar por uma via mais pessoal (aconselhá-lo-ia, por exemplo, a ler Stuck Rubber Baby, de Howard Cruse, sem querer com isso fechá-lo em qualquer “nicho”; simplesmente sinto uma força de pupa que necessita quebrar o casulo).
Estes são os três autores que me parecem os mais significativos, fora da gravidade “local”. Imageticamente falando, os trabalhos de Carlos Apolo, Lobato e de Manu Aine parecem dar passos numa direcção de experimentalismo formal, mas não me parecem ter atingido o patamar desejado. Parece haver uma paixão grande pelo design gráfico e a fotografia que não se transfigura em banda desenhada; quiçá fosse interessante os autores conhecerem conseguidas experiências dessa “família” da criação da banda desenhada (Vaughn-James, Guibert, McGuire, Spiegelman, Barbier, entre tantos outros). Maria João Careto apresenta um trabalho menos erótico a que nos temos estado a habituar, para se aproximar de um tema mais feminista (dentro da discussão tida; uma pergunta: porque é que MJ. Careto, sendo mulher, cria um erotismo a partir de uma perspectiva “masculina”? Seria bem mais interessante ver um trabalho que partisse da sua própria experiência, em vez de vermos uma versão Manara requentada).
Novos parágrafos: Voltemos um pouco atrás, já que foi chamada a atenção para um certo exercício da crueldade da minha parte, ao arrogar-me do direito de, para uma leitura estética, eu cortar as amarras ao contexto da publicação. Como disse atrás, esta publicação visa, em primeiríssimo lugar, a apresentação dos trabalhos que nascem no interior do atelier local. O que eu pretendo com o meu “corte” é poder ler todos os textos e as obras com os mesmos olhos e os mesmos critérios, mas talvez isso não seja justo – equilíbrio extremamente difícil de encontrar –, e a aplicação de um mesmo olhar face a uma publicação de um autor conhecido por uma plataforma de algum poder editorial e ao trabalho de um novo autor acabe por esmagar mais o segundo do que incentivá-lo. Venham mais cinco inclui trabalhos menos conseguidos de uma mão-cheia de autores, mas em sua defesa está a própria publicação. Véte e Pedro Ganchinho apresentam um traço imaturo, mais preocupado com o desenho das personagens do que de tudo o resto (cenários, planificação, etc.). Véte apresenta evidentes influências directas do mangá e de uma nova leva de super-heróis (Image, Wildstorm), mas não deixa de ser interessante querer contar uma história de amor (um exercício mooriano?) entre estas personagens; outra curiosidade é que os cenários, por menos conseguidos que sejam, seguem referências nacionais, com excepção da última vinheta. Ganchinho conta-nos uma breve anedota, e nota-se que tem um pendor estilizado para as personagens, mas pouco mais, cuja resolução está na perseverança de trabalho. Pedro Amorim participa nos mesmos signos mas também nos mesmos problemas, se bem que pareça dominar, ou estar nesse caminho, de um trabalho de hatching. As personagens, porém, são pouco diferenciadas (repare-se na 6ª vinheta da pág. 54 ou na última da 55) e, politicamente, não entendo muito bem a moral nihilista, não se percebendo muito bem de “que lado” está o sentido da história. Luís Guerreiro está a um corte acima, dominando o desenho das personagens, mas também com pouco trabalho em termos de cenário, de “raccord”, de uma maior clareza narrativa, ortografia e ainda de um mais equilibrado sentido de design das letras. Victor Cabral não tem cenários, ponto final. Todavia, esse não é um problema, pois o estilo da sua história e todo o modo como ela é construída não precisa deles, bastando-lhe as regras que ele mesmo constróis, como se fossem figuras aplicáveis em um mão-cheia de países; não quer isto dizer que não existam desequilíbrios gráficos de fácil resolução, como o lettering, uma maior constância das personagens, etc. (Yvan Alagbé seria uma óptima leitura e modelo). Já as histórias de Lam e de Agonia Sampaio e de Kike Benlloch, sendo de pessoas com mais experiência, parece-me, os resultados parecem inócuos. As intenções ecológicas são boas, mas não fazem necessariamente boa banda desenhada (nem qualquer tipo de arte, malgré Carneiro), especialmente com esta tamanha discrepância entre cenário realista vs. personagens estilizados, mas de trejeitos e detalhes pouco felizes. A prancha de Benlloch, a enésima sobre “uma bd sobre o que devo contar numa bd”, tem apenas dois bons perfis (vinhetas 1 e 7), e tudo o resto surge-me como pura negligência criativa. As duas páginas de Lam não estão à altura da melhor qualidade de outros trabalhos apresentados pelo mesmo, e ainda que apresentem uma história bem contada e inegavelmente bem construída a todos os níveis do que compõem uma banda desenhada, é o trabalho gráfico que não é bem conseguido (tal como o homem-bomba, demasiado óbvio e que não corresponde à infeliz realidade, mas talvez isso seja secundário...).
Nada disto, claro, nega o facto de que a sua publicação é bem-vinda, e a qual criará leitores e interlocutores a todos estes artistas. Afinal de contas, “A gente ajuda/Havemos de ser mais/Eu bem sei/Mas há quem queira/Deitar abaixo/O que eu levantei”: esta revista é para ajudar, e que não seja este espaço – pouco lido – o que “deitará abaixo” esse projecto.
Finalmente, Daniel Maia (e Dinis Vale, por atacado), por razões que penso serem claras (convidado, com mais trabalhos publicados, pela sua marca de qualidade, trabalho gráfico e editorial), merecerá uma atenção especial, aquando da edição de Pão-de-Law.
Nota: agradecimentos a Zepe, pela discussão tida, e pela sua razão exercida. Também à equipa da Toupeira, pela hospitalidade e dedicação (carolice) à "cena".Posted by Picasa

6 comentários:

  1. Se te expões ficas sujeito à crítica seja ela especializada ou amadora. Seja ela "boa" ou "má". Há mais vida depois do infantário...
    Pedro, sabes quem fez esta capa homo-erótica do Venham +5?

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  2. Está escrito no texto: Zé Francisco!

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  3. Em resposta ao Zepe, direi o seguinte: o trabalho do crítico está aberta à crítica, mas como já o reiterei em várias ocasiões, tal como o crítico deve procurar que instrumentos utilizar em relação ao autor em particular, também o crítico do crítico deve partir do espaço aberto pelo primeiro crítico.
    Uma das primeiras (e mais fracas) defesas que o artista-que-não-gosta-de-críticos é colocar todos e quaisquer críticos numa mesma classe – sendo cego, portanto, às especificidades do crítico, ao seu trabalho em particular. Ataca, não qualquer ideia que tivesse sido apresentada, mas a própria existência do crítico (ou da crítica em geral). Não é o que é feito aqui, mas algumas das ideias apresentadas abre espaço a que se chegue a essa conclusão. Uma das facetas desse “ataque” é dizer que o crítico não tem direito a criticar isto por não saber fazê-lo (reproduzi-lo, imitá-lo?). É um argumento, mais que ridículo, mesquinho, pois aponta a uma espécie de assunção de “sociedade de pares”, onde apenas os membros aceites se podem pronunciar. O crítico voga acima/ao lado de tais possíveis sociedades, pois o seu trabalho é, como diz Walter Benjamin, “elevar a arte à ideia de arte”. Logo, o “patamar” não se trata de “um casaquinho já estabelecido”, mas uma ideia bem mais geral de rigor, de regras internas, de pertinência, de equilíbrio próprio. Isto é, não se trata de maneira alguma de um conjunto pré-estabelecido de princípios, os quais se têm de “picar” para cumprir o papel de arte, mas antes uma atenção pormenorizada no interior desse mesmo trabalho e entender (procurar entender) de ele cumpre o espaço que promete. O único compromisso do crítico é, portanto, com a obra/objecto, não com o autor (esse é o trabalho dos panegíricos) nem sequer com o público (esse é o trabalho dos jornalistas ou dos teóricos da recepção).
    A crítica só pode ser intrusiva, e mesmo até pornográfica, se com isso se entende uma intimidade com a obra, que implique baixar as defesas de pudor, e a troca de fluidos e magnetismos. A crítica que tu criticas é precisamente a de afloramentos epidérmicos, festinhas na pele que provocam pequenos arrepios e arrufos, pequenos nadas segredados de sedução à amizade ao autor, mas nunca invasivos. A “roda livre” usualmente dá azo a falta de rigor intelectual, uma aberrante falta de “critérios” (mas estes não devem ser entendidos como uma cartilha, mas antes como um conjunto fluido e em contínua mutação de referências, de olhares, de compromissos e associações libérrimas), e ao panegírico, como disse.
    Queimar as estantes, para além de uma imagem aterrorizadora, ainda que brutalmente poética, é o que é necessário em vários meios, mas já que a banda desenhada sofre de falta de memória e de um estudo das suas especificidades contínuas, é precisamente do que não precisa (passo o pleonasmo vocabular). Se bem que o trabalho do crítico é o de desarrumar as bibliotecas (ainda que os existam anarquistas), sem essa biblioteca, ele ou ela não faria o seu trabalho.
    Finalmente, se me arrogo, de quando em vez, de assumir um papel mais pedagógico, com “conselhos” directos, não o farei por presunção, mas porque olho com mais atenção – e foi o próprio Zepe que, com razão, mo apontou me forçou a reconsiderar certas posições – para as especificidades dos autores, que presumo jovens e em início de carreira. E uma vez que a banda desenhada sofre de algumas crises, como a falta de memória, a dificuldade de acesso a mais informação, de mais referências cruzadas, etc., penso que olhar para um trabalho e aperceber-me (quem sabe se errando nesse “olhar”, mas ao “olhar” não cabe “errar” mas “associar”, e isso é sempre com máxima liberdade) de certas afinidades com outro trabalho mais consolidado faz parte da minha tarefa, que alertar o autor (e outros leitores) para essa associação não é secundarizar o trabalho mais tardio, e que propor a sua leitura, como forma de intensificar “temas”, “linhas de força”, “buscas específicas” que já existem no autor em questão não é delito algum, nem acto de arrogância, nem de prepotência (uma espécie de “eu sei” tonitruante), mas são tudo actos puramente pedagógicos, que por natureza servem, apenas, a sabedoria, e não quaisquer jogos de poder.
    Se bem que possa isto ser entendido como presunção e água benta, mais uma vez, acho que a última frase não deve ser sobre mim nem o meu trabalho. Afinal, a ginástica que faço com o meu pescoço e todo o resto dos meus membros críticos permite-me por vezes aproximação à mais livre (e, quiçá, por vezes, assustadora e paranóide) das contorções.
    Um abraço,
    Pedro

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  4. força pedro! a tua critica ao fanzine venham mais 5´foi bastante construtiva. sou membro do toupeira e apresentei tambem alguns trabalhos durante o festival e condordo bastante contigo em todas as tuas observações . só uma nota final, o poema que adaptei para a fanzine tem a paginação toda trocada o que torna ainda mais dificil a sua interpretação. Bom trabalho!

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  5. Crítica no essencial absurda. Compara o que disseste do vEnham + 5 com o que disseste do All Girls. E depois compara o trabalho publicado. Não há nada como ser gaja, para nos passarem a mão pelo pêlo.

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  6. É bem possível que existam contradições de texto para texto, já que eles se referem a objectos e questões diferentes. Não estou isento de más interpretações, erros ou até simples desleixos... Aponta lá concretamente o que é absurdo e eu retraio-me publicamente.
    Abraços,
    P

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