2 de maio de 2006
Honey Talks. AAVV (Stripburger/Forum Ljubljana)
A mais recente edição do grupo da Stripburger, uma plataforma de edição e divulgação de banda desenhada da Europa Central, vulgo “ex-Bloco Soviético” (apesar de estar sediada na Eslovénia, é internacional), trata-se de uma pequena caixa contendo 9 livrinhos, todos do mesmo formato e seguindo uma ideia comum. De acordo com um encarte explicativo, assinado pelo colectivo, um dos ramos da arte popular eslovena, sobretudo do século XIX, era a pintura dos painéis (frontais) de madeira que se utilizavam para construir colmeias artificiais, painéis cujas medidas médias eram entre os 10 por 20 centímetros, com uma pequena abertura no centro e em baixo, por onde as abelhas poderiam entrar e sair de cada “andar” da colmeia. Os motivos oscilavam entre as imediatamente relacionadas com a actividade da apicultura, outras actividades rurais, religião, contos tradicionais e crenças locais, mitos nacionais (como o combate lendário entre “o guerreiro checo Pegam, que desafia os cavaleiros locais em duelos, mas é mais tarde derrotado pelo cavaleiro da região da Carniola, Lambergar. A Carniola fica na Eslovénia; e é curioso saber que existe uma espécie de abelha, Apis mellifera carnica, cujo nome nas línguas modernas faz jus à região. Pelo que se entende, muitos desses painéis estão preservados num museu etnográfico.
Ora, aliando o interesse e o desejo narrativo desses painéis e a estranheza da distância temporal e espacial para connosco (leitores modernos), quis a Stripburger convidar vários autores de banda desenhada europeus (e uma israelita) para que escolhessem uma imagem e, a partir dela, construíssem uma nova história. O resultado é esta colecção, em língua inglesa (ou sem texto), cujo formato é idêntico ao dos painéis, inclusive na “abertura” (apenas na capa). O resultado, se não brilhante, é pelo menos interessante, para já como projecto global e conceito (que poderia, imaginemos, despoletar uma experiência similar em Portugal a partir das pinturas nas proas dos moliceiros de Aveiro ou da olaria popular alentejana, como exemplo), mas também como livro(s)-objecto. Diga-se que está é uma co-edição com várias instituições e editoras, das quais destaco a insano-marselhesa Le Dernier Cri, já que foi Pakito Bolino quem apontou a possível associação entre as duas artes, conforme os editores...
Para já, uma relação dos autores e títulos: The King of the Bees, de Anke Feuchtenberger [-owa, acrescenta a autora alemã]; Grandma’s Painting, de Matthias Lehmann [Alemanha]; Pegam & Lambergar, de Milorad Krstlć [Hungria]; Beton & Honey, de Danijel Žeželj [Croácia]; Wanted!, de Vladan Kikolić [Sérvia]; Sidetracked, de Jakob Klemenćic [Eslovénia]; The Hunter’s Daughter, de Rutu Modan [Israel]; The Goat, de Kocoos [Eslovénia]; e Alvearium, de Marcel Ruijters [Holanda].
Gostava de me poder espraiar e falar de todos e cada um destes livros, mas tal seria incomportável, e deixo-me com algumas considerações gerais e breves. As minhas preferências, epidermicamente falando, deverão ser algo óbvias para quem conhece estes autores: Rutu Modan, Anke Feuchtenberger, e Marcel Ruijters. A primeira apresenta-nos um brevíssimo conto, num preto-e-branco simplicíssimo que não lhe é habitual, mas através do qual parece exercer a característica da “rapidez” de que Italo Calvino fala no seu famoso livro: trata-se de uma história que, a um só tempo, lembrará os contos tradicionais europeus (e a sua costumeira violência pouco subtil), e as obras de um Edward Gorey e de um Henri Darger (e a mesma violência). Feuchtenberger aproveita um motivo praticamente banal (uma mulher carregando uma das caixas-favo) para nos ofertar com mais uma alegoria sobre o poder terrível (e mortífero) que as mulheres alcançam através da maternidade; e é curioso ser o título o “king” e não a “queen”, mas descobrirão que a sua coroação não é motivo de felicidade. E o autor holandês não deixa de exercer a sua também típica violência física nesta espécie de tese da eterna questão do “regresso à natureza” e “religião natural” do homem (mulheres, na verdade; e o seu traço parece também mais “claro”).
Os contos de Vladan Kikolić e Kocoos são ambos unidos pelo uso de vinhetas sem texto e por um levíssimo humor, mas não por isso insignificantes, e até no revelam um tipo de humor de raízes locais. O estilo semi-fotográfico e o tom sério de Danijel Žeželj transformam este pequeno “aviso à navegação” ecológico e defesa do grafitti artístico-ambiental num pequeno e interessante exercício delicodoce e formal. Milorad Krstlć faz uma espécie de actualização à Hollywood e cheia de acção do combate lendário entre os dois cavaleiros já citados. Klemenćic parece querer com esta história absurda sobre uma pequena vila escondida nas dobras dos caminhos-de-ferro numa qualquer alegoria política, mas parece-me demasiado vaga para poder ser apreciada totalmente. E, finalmente, Matthias Lehmann transforma todo o motivo que lhe foi “ofertado” para escrever um conto sobre a relação possível que se pode estabelecer com a arte, conforme se seja um artista dito “popular” (a avó), um artista contemporâneo (leia-se, “no mercado artístico”, a protagonista, Beth) ou um esteta desiquilibrado...
Como disse, enquanto exercício global e projecto editorial, é uma experiência muito interessante, e todos os artistas são o suficientemente competentes para terem criado histórias que ultrapassam a sua associação contextual ao mesmo projecto. Ainda que não me pareça nenhum dos livrinhos em si ser uma surpresa esmagadora em relação aos trabalhos usuais dos artistas mais famosos entre nós (com a excepção, novamente, de Modan, e com a manutenção da mesma força em Feuchtenberger), esta é uma publicação significativa.
Ora aqui está uma bela edição, que tive a opurtunidade de folhear. É verdade que alguns dos livros são bem melhores que outros, mas como objecto editorial e gráfico é exemplar.
ResponderEliminar