13 de maio de 2006

Obras-Primas da BD Disney # 9. Carl Barks (Edimpresa)


Sendo este o 9º volume da colecção Obras-primas da Bd Disney, é o quarto com trabalhos de Carl Barks, desta feita dos anos de 1952-1954. Discutivelmente, estão aqui algumas das melhores histórias do Patinhas e, como é discutido e revelado pelos textos do editor português, é aqui que esta personagem se começa a verdadeiramente desenvolver como tal, isto é, consolidando a sua “personalidade”, e revelando desde logo as linhas com que se cose.
Tendo também já falado de Barks por várias ocasiões e sobretudo de um outro volume, centrar-me-ei aqui num aspecto. Mas devo fazer um aviso: o que vou dizer não é somente meu, mas fruto da leitura de textos sobre Barks de Domingos Isabelinho, e de conversas pessoais tidas com este ao longo do tempo e que versaram alguns destes temas e pistas de trabalho. Não se trata, porém, de citação, mas sim de descarado roubo. Pedem-se aqui desculpas e agradecimentos...
Como já havia sido dito, o Tio Patinhas não é propriamente um capitalista. Se o capitalismo pode ser definido como um sistema económico cuja base é a propriedade privada e a sua exploração com o intuito de fazer lucro, ou seja, em que o capital é empregue para gerar mais capital, a primeira pergunta seria “onde investe Patinhas o seu dinheiro”? Aparentemente, em todo o lado, já que não há ramo de negócio em que ele não esteja envolvido (“As Cidades do Ouro”), chegando mesmo a esquecer-se de que é proprietário de alguns desses ramos (como acontece na história “Em busca de Ouro”). Então para que serve o dinheiro de Patinhas? Repare-se que não se trata de “capital” e toda a implicação desse vocábulo, ou seja, algo serpeante, fluido, que cresce, se expande, se imiscui em qualquer local... A sua fluidez é bem diferente, como veremos. A fortuna de Patinhas espalha-se em vários negócios, mas sobretudo, centralmente (pelo menos em termos narrativos) no metal sonante, não o papel das notas, mas das moedas, físicas, objectos acumuláveis ao ponto de encherem a “caixa-forte”. Mas ainda que seja acumulável (e avaliada em “cinco quadruplatiliões de untuplatiliões de multiplatiliões de fantastiliões de centrfuguiliões de Euros e 16 cêntimos”), as moedas não parecem abandonar a sua individualidade. Patinhas recorda-se com a máxima exactidão as circunstâncias nas quais ganhou qualquer destas moedas (veja-se a sequ~encia das páginas 12 e 13). Bastas vezes, e neste volume temos várias histórias onde isso ocorre, Barks utiliza essas mesmas memórias despoletadas pela moeda singular para desencadear uma nova aventura. As relações dessa aventura com a memória em questão são múltiplas. Ora trata-se de um retornar a um mesmo local da memória (para “ fechá-la”), ora a uma cadeia de um antepassado (a “memória colectiva” e os “fantasmas herdados” servindo à formação actual), ora associando-a a uma nova e necessária busca (uma memória literalmente “desencadeadora”). Seja como for, as memórias jamais se cingem a uma reminiscência passiva. Servem para desdobrar toda a acção, e no fundo, toda a vida, quer das aventuras quer da sua personagem central, Patinhas. Assim sendo (e eis o roubo de que falei), estamos perante uma memória proustiana. Obviamente, salvar-se-ão as distâncias entre essas páginas magistrais de Proust, e a sua amplitude de influência, e estas pequenas, excelentemente estruturadas, mas limitadas a uma acção de entretenimento e aventura (mais, Barks confessa vezes sem conta ser mais testemunha de cultura popular que outra leitor erudito, estando no centro a National Geographic, a “Reader’s Digest” da Antropologia). Mas estas relações que a memória humana estabelece, e a sua descoberta na filosofia (Bergson) e na literatura (Proust), está sem dúvida presente em Barks. Diz o escritor francês, “[O nosso passado] está escondido, fora do seu domínio e do seu alcance, em algum objecto material (na sensação que esse objecto material nos daria) de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objecto antes de morrermos, ou não o encontramos”. Os objectos são evidentes.
A relação da obra de Barks com a memória é ainda patente na sua progenitura directa. Como é bem sabido, o nome original em inglês de Patinhas é Scrooge MacDuck, tal como o facto de que este nome se baseia na personagem principal do famoso Um Conto de Natal de Dickens. O que Patinhas herda é a mesma predisposição mesquinha, egoísta e sorumbática (se bem que de quando em vez se revele ser fachada); das diferenças, apontaram-se algumas. O conforto no acumular de dinheiro é diverso entre estas duas personagens. O outro grande legado deste conto de Dickens em particular e toda a forma de criação de Barks é a memória. É sabido: Ebenezer Scrooge recebe, gradualmente, a visita dos três fantasmas do Natal, o do passado, do presente e do futuro e, no fim, na manhã de Natal, redime-se dos seus azedume e rancor, e assim atinge-se a “moral” cristã... Mas leia-se esta passagem com outra busca em mente: “Viverei no Passado, no Presente, e no Futuro. O Espírito de todos os Três fortalecer-se-á em mim e não renegarei as lições que encerram” (minha tradução). O problema deste Scrooge era a de querer evitar sentir o Tempo e a Memória que a ele está associada (desde Santo Agostinho, pelo menos); o nosso Scrooge-Patinhas, porém, não tem esse obstáculo na sua vida, bem pelo contrário, sempre permanece em acesa conexão com ambos (salvo no episódio “Em busca de Ouro”), e é isso mesmo o que constitui a sua alma e “joie de vivre”.
Dizia acima que a fluidez do capital de Patinhas é diferente. Prende-se isso com o facto de ser uma fonte de relação directa com o corpo de Patinhas, nos famosos “banhos” e “mergulhos”. E há aqui igualmente toda uma gama de níveis de relação, desde uma osmose entre o dinheiro e Patinhas, fonte de felicidade - em “Nadando em Dinheiro”, por três vezes se confessa textualmente a relação lúdica com o dinheiro - do mesmo, mas limite intransponível pelos outros (pelos irmãos Metralha, na mesma história, muitas outras personagens também, ainda que menos negativamente), a patologias (não é trocadilho) mais ou menos graves - em “Paraíso Perdido” não consegue sequer ouvir a palavra “dinheiro” e em “O Ouro e o Repolho” os seus poros cobertos de pó de ouro não respiram; e toda esta última história é uma pérola de relações com os corpos das personagens, os seus limites e fronteiras; e, mais significativamente, a história onde se verifica de facto uma mais longa analepse, a crise da própria memória, de “Em busca de Ouro”. Mais, essa presença de corpos fluidos está presente nas razões lúdicas dos “mergulhos”, onde Patinhas (mesmo sendo um pato-na-vez-de-um-homem) se compara consecutivamente a um golfinho e a uma toupeira, dois animais que vivem em relação de osmose entre os seus movimentos corporais e o ambiente e a matéria em que habitam. Entenda-se bem, mesmo que Barks jamais tenha pensado nisto ou que lhe tenha servido de elemento consciente de criação, esta interpretação nem sequer é criadora e muito menos abusiva; remete-se a uma leitura do que lá está.
Até mesmo nalguns quadros a óleo que Barks viria a produzir com as “suas” personagens (Rich Finds, At Inventory Time, Golden Fleece, Sport of Tycoons, e/ou An Embarrassment of Riches; há na internet vários sites com estes trabalhos: "googlem" os títulos), esta espécie de alegria juvenil de Patinhas é visível na expressividade dos rostos e dos corpos, na luminosidade que emprega, na contaminação aos seus parentes próximos e companheiros de aventuras.
Se bem que não tenha sido muito sistemático e tema mesmo que um pouco desordenado, já que não tenho fácil acesso sequer a toda a obra “dos patos” de Barks, espero que entendam estas como simples pistas de interpretação e leitura (como sempre, na verdade) da obra de Carl Barks, e como sendo alguns dos elementos que fazem dele um verdadeiro “clássico”, um “artista” da banda desenhada infanto-juvenil, mas com lições “para todas as idades”, como soe dizer-se nesta área...
Nota: mais uma vez, as minhas desculpas e agradecimentos a Domingos Isabelinho, por esse “assalto”. Ainda fico à espera de mais marcas, todavia. Posted by Picasa

3 comentários:

  1. Muito bem, "the plot thinkens" & "the circle is closed", porque Don Rosa foi buscar essa fraseologia e essa construção à história de Barks que se inclui neste volume, cujo título português é "Nadando em dinheiro" e o inglês "Only a Poor Old Man" (Março de 1952, Uncle Scrooge no. 1; aqui, págs. 12-13).
    A César o que é de César, a Barks o que é de Barks, a Proust o que é de Proust, e os Etcs. ao Etc. Mas é assim mesmo que a Cultura respira, afinal de contas, não é? E é isso mesmo que nos permite incluir Carl Barks e a banda desenhada numa contínua e inesgotável/inalcançável História da Cultura...
    Abraços.

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  2. Estás a ver? É aqui que Platão dá jeito... Os "simulacros" (imagens das imagens) são mais persistentes que os "originais"...

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  3. Olá, Incandescente! Bem-vindo.
    Sim, não se nega que é entre velhos amigos, porque novos amigos tardam em fazer-se ouvir (o que desejo) e os inimigos ou cultivam o silêncio ou apenas usam pedras de arremesso... (preferia que falassem).
    Não deixas de ter razão que chamar o Proust para depois o afastar parecerá estranho; mas isso não se deve a uma espécie de fuga (para a frente ou para o lado), mas uma humilde constatação de que este não é o lugar ideal para aprofundarmos essas ligações, afora as que são feitas... Carl Barks criou uma obra-prima, sem dúvida, mas há que limitá-la à banda desenhada infanto-juvenil. Assombrosa, sem dúvida, com lições para fora desse "leitorado", mas ainda assim nascendo e respirando nesse espartilho. Proust terá os seus espartilhos, sem dúvida, mas digamos que a condição humana nele está mais presente. Não há regras nem critérios infalíveis que levem a fazer distinções, apenas caminhos múltiplos que só levam ao perigo da discussão, quando imponderada. Nada mais. Viva Barks e viva Proust...

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