22 de maio de 2006

Quatro zines. AAVV (vários)


Já por várias vezes falei muito sobre os fundamentos do fanzine – quer os seus limites quer as suas potencialidades, quer sobretudo da sua liberdade – para volver às mesmas palavras. Importa não só noticiar os fanzines novos que vão surgindo, como tentar, mesmo que esquematicamente, indicar qual as particularidades e as forças dos títulos entretanto considerados.
Já nesta leva, falarei de três fanzines (um deles é 2 em 1).
1. Raio Verde é o segundo volume do Opuntia Books, pequenos mas deliciosos fanzines editados por André Lemos. Deliciosos é mesmo a palavra e a comparação ainda deveria ser levada àqueles requintados bombons que levam um número mínimo de ingredientes mas nos faz explodir as sensações gustativas numa cornucópia de prazer. Seja, esta é uma linguagem demasiado impressionista, epidérmica, sensacionalista até, para falar de uma publicação de papel. Será mesmo? O Animalia, sendo de um artista diferente (veremos quão diferente!), segue porém uma mesma linha presente no livro de Bruno Borges: poucas linhas, mesmo que tremam, o que não revela falta de decisão, mas bem pelo contrário a certeza de querer trabalhar essa insegurança por ser ela a única capaz de dar força, ou forças, a um desenho. Bruno Borges já trabalha e edita fanzines há muito tempo, na companhia de amigos, mas é mais recentemente que tem revelado uma mais decisiva (esta relativa à vereda, por assim dizer, que escolheu) escolha artística, em que a sua “linguagem” vai ganhando contornos e personalidade. B. Borges parece trabalhar nesse território superficialmente mais ou menos comum com André Lemos, Raymond Pettibon, David Shrigley, Paul Davis, alguns trabalhos de Laylah Ali, etc. (mas cujos fundamentos conceptuais são bem diversos), no qual um aspecto tosco, quase de esboço ao acaso, com correcções e retornos da mão sobre a mancha mal escondem o profundo plasmar com a matéria em uso, e a busca pela mais acertada das tensões da relação entre dizer e mostrar. Remontando à terminologia de Genette, é como se os textos ganhassem aqui uma perene natureza autográfica, não podendo ser apagados sem o material se dissipar por completo, e ao mesmo tempo os desenhos possuírem ecos alográficos, passíveis de uma tradução em conceitos, situações, virtualidades que mais existirão na nossa convivência mental deles do que na sua existência no papel.
2. O que chamei acima de “2 em 1” trata-se do Dazed & Confused (título surripiado de uma conhecida publicação britânica sobre cultura contemporânea urbana, ou então o filme americano?), co-autorado por Joana Figueiredo e Rafael Gouveia, companheiros já de longa data de caminhos comuns (ainda com Marcos Farrajota, com o qual o segundo publicou Perish or Publish, numa parecida fórmula editorial e formal, e também em língua inglesa). O que é a contracapa de um é a capa do outro, e mesmo o interior obriga a uma leitura não só aos saltos como virando e revirando a publicação... deixando-nos “aturdidos e confusos”, precisamente. Rafael Gouveia continua a trabalhar no seu território narrativo habitual, a que nos habitua, e que os leitores desprevenidos ainda poderão revisitar no seu O Manuscrito Durruti (Lx Comics, Bedeteca): pequenos retratos de raparigas no que lembrará uma taberna e outras paisagens urbanas, e fragmentos do que parecem ser entrevistas sobre o que significa estar “dazed”. O facto de retrabalhar os perfis ou, quando as personagens estão de frente, não apresentarem senão olhos em branco, torna o significado do “dazed” muito mais desconcertante do que se esperaria à primeira. Sendo todas as pranchas-vinhetas de Gouveia singulares e separadas, não deixam de nos fazer pensar num ciclo relativamente organizado em torno de um mesmo conceito. Quanto ao trabalho de Joana Figueiredo, trata-se de imagens também elas soltas, independentes, como uma espécie de sketchbook ou panela de ideias que vão surgindo à medida que as 3 horas que levou a fazer o fanzine (cf. a capa). No entanto, uma espécie de título (“I love Satan & Satan loves me story”), e a recorrência de conjunções nos textos que acompanham as imagens fazem pensar que eventualmente existirá mesmo um fio de ligação entre a procissão de estranhas e diversas personagens que vão surgindo nas páginas de Joana Figueiredo. Não sendo propriamente um exercício oubapiano (que é, desde logo, programático e regrado a priori), este Dazed & Confused estabelece mesmo assim regras de leitura mais lúdicas do que estabelecidas de um só modo.
3. Finalmente, eis Néscio, o primeiro volume da Imprensa Canalha, nova aventura editorial de José Feitor, pós-Zundap (e, entretanto, já saíram outros títulos, de que falaremos a tempo). O Néscio apresenta-se desde logo como tentando responder a um tema e convite aos participantes, a saber, uma visão sobre Portugal. Porém, a esmagadora maioria das participações, pelo menos textuais, preenchem esse nicho já expectável de uma ácida crítica “à merda de todos os dias”. Devo dizer que me senti algo descorçoado, tendo em conta as fisgadas prometidas por trabalhos anteriores dos participantes, e, se bem que eu não esperasse uma espécie de Portugal, Hoje; O Medo de Existir em formato zine e com um humor a coincidir, pensava que escapariam à força gravitacional do lamento coberto de bílis.
No entanto, a esmagadora maioria dos textos acaba por dizer aquilo que já todos sabemos, sem grande humor, e a maior parte das vezes com os desenhos a servir de ilustração na sua acepção mais fraca, isto é, sem revelar um sentido mais oculto ou mais significativo do texto. (o que não quer dizer que as ilustrações em si sejam fracas, entenda-se, falo da “relação”). Acho particularmente interessantes as observações de Joana Latka e as de Bàrbara Rof, pois é sempre curioso ver como pessoas de outras nacionalidades e, mais importantemente, de outras estruturas culturais, revelam que as “diferenças” e os “choques” se encontram em pormenores que jamais pensávamos serem sequer dignos de atenção. Não sendo um apreciador de futebol, o texto de Pedro Torneiro é muito certeiro, tirando as bolas na baliza. Idem, em relação à experimentação gráfica de José Feitor - e a sua apropriação de Segar é hilariante e preocupanete, já que o(s) Bunzo(s) é(são) real(is). Os anúncios de Bruno Borges estão entre o retrato do país, o seu próprio projecto artístico e uma mostra da comercialização total dos nossos dias. Finalmente, João Bragança apresenta algumas propostas que deveriam ser levadas a sério e que mereceriam mais atenção mediática do que os canais (em “sinal aberto”, dizem eles) propõem a cada dia... Mas a ideias é a mesma, chamuscado que está o país, é deixar arder... Posted by Picasa

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