1 de junho de 2006
Dragonslippers. Rosalind B. Penfold (Black Cat)
É muito difícil abordarmos obras desta natureza por uma perspectiva estética, sem com isso atropelar os ímpetos criados por ela que são alheios à estética, que procuram transmitir afecções de outras esferas da existência humana. Que misturam a vida na arte e não permitem que se fale só da arte sem secundarizar a vida real que pretendem representar, ou que se instalam de tal maneira que ao procurarmos apontar algo sobre a vida representada acabamos por parecer estar a atacar aspectos sobre essa mesma vida real. Como críticos, a nossa actividade consiste em contornar os obstáculos que o biografismo ergue, evitar as armadilhas do facilitismo em colar o que se conta na obra com o que ocorre no mundo real, e a partir daí criar um qualquer parâmetro de leitura, interpretação, vide, juízo de valor.
Dragonslippers é um livro de uma autora que assina com o pseudónimo de Rosalind B. Penfold, no qual relata, como o próprio subtítulo explicita, “o que uma relação abusiva é”. Trata-se, neste caso, da relação de uma mulher, com uma carreira estável e de sucesso, independente e inteligente, com o ardil pouco subtil de um homem desequilibrado emocional se não humanamente. Por alguma razão, ela vive uma cegueira no que diz respeito aos sinais de perigo e é arrastada para uma relação de dez anos, o que é surpreendente, que se vai denegrindo à medida que o tempo passa. A surpresa em termos criativos deste livro é que os desenhos (não nos apercebemos totalmente se devemos entender as pranchas nessa equação) foram sendo feitos “no momento”, como diário imediato às crises, uma forma da autora assentar no papel os acontecimentos, para que pudesse mais tarde ponderar quais seriam as causas dessas mesmas crises, como modo de procurar onde se encerravam as “culpas”, as quais, a esmagadora maioria das vezes, ela atribui (erradamente) a si mesma. A autora indica ainda, no fim do volume, quais as estratégias que usou depois para coligir todos esses desenhos de anos num só volume, construindo uma história coesa e fechada.
Formalmente, este livro segue aquele estilo relativamente recente de “maus desenhos” que se sustentam precisamente por essa falta de qualidade. Não se tratam de desenhos mal feitos para poder representar, por exemplo, os desenhos que uma criança faria, ou de um demente, ou uma qualquer cena que, graças aos significados narrativos, logo colocaria esse estilo ao seu serviço. Nem sequer de uma espécie de redução gráfica, caligráfica, ideográfica, em busca de uma depuração de formas ou por um qualquer patamar de clareza e correcção mais íntima da obra. Trata-se desses desenhos que nascem da aliança entre a incompetência e a ilusão da liberdade, empregues a uma visão estreita do mundo, as mais das vezes comezinha e muito satisfeita consigo própria, porque partilha da mesma visão do coleccionador: a de que a posse de uma porção, por mais circunscrita que seja, do universo, é similar à posse do universo. Falo desses desenhos que pululam por séries como Dilbert ou Cathy.
Porém, faça-se justiça, Dragonslippers escapa à gravidade dessa monstruosa fraqueza. Em primeiro lugar pois, não obstante o aspecto tosco, errático, quase inculto e atécnico dos desenhos, que não permitem uma colação a autores como, por exemplo, Porcellino ou Trondheim, são fruto – se acreditarmos nas palavras anteriores, de uma necessidade pela imediatez da acção: o apontamento, a nota diarística, a incisão ainda “a quente” para marcar a memória. O peso da rapidez de leitura e da simplicidade gráfica passa assim a servir um propósito, uma função – à qual nenhuma arte pode ser subsumida: no caso presente, um objectivo claro... o de ajudar os outros. Ou mais que isso.
Edward S. Casey, em Remembering. A Phenomenological Study, aquando da discussão da memórias corporais traumáticas, e de como a dor que elas recolhem e reapresentam sobrevive, afirma como são elas mesmo que “tentamos reprimir, deslocar, ou pelo menos censurar”. Não saberemos – nem é central – qual a relação directa entre o relato que nos é apresentado em Dragonslippers e a realidade em que se fundamenta, se bem que tudo nos leva a crer que 1. é precisamente o contrário da repressão o que está em jogo, 2. não há deslocamento de qualquer tipo, já que a atenção é guiada para o âmago do problema, e 3. acreditamos que não haja nenhum drástico jogo de reescrita que tenha limado os acontecimentos, afora a condição necessária de disfarçar nomes, locais, todos os deícticos que levariam à acusação real das pessoas implicadas. Mas é justamente esta relação com acontecimentos reais e a existência do livro como testemunho e exemplo que faz surgir esse programa, que coloca o peso do trabalho de R. B. Penfold fora do campo (mero?) da estética, da exploração narrativa e formal, do seu diálogo com um mercado, uma estrutura de géneros, uma continuidade da banda desenhada. Na verdade, nessa sua vertente programática, está tão perto de livros como os de Citizen 13660 de Miné Okubo e de Maus de Art Spiegelman, como dos livros de divulgação científica ilustrados por Larry Gonick (alguns títulos editados entre nós pela Gradiva). Estes são apenas alguns exemplos que poderiam ser multiplicados noutras direcções. Isto é, com os primeiros na sua faceta de relação-com-o-passado, resolução-da-crise, testemunho, e com os segundos na sua qualidade de exemplo, aviso à navegação, material de alerta e ajuda... Participa, portanto, desse universo de referências de “self-help”, de literatura terapêutica, a qual, não obstante o papel que têm junto a quem os lê, participa de longe do jogo de preocupações e estratégias de procura por discursos mais esteticizantes. E, ao dizê-lo, estamos só a referir-nos a essa mesma importância na discussão estética, e não num ataque ao seu (suposto) “conteúdo”, que cada um estabelecerá ser útil ou não...
Existem, todavia, pequenos pontos onde há um claro domínio das estratégias da narratividade visual, pelas elipses (ex.: pgs. 121, 137-138), pelas inversões “em negativo”, repetições de desenhos e emergência de padrões 39 + 74 + 78, 96-97, 108-109), invenções gráficas, recurso a esquemas, simbologias, a cena do aborto que a própria autora esclarece no prefácio, etc. No entanto, repito-o, tudo isso serve o propósito programático do livro, não o tornando um exercício interessante per se, mas pelas forças que tenta estabelecer sobre a vida humana.
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