1 de julho de 2006
Buja's Diary. Seyeong O (NBM)
A tradição literária mais vetusta e respeitada, muito particular na Coreia, e contrastando com os vizinhos China e Japão, é a dos contos curtos, por oposição ao romance, forma que somente hoje começa a criar os seus vultos nas letras desse país (existindo muitos prémios, o mais prestigiante e “literário” sendo o Yi Ssang, este também um dos mais impressionantes autores modernos, senão modernistas, da Coreia). Essa especificidade cultural terá as suas repercussões noutros modos de produção cultural, sendo a banda desenhada talvez aquele em que isso mais se sente, ou pelo menos é mais visível.
Para além disso, é de sublinhar que a esmagadora maioria das letras coreanas, sendo produzida num país que se auto-assume como “sofrido” e “emocional”, não será surpreendente notar como os géneros mais cultivados da literatura são o realismo, sob todos os seus domínios: sobretudo aquele em que as relações pessoais (familiares, amorosas, profissionais) retratadas servem de metonímia às mesmas paixões e crises do povo em geral, ou do país.
Este livro reúne vários contos curtos de Seyong O (ou Oh, Se-Yong) dessa veia literária. Seguindo um realismo gráfico, o autor revela uma grande preocupação por fazer representar pormenores geográficos, sociais, de vestuário ou de comportamentos, que revelem todo o peso herdado da história sobre as personagens em questão. O lenço na cabeça para prender os cabelos do protagonista de Observe, os óculos amarrados de Ahn em The Real Estate Agency, a boca permanentemente aberta de Shim em Cockfight, são aoenas alguns exemplos.
O realismo metafórico de que falei não atravessa o género a que se dá o nome de “realismo mágico”, mas não impede que não se beba de tradições do fantástico popular, das lendas locais, dos sistemas de crença particulares desta cultura: veja-se The Snake-Catcher Brother’s Dream, por exemplo, ou a presença dos feriados, dos significados dos gestos e dos animais e dos jogos para a “boa sorte” e para os “dias aziagos” ao longo de todos os relatos. Já o processo de metonimização para discutir a história mais recente da(s) Coreia(s), os exemplos de The Little Alley Watcher, Fire, The Secret of the Old Leather Pouch são os mais, digamos, evidentes, se bem que todos e quaisquer dos contos possua ecos das crises que ainda hoje subsistem e são tão centrais para a definição do país e dos seus cidadãos. Essa oscilação nota-se também na inclusão ou exclusão de cenários e na multiplicidade de estratégias organizativas das pranchas, do modo como as vinhetas se instalam na página, etc.
O realismo gráfico de que falei tem algumas excepções, presentes em parêntesis desse realismo, em expressões hiperbolizadas, em “truques” – que apenas não se podem chamar de chibi por não estar a “cumprir” as “regras” da mangá; aliás, esta banda desenhada em particular está mais próxima de uma influência chinesa (Hong Kong) que qualquer outra coisa e bebe muito de mestres realistas coreanos, os quais, tal como se passou em Portugal, criaram muita banda desenhada de adaptação de clássicos ou da História, deixando às novas gerações outros caminhos mais pessoais. Oh, a meu ver, encontra-se a meio caminho desse processo ainda em curso.
A banda desenhada na Coreia do Sul tem uma grande variedade e uma cada vez maior produção (tal como acontece no cinema), e é mais recentemente que tem atingido níveis de sofisticação que poderão apelar a um público ora mais vasto – através dos títulos mais comerciais de manhwa (que não é mais do que “banda desenhada”/”mangá” em coreano) que vão sendo traduzidos por editoras europeias, brasileiras e norte-americanas – ora mais discernível – através de publicações menos visíveis, decerto, mas não menos prestigiantes, ou da troca de informação por outros canais. Se bem que a experimentação gráfica e formal exista nalguns sectores da banda desenhada coreana a grande força está no que já existe como tradução, conforme foi dito: o realismo social, o foco na realidade de todos os dias, uma revisitação das crises herdadas de um século XX que não foi de todo fácil para este país (o colonialismo japonês que foi assumindo contornos cada vez mais brutais até à Segunda Grande Guerra, esse conflito, o facto de se ter tornado no palco da primeira “guerra por procuração” da História entre os Estados Unidos e a União Soviética, a divisão cruel do país, a permanente imposição política e social de regimes militares, as dores de parto de uma economia de mercado cheia de êxitos materiais mas uma débil evolução humana...). Essa atenção não deixa de ter tons “esquerdistas” que não são muito bem-vindos na voz pública coreana (do sul): ser-se comunista é algo ainda hoje “de temer”, e só aos poucos as vozes contestatárias começam a ter presença não só nos conflitos a que assistimos na televisão como se de uma anedota se tratasse, mas também noutros sectores, sobretudo criativos. A banda desenhada, não estando no pelotão da frente, não deixa de participar dessa pequena dissidência da hegemonia existente. Estes curtos contos têm o dom de abarcar todas as pequenas divisões existentes na sociedade coreana: os conflitos de gerações (bem mais radicais que os verificados entre nós, por exemplo), o afastamento das pessoas das suas terras natais (agora na Coreia do Norte), as disparidades sociais entre os que ficaram pobres ou nunca deixaram de o ser e os sempre ricos ou recentemente enriquecidos, e o desprezo de uns pelos outros, a falta de solidariedade dos sofridos, ou a existência dela, a permanente indecisão entre manter valores o mais tradicionais, terra-a-terra, nacionais possível e a “inexorável marcha dos tempos”, como se costuma dizer... Cada uma das histórias permitiria desenvolver discussões sobre esses temas em particular, cada uma delas apresentando uma complexa posição em relação a uma complexa situação desde logo. Algumas dessas implicações são apresentadas no curto mas excelente ensaio sobre estas histórias que se encontra no fim do livro, escrito por Han Chang-Hwa, um jovem crítico, profissional e professor de banda desenhada, que pugna pela abertura da bd sul-coreana ao mundo e do mundo à bd sul-coreana.
Todavia, e sabendo que incorrendo no perigo de reduzir qualquer cultura a um símbolo (sempre oco), poder-se-ia dizer que a Coreia é uma espécie de Janus, com um rosto permanentemente em lágrimas olhando o passado e cumprindo todos os rituais culturais que lhe são próprios, como bolsas de resistência às outras culturas que lhe são impostas (japonesa, antes, norte-americana, ou pior, da “civilização moderna”, agora), e um outro, meio apático, meio curioso, atento a tudo o que se vai transformando em novidade aceitável e imediatamente aplicável.
Existem artistas sul-coreanos de uma nova geração que pugnam por trabalhos mais... estéticos, ou formais, ou experimentais (take your pick), outros que preferem trabalhar nas fórmulas mais comerciais e consensuais, seguras, junto a um público mais conservador (nisto estamos igual por aqui). Estas histórias de Oh, Se-Yong parecem representar esse Janus na perfeição.
Nota: apenas a título de ilustração sobre a banda desenhada contemporânea sul-coreana, veja-se este post.
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