26 de agosto de 2006
Essence. Janusz e Gawronkiewick (Glénat)
Sinais, enigmas, palíndromos, capicuas, reflexos, rimas, puzzles, rebuses, signos, coincidências... são inúmeros os estratagemas formais com que a invenção humana tenta estabelecer ordem naquilo que de mais fugaz existe: a sua própria vida. São métodos de redução da existência que tentam fazer representar a presença de um significado final nas coisas do mundo, uma espécie de instalação teleológica no caos que constitui, no fundo, a vida de todos os dias.
Na banda desenhada não faltam experiências que empregam esses estratagemas o mais centralmente possível, tentando assim fazer mostrar essa “ordem por detrás” que nos escapa na realidade. Estas experiências podem surgir da forma mais simples, como já Töppfer em Docteur Festus havia utilizado duas vinhetas contíguas para representar a queda de um escadote cheio de homens e que acaba por desenhar um “v” na prancha, até exercícios mais complexos como o álbum Nogegon, de Luc e François Schuiten, ou vivendo em plena colaboração com os acontecimentos da acção, como o quinto episódio de Watchmen, de Moore e Gibbons, “Fearful Simmetry” ou muitos dos livros de Marc-Antoine Mathieu, ou então através de exercícios oubapiannos...
Essence, álbum de estreia da dupla polaca de Janusz e Gawronkiewicz, que ganhou o concurso Arte/Glénat, cujo prémio era a sua própria publicação, vive nessa veia de trabalho e investigação. A história parece nascer de clichés aparentes – o detective sem dinheiro, Otto, carregado de idiossincrasias e pouco mais, um Watson que o acompanha, não obstante ser uma ratazana albina – mas rapidamente nos apercebemos ter sido lançados num universo de referências no qual é o absurdo o que desenha os seus contornos: no qual um cientista inventou um método de liquidificar as obras literárias, tornando-as bebíveis; no qual um concurso ubíquo (ecos daquele em que participam os seus autores?) coloca as pessoas em busca do sentido da vida; no qual um gémeo deseja morrer como o seu irmão de nome invertido; no qual tudo parece conspirar para um sentido único e eventualmente alcançável no final, mas que acaba por ser terrivelmente banal ou, pior, invisível aos néscios (ou puros, se preferirem).
Uma das curiosidades efectivas deste álbum é que por existirem vários “fios” narrativos, que se cruzam e se sobrepõem, conduzindo a um intricado novelo (ainda que sem exageros, mantém-se a história numa legibilidade lacra e até clássica), existem também vários momentos de “desenlace”, até ao final-final, aberto, ou esburacado, pois o sentido (quer o da vida, quer o que se buscava no texto de Essence) é precisamente não o entendermos e continuarmos em busca de resposta... Uma “essência”: impalpável mas que se adivinha e nos move na sua direcção.
É muito tentador ver no estilo dos desenhadores uma espécie de conjunto de traços comuns com outros artistas da banda desenhada “de leste”, mas que podem ser tão díspares como o tristemente falecido Edvin Biuković (mais conhecido entre nós via E.U.A. com Grendel Tales: Devils and Deaths) ou Grabowski e Milosev (Daddy is So Far Away… We Must Find Him), se bem que um Comès também me parece ser um eco longínquo presente neste livro: um relativamente tipificado encontro entre o realismo e o exagero da caricatura, contornos nervosos para todos e quaisquer objectos, um generalizado ambiente enegrecido e cheio de informação (manchas, sombras, texturas), os espaços entre as vinhetas a negro aumentando o “peso” desse mesmo ambiente, o contínuo humor cínico do protagonista e o seu pragmatismo quase intolerável.
Se bem que este livro esteja protegido por lei de ser “liquidificado” pelo processo do “Boticário” que ele próprio anuncia, se o pudesse vir a ser transformado, penso que, pelas suas características indicadas e ainda pelas piadas espalhadas a cada página, levaria a um vinho pouco encorpado, mas de uma adstringência bem vincada, e um final que revelaria uma complexa combinação de perfumes diferentes.
Nota: agradecimentos a Nelson Dona, que me emprestou o livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário