13 de setembro de 2006
The Eternals. Jack Kirby (Marvel)
Já muito e tanto foi escrito sobre Jack Kirby, de modos mais ou menos encomiásticos e de leituras mais equilibradas e esclarecidas, que é muito difícil não repetirmos ideias ou conhecidas ou mesmo clichés.
O carácter operático, de máxima espectacularidade e com fortíssimas significações religiosas – com uma carga moral evidente, senão mesmo demasiado óbvia e maniqueísta – são por demais conhecidas em toda a obra do “rei” da banda desenhada mainstream norte-americana. Já o machismo, a insistência no recurso ao deus ex machina, a franca hierarquização entre homens entre estes e outras criaturas (que se notará repetidas vezes por comentários sobre as várias profissões, os limites dos humanos, e ainda a relação para com outras espécies de animais “inferiores”, etc.), em que a moral se pauta pela coragem física e o poder da matéria sobre a mente, em que o mal é real e palpável, justificando assim toda e qualquer acção do herói, já são temas que nem sempre estão no centro das discussões da sua obra.
Todavia, é de facto impossível negar que a sua influência é fundamental no culto da banda desenhada, sobretudo a norte-americana, sobretudo a relacionada com o género dos super-heróis (apesar de ter trabalhado todos os outros géneros do seu tempo e fundado novos, como os romances); não negando que a sua força visual não tenha chegado a outros autores que nada têm a ver com esses círculos de produção, como Gary Panter e até Moebius, e ainda, no seu gesto de inaugurando mitologias, Neil Gaiman (mas só em The Sandman).
Na verdade, mais do que “rei” desse “agrupamento”, Jack Kirby deveria ser visto como o seu primeiro profeta, a voz que clamava no deserto, febril de visões, em que a criação crua, malhada em ferro quente, atinge proporções de dilúvio mas sem nexo aparente, ou sem preocupações de um significado uno e coeso. Em suma, verdadeiramente original (“dar origem a”). Tudo lhe saía da pena, inclusive este The Eternals, já numa fase tardia da sua obra para a Marvel, sem grandes preocupações de articulação com o resto do particular Universo ficcional (o nome que se dá ao conjunto de histórias e personagens que pertencem a uma mesma editora major) – cuja arrumação oficial apenas viria mais tarde – se bem que se procurassem linhas de fuga em relação a tudo que se unissem mesmo ao longe. Se Crisis on Infinite Earths, Zero Hour, Secret Wars, entre outras séries para leitores comercialmente desprevenidos serviu para “arrumar” as prateleiras e caçar novos leitores, só mais recentemente, com obras como Marvels, Earth X, Universe X, no caso da Marvel, e Kingdom Come, no da DC, entre outras, é que se procura atingir uma explicação global de tudo o que se encerra nesses “universos” particulares, bebendo directamente das fontes. As mais das vezes, as fontes vão dar a Kirby. É como se estivéssemos a viver, na banda desenhada mainstream de super-heróis, o grande momento da construção das teorias hermenêuticas, as releituras ordenadas, em relação às Sagradas Escrituras do seu primeiro aedo.
The Eternals tem todos os elementos à superfície. Isto é, não é de modo algum difícil apercebermo-nos de quais as referências literárias a que se reportam, sendo mesmo textualmente citadas (Chariots of the Gods, de Erich von Däniken, por cá editado como “Eram os Deuses Astronautas?”) – estamos numa era em que as explicações de todos os acontecimentos históricos têm uma resposta imediata e auto-conclusiva: se não há tempo para nos dedicarmos ao estudo verdadeiro da história de uma determinada conjuntura, nos seus parâmetros antropológicos, sociológicos, culturais, e até tecnológicos, é fácil: basta dizer “foram extraterrestres”. E como passa a ser um motivo de fé, a discussão termina. Mas se esta atitude faz péssima História e muito menos fomenta uma conversa inteligente e ponderada, pelo menos é capaz de criar ficções maravilhosas (isto, no específico significado do termo literário). Por isso, pouco importa reprovar Kirby nas suas crenças e leituras – é do seu foro pessoal – mas louvá-lo para as transformar em pequenos épicos de bolso que garantem um prazer inestimável (movimento que, por exemplo, G. Morrisson e W. Ellis fazem contemporaneamente). É verdade, será um prazer feito de titilações imediatas, sensações fáceis até, mas o prazer reveste-se de naturezas muito diversas e continua a ser prazer, inclusive estético. Se Hergé é, não obstante a nossa leitura tardia e política dos seus livros, ainda hoje apreciável como um mestre na construção espaçada de uma trama fluida, Kirby domina em absoluto um ritmo selvagem, contínuo, bombástico, cujas unidades, por si mesmas, explodem de energia: quase não há tempo para respirar entre cada vinheta.
É precisamente por essa mesma razão que não nos deparamos com trabalhos muito complexos de composição das pranchas, mas uma apresentação de grelhas relativamente regulares, pontuadas por prachas-vinhetas ou splash pages para fomentar um dramatismo ainda maior, o qual está sempre presente das mais variadas formas: linhas cinéticas, rostos em expressões arrebatadas, poses de acção, pontos de exclamação ou reticências marcando os diálogos... Quer dizer, há forças específicas a Kirby que não são a de mestres anteriores a ele, como McKay, Feininger, Herriman – precisamente mestres de composição. E se, discutivelmente, Will Eisner “inventou” a splash page no seu uso moderno da banda desenhada de acção norte-americana, Kirby transformou-a numa plataforma de abertura do tema que comandaria o resto do episódio (há sempre uma splash page ao virar da primeira página), mimando assim, talvez inconscientemente?, a ópera. O tempo, em Kirby, é linear, até mesmo que ocorram analepses elas parecem servir para impelir sempre em frente num ritmo regular, de staccato.
Este ritmo, que é só ritmo, quase sem melodia, típico de uma produção experimental de música do seu tempo, está presente nos corpos das personagens. Todas elas são olímpicas, isto é, seguem um “modelo” mais ou menos idêntico, dos quais depois se desviam ou se aproximam mais. Estão sempre tensos, em poses nada naturais (que recordam as poses heróicas da estatuária do Realismo Socialista), revelando uma energia a mais que contamina todo o resto, como bailarinos suspensos numa complicada pose e fazendo fluir a tensão dos músculos de modos fluidos mas invisíveis; aliás, se há ilusão de movimento em Kirby é precisamente graças a essa representação parcial dos corpos, onde as perspectivas e as proporções falham, onde se mostram desarticulações impossíveis, que apenas servem esse propósito maior.
Se as personagens são olímpicas, também Kirby o é, enquanto autor, reutilizando aqui um juízo de valor de Harry Morgan em relação a um maior pendor da crítica contemporânea para obras de carácter fragmentário do que para obras “acabadas”, “perfeitas” em si mesmas, que não são senão o território deste autor, não obstante os gostos, seminal. O que Kirby fazia visava a completude total. Nada disto deve ser entendido como instituindo uma qualquer hierarquia de valores onde se contrapõem outros autores – quer por oposição quer por simples comparação - às características da arte de Kirby. Bem pelo contrário, são essas mesmas características que, inerentemente, fazem surgir essa qualidade “olímpica”.
O que não deixa ser curioso, dado o caso de The Eternals, tal como muitas outras obras, como Kamandi, terem sido deixadas “a meio”: será essa infinitude, essa promessa deixada em aberto por Kirby, que terá despoletado toda a sua obra como a camada primordial de onde emergiriam todas as mais recentes “grandes narrativas”, “evangelhos” e até mesmo “Apocalipses” da Marvel e da DC, incluindo a recente revisitação de Gaiman e Romita Jr.
Nota: desta vez não coloquei uma imagem do interior minha, mas antes roubei daqui que pertence aqui.
Fazes bem em dizer "discutivelmente" ao indicar Will Eisner como o inventor da splash page nos comics norte-americanos. A primeira splash page que encontrei, nas reedições que tenho, está no comic book _Detective Comics_ # 39 (Maio de 1940). (Está assinada "Bob Kane", claro, mas salvo erro (faz falta alguma investigação da minha parte) é atribuída a Jerry Robinson.) A primeira splash page que aparece em _The Spirit_ é de Setembro de 1940.
ResponderEliminarTrês notas adicionais:
1 - Considerei splash page a página toda, mas há vinhetas (as quais aparecem com anterioridade tanto em _The Spirit_ como em _Batman_) que quase ocupam a prancha toda, com excepção de uma pequena vinheta. Esse é, aliás, o caminho que vai levar à splash page: a primeira vinheta invade gradualmente o espaço da prancha, o espaço da página. Esse processo é verifica-se primeiro em _Batman_.
2 - _Batman_ e _The Spirit_ são facilmente consultáveis, mas podem existir outras publicações (anteriores a 1940, quem sabe?) onde a splash page possa ter aparecido. Até novas informações considero Jerry Robinson o inventor da splash page (mas porque não Bob Kane?, há escassas certezas). Tive ocasião de perguntar ao primeiro, mas obtive um sorriso e um "não sei!" por resposta.
3 - O que eu acho que Jack Kirby e Joe Simon inventaram (_Captain America_ # 6, Novembro de 1941) foi a double page splash. Em _Captain America_ não há double page splashes puras, mas suponho que se podem encontrar em obras futuras de Jack Kirby.
Eu sei que qualquer dia me arrisco a 1. ser internado, 2. soar como um disco riscado, 3. levar com uma cacetada no alto da cabeça por ti, mas... o inventor da Splash Page foi o Töpffer!! (Mr. Crépin, prancha 1, e outras seguintes) + o inventor da Double Splash Page foi o Töpffer!! (Festus, pr. 63, o famoso "V")... Eu sei que estou a misturar alhos com bugalhos, e se fôssemos por aqui, lá vamos dar com os costados a um Apocalipse qualquer dos monges irlandeses... Mas é só para apontar o facto de que, mesmo, não há balizas temporais na nossa visão...
ResponderEliminarConseguiste fazer uma leitura bastante interessante de Kirby, tendo em conta, não só já terem sido feitas muitas, mas pelo facto de conseguires chamar a atenção para pormenores importantes: o facto das obras do "King", como era apelidado, serem reformulações em BD de algo que tende a ultrapassar o homem e revelando sempre a pequenez deste. Um pequeno ensaio, que, quanto a mim, fica só pela rama mas que me possibilitou na altura (anos 70) saber da existência de “Kamandi”, publicado na revista "Tintin", falava disso mesmo: o homem que acaba como joguete nas mãos dos deuses e de forças que o ultrapassam. Nesse aspecto, o autor referia-se a uma peça do teatro neo-clássico de Jean Giraudoux, “Amphitryon 38”, embora um pouco a despropósito. As tramas são diferentes e pouco há em comum entre Giraudoux e Kirby, a não ser a presença constante de Deuses (a peça é uma nova versão de uma peça escrita por autores greco-latinos como Plauto). Mas algo era certo em Kirby: tipificados da maneira como estão tipificados, os enredos e os cenários (tanto referência se podia fazer, desde "The Last Man on Earth", de Richard Matheson aos hippies) iam ao encontro de dos temas em voga à época, embora sem se saber se isso era uma forma de ultrapassar as limitações do mercado “mainstream” dos super-heróis (e como tal, foi um incompreendido nos anos 70, sobretudo, para as “Majors”) ou uma forma que possibilitou, mais tarde, o aparecimento de obras como “Kingdom Come” e outras. Afinal, o que é Kamandi senão uma reformulação (outra vez essa palavra) de “O Planeta dos Macacos”, de Pierre Boule? Entre todas essas últimas obras não havia grandes variações de fundo e sobretudo de imaginário. Kirby, que sempre gostou de realizar sonhos maus (Galactus e outras personagens), teria obviamente de reflectir sobre a hipótese dos deuses voadores e do homem ser meramente uma cobaia. Escusava era de ser tão repetitivo, como acaba por ser a leitura de Kamandi: uma façanha a acontecer, uma fuga, outra façanha, outras forças ameaçadoras 5 páginas mais à frente (desta fase, a minha obra favorita é a tetralogia “New Gods”). Agora, que nos conduzisse na corda bamba da expectativa (sobretudo, tal como Hergé, ao virar de cada página) brilhantemente, isso já era outra coisa. Nisso não deixava de ser um mestre, sobretudo, por explorar toda a tragédia que se desenrola frente aos nossos olhos de leitores e fazer uso de uma estética grandiosa, como tu escreves, repleta de ideais olímpicos.
ResponderEliminarNuno F.
Toppfermania tudo bem... agora, dar-lhe a nacionalidade norte-americana já é exagero! :)
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