12 de setembro de 2006
Orage et Désespoir. Lucie Durbiano (Gallimard)
Terceiro livro de banda desenhada de Lucie Durbiano, uma ilustradora francesa que trabalha sobretudo no mercado do livro infantil, mantêm-se os mesmos objectivos de público dos anteriores Laurence e Bizou (Les Requins Marteaux), isto é, narrativas dirigidas sobretudo a crianças e adolescentes – o que não impede os adultos de se interessarem pelas mesmas e descobrirem pequenos prazeres na sua leitura. A diferença para Orage et Désespoir (apesar do título parecer apontar para uma escola alemã de poesia ou para uma interpretação poética de desgraças, na verdade refere-se às duas irmãs representadas na capa, depois de passar por uma referência à História da Literatura) passa pelas linhas editoriais da colecção em que se insere, Bayou, concebida e dirigida por Joann Sfar para a Gallimard (e onde mesmo autor publicou os dois volumes de Klezmer). A possibilidade de se publicarem, de um só fôlego, um livro com mais de 100 páginas, em capa dura, a quatro cores, só essas condições, digo, permitem desde logo aos artistas de banda desenhada que aqui participam – não são muitos, Gipi está entre eles, mas não se pode ter tudo – um confortável compromisso entre um trabalho (bem?) pago e que se torna visível, o respeito por um conjunto de princípios editoriais, e a expressão das suas vontades criativas. Falo de princípios editoriais porque esta colecção dirige-se precisamente a jovens entre os 10 e os 16, logo a complexidade possível reside sobretudo na trama, na multiplicação das personagens, mas sobretudo, e isto ocorre com quase todos os artistas presentes, uma descomplexada atitude perante os adolescentes.
Os temas, os acontecimentos, as anedotas, a linguagem é directa, passa pela sexualidade (pela sua descoberta), pelas crises típicas da entrada na idade adulta, pelas piadas que são utilizadas como mecanismo de defesa, pelas difíceis relações com os progenitores, mas mostrando como não há culpas atribuíveis, mas somente más-vontades e malentendidos, e pelos momentos de indolência e letargia pelos quais os jovens passam, como se fosse essa a sua natureza de relação com o mundo. Pouco os surpreende. O livro de Lucie Durbiano explana estas relações de um modo muito bem conseguido, sobretudo tendo em conta como se integra ainda com duas outras linhas tradicionais da literatura para jovens: a fantasia (passando aqui por sereias, vampiros, mortos-vivos, experiências científicas, estranhos rituais) e a aventura (um grupo de jovens mais ou menos coeso e mais ou menos em picardia, um cão, um barco e uma “Ilha Negra” – aliás, a homenagem a Hergé é textualmente explícita, e a a Pratt nalgumas cenas de diálogo “de perfil” – e um mistério que se vai adensando e se tem de resolver). O casamento entre esses “géneros” todos é bem-feito, o que prova que um autor descontraído e ciente das suas ferramentas não pensa em géneros, mas no modo como pode coser as linhas todas que sente necessárias expressar.
O desenho de Durbiano é muito claro, seguro, límpido. As associações com Joann Sfar são por demais visíveis, se bem que as linhas da autora sejam mais “fiscalizadas” pela clareza, e não tão “caligráficas” como o primeiro. O uso da cor é simples, mas significativo, das vivas cores do dia ao tratamento de sombra nocturno, a um referencial uso de pretos e cinzentos para as analepses de um diário, passando por um tom ligeiramente mais sombrio no interior do “castelo”. Existem momentos de inventabilidade gráfica, claro, e até mesmo acontecimentos apenas expressos visualmente, que servem para sublinhar precisamente momentos mais dramáticos e “fora do tom” usual, sublinhando assim também o sentido consciente de composição de página e da estruturação das vinhetas, se bem que sempre subsumido à clareza narrativa. Mas como disse, é um livro descomplexado, competente nos seus fins e que mais uma vez demonstra que a banda desenhada juvenil não tem necessariamente que se construir com clichés de morais bafientas ou aventuras sensaboronas, nem empregar estilos visuais inarticulados da expressão mais pessoal do autor.
Nota: agradecimentos a Simona Accattatis, que me emprestou o livro.
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