Sfar foi estudante de filosofia, o que faz dele – por mais limitado ou inerte que o tenha sido, e duvido dessa condição pelo trabalho que apresenta – um leitor mínimo de uma série de lições que colocam a existência humana numa perspectiva por vezes difícil, por vezes árdua, por vezes trabalhosa, mas quase sempre iluminadora e reestruturante.
Esses possíveis ensinamentos não foram transformados nem transfigurados pelo autor francês em matéria de citação simples nem em fórmulas pontificais nem sequer em pressupostos de criação. São, pura e simplesmente (o que é impossível, pois o pensamento apenas vive da contaminação “impura” entre si e jamais se aproxima do simples, bem pelo contrário dele se distancia como se de um medo se tratasse), baixos contínuos que vão informando de um modo ou de outro a própria vivência das suas personagens sejam estas Fernand, o Vampiro, Ossour, Ulysses, Pascin, o gato do Rabi, o Mosqueteiro minúsculo, ou que pautem a educação de Gamaliel, de Les Olives Noires ou as de Klezmer.
Sfar também nunca escondeu o grande e profundo programa narrativo geral a que se propunha, e onde as suas experiências pessoais se transformariam em matéria plástica passível de integrar as histórias que desejaria contar. Esta frase não é inócua. Sendo este um dos autores mais profícuos, senão gráfico- e verborreicos, deste momento, existem de um modo extremamente visível duas pulsões em curso: a avidez em cobrir ou recriar o mundo inteiro pelo desenho, justificando a multiplicação de temas, de cenários (a-)históricos e (a-) geográficos, de tipologias de personagens e de géneros narrativos, e os compulsivos cruzamentos, por um lado, e por outro a descomplexada vontade de contar histórias. Walter Benjamin, num texto intitulado O Narrador (também traduzível por O Contador de Histórias, segundo Miguel Tamen), mostrava como as transformações operadas na sociedade, transformações técnicas e sociais, alteravam os modos da literatura, estabelecendo uma dicotomia irreversível entre a narrativa, associada à experiência e à oralidade e ao ócio (tempo para contar, tempo para ouvir), “do âmbito do discurso vivo”, e o romance, estrutura que implicava isolamento da parte do escritor (para escrever) e da parte do leitor (confundindo a sua existência própria com o objecto-livro). “Cada vez menos encontramos pessoas com a capacidade de contar uma história como deve ser”. Se bem que não transformarei esta discussão numa hebetude qualquer contra os escritores, o que além de revelar de imediato a minha ignorância seria uma mistura de boutade e de discurso anódino, apenas desejo entroncar esta ideia de oposição literária à leitura de Sfar como um autor que, pela e na banda desenhada, claramente revela o desejo e o cumprimento de retornar a esse mais imediato contar histórias. Um outro elemento dessa oposição em Benjamin é a que existe entre a “moral da história” da narrativa, aberta a uma tradição (um tempo anterior, portanto) e a uma continuidade (um tempo posterior), e o “sentido da vida” do romance, no qual tem de existir um FIM. Nas bandas desenhadas de Sfar essa abertura está presente no culto das séries – que mesmo que terminem se revelam como sempiternamente abertas – e no facto das personagens se autocruzarem por entre os seus universos diegéticos, abrindo(-se) de um outro modo. Estas afirmações não significam, de modo nenhum, que seja uma posição teórica da minha parte que defenda toda a banda desenhada - como se fosse possível falarmos dela, como de outra arte, como se de um monólito se tratasse – dessa perspectiva; temos de ser sensíveis às especificidades de cada trabalho em questão. Neste caso em particular, isto faz sentido.
A banda desenhada apenas lentamente se libertaria de uma necessidade programática de contar histórias, e as mais das vezes associadas a um movimento de fuga, de aventura, de progresso. A sua crise actual em termos materiais e o peso social que tem herdado ao longo das décadas começou a fazê-la vergar no seu interior (enquanto campus) e a tornar possíveis projectos verdadeiramente pós-modernos, metalinguísticos, auto-teorizadores, que são apenas os primeiros passos para um seu crescimento verdadeiro enquanto modo de expressão artístico e intelectual (logo, filosófico em pleno direito de cidadania, e não apenas enquanto objecto de análise histórico-social). Curiosamente, Sfar pertence a um círculo menos ou mais restrito (desde a Association à banda desenhada independente franco-belga-suíça à produção contemporânea) que a fez crescer exponencialmente, sobretudo no plano narrativo (como já o havia discutido), mas de imediato quis mergulhar num movimento que retornasse a um encanto anterior a essa mesma transformação, a uma banda desenhada que, sem desculpas (queria empregar unapologetically, “sem apologias”), apenas se deseja divertir a si mesma, divertindo os outros, sempre através de histórias.
Recorrendo a outro teorizador da literatura, e cultor da metaliteratura, Italo Calvino, poderíamos com ele encontrar em Sfar aquela que é a primeira das qualidades apontadas nas Seis propostas..., a leveza. É também possível encontrar nas bandas desenhadas deste autor francês aquele “símbolo votivo” de que Calvino fala, “o ágil salto repentino do poeta-filósofo que se eleva sobre o peso do mundo, demonstrando que a sua gravidades contém o segredo da leveza”. Neste primeiro tomo de uma nova série, La Vallée des Merveilles. 1. Chasseur-Cueilleur, Sfar vai, não “mais longe” mas “mais claramente” ao encontro da transfiguração da sua experiência real em experiência fictiva e transmissível. De uma forma não só visivelmente imediata como ainda explícita nas notas finais que acompanham este livro, todas e cada uma das personagens aqui apresentadas são as do círculo mais íntimo de Sfar: ele-mesmo, a mulher, os filhos, os amigos, até mesmo o boneco-companheiro da filha. A transfiguração que opera é a de uma retirada, uma fuga, para uma ilha, literalmente, de regressão da contemporaneidade para uma mais urgente fruição das capacidades e necessidades básicas humanas. O “Vale das Maravilhas” é uma espécie de território edénico onde cabe a morte, o sexo, a obrigatoriedade da alimentação, do sono, da defesa, mas em que nenhuma dessas realidades se reveste do peso associado ao “pecado”, ao “desvirtuamento humano”, à “perda” (tão próprias da cultura judaico-cristã; e é necessário ter em conta o judaísmo de Sfar, marcado e assumido como ponto de partida e material de criação). Uma eutopia, ainda que não completa, apontando-se os perigos que vêm de fora (os “civilizados”, os dragões, as criaturas dos mares). Uma das facetas dessa transfiguração pela fuga prende-se com os nomes das personagens: não Joann Sfar, mas “Pot de Miel”, não os nomes dos seus filhos mas “Esprit des Anciens” e “Tigre”... Estamos em crer que estes são nomes talvez derivados desses mimos e carinhos que pertencem ao círculo da maior intimidade (amorosa, familiar, sexual), ridículos para “os de fora”, plenamente significativos para “os de dentro”. Quando os dois caçadores principais se cruzam com velhos amigos, agora “civilizados”, apercebem-se que estes mudaram para novos nomes (nomes nossos, “Emile” e “Franck”), e logo dizem “mas não querem dizer nada”. De facto, há aqui uma profunda sabedoria da parte de Sfar do que um nome representa, apresenta, e denomina.
Contudo, esse afastamento é mostrado não só enquanto programa geral e intrínseco ao que as personagens experienciam como, no interior da história, no confronto com os “civilizados” (Maias?, e depois os amigos); porém, tal afastamento é atenuado na aceitação da agricultura (e leiam-se atentamente os diálogos do protagonista Pot de Miel sobre a agricultura enquanto processo não-natural, não-biológico, para nos apercebermos de algumas das pontas que associam os discursos das personagens a reais posições éticas perante a ordem no nosso mundo, não ficcional), nas sementes da “moda”, na consciência de que a violência não é sumamente necessária...
Sfar emprega aqui totalmente as suas ferramentas, de um desenho quase esquisso, de uma escritura quase garatujo, complementadas pela liberdade etérea das cores da sua colaboradora. Voltando a Calvino, este explicita que “a leveza é algo que se cria na escrita, com os meios linguísticos que são os do poeta”. Mas também os gráficos, acrescentamos nós em prol desta escrita de banda desenhada. Retornamos ao ensaio de Benjamin, no qual ele cita Valéry, que se refere a uma “antiga coordenação de alma, olhos e mãos” de natureza “artesanal, e encontramo-la onde quer que esteja a arte de narrar”. Essa leveza, esse esquisso, esse etéreo jamais tropeça, no entanto, na ordem do “vago e abandonado ao acaso”. De novo e fechando, retornamos portanto a esse poder (afinal, redimido) da narração.
Há um outro aspecto que gostava de salientar, ainda que muito brevemente, e que pertence somente a este livro de Sfar, e não aos outros (mesmo em Le Chat du Rabbin, em que aparentemente se inscreveria um mesmo ângulo). E de novo, recorramos a Benjamin, no mesmo ensaio, quando se refere ao autor russo Nikolai Leskov: algumas das personagens desse escritor são “poderosas figuras masculinas, telúricas e maternais”. À partida, a convivência desses adjectivos poderá parecer paradoxal, até paroxística – lançando-nos num estertor impossível de suportar. À partida, porque estamos cegos por preconceitos e insensibilidades. “Os homens são brutos, as mulheres sensíveis”. “A paternidade é austera e distante, a maternidade protectora”. E quantos mais etcs. O campo da banda desenhada exaura os mitos da masculinidade pela sua vertente mais feroz e muscular: o herói, o super-herói, o vilão. Sfar/Pot de Miel revela-se como um autor/personagem de uma grande potência emotiva, mergulhando numa obtusa masculinidade (ecos de Conan o Bárbaro e outros quejandos) para melhor mostrar a sua faceta maternal, a faceta maternal dos homens, uma sensibilidade toda e só masculina de que os homens são capazes. No ensaio do filósofo alemão, diz-se que esse é um grau “telúrico” (das entranhas da terra), logo longe de um “ideal ascético”: a mão do pai maternal é essa mão que abraça o filho no sono, que o lança no ar, que ensina a pescar e a caçar, que brinca nos mesmos termos. É uma sensibilidade masculina que foi revelada no cinema, como exemplos, de Um Mundo Perfeito de Clint Eastwood a O Regresso de Andrei Zvyagintsev nas relações entre pai e filho (mas que vai tão ao fundo dos tempos até Abraão e Isaac), mas também em Tens a Cara que Mereces de Miguel Gomes.
25 de março de 2007
Testament. Akedah. Douglas Rushkoff e Liam Sharp (Vertigo)
Fazendo parte de uma mailing list onde se trocam informações sobre banda desenhada e se tenta, mas as mais das vezes não se consegue, discutir um pouco mais academicamente alguns dos temas relacionados, enviei há muito pouco tempo um longo email, mais uma diatribe do que outra coisa qualquer, relativo a uma série intitulada Testament, escrita por Douglas Rushkoff e ilustrada por Liam Sharp. Muitas pessoas, secundando os appraisals que vêm na capa e contracapa do TPB, como manda a boa lei de mercado norte-americana, apontam esta como sendo uma nova "pedrada no charco", uma "série monumental", "recorda Sandman em amplitude"... Não concordando, enviei esta mensagem, que aqui apresento com pequenas alterações, acrescentos e correcções, mas não traduzida. (Mais)
4 de março de 2007
Schizo #4. Ivan Brunetti (Fantagraphics)
Por várias ocasiões se repetiu aqui esta ideia: a de que os géneros são raramente estanques e é quando eles se polinizam que se ultrapassa uma inércia desinteressada (em si mesma, para começar) e se atinge uma capacidade libertária de se expressarem para além dos limites previstos. Na história da banda desenhada, a fundação dos géneros e a sua subsequente crise foram imediatos, a sua cristalização tardia. No entanto, apesar de ser apenas com o cruzamento entre o material ficcional pulp e a banda desenhada ou uma produção exclusiva de banda desenhada infantil que se poderá falar de géneros “fechados” neste campo, essa ideia parece ter rendido mais atenção e parece mais natural que qualquer outra. Mas mesmo numa época em que a produção de banda desenhada mergulhava profundíssimamente num contexto de géneros, isto é, um contexto forte e maioritariamente “genérico”, não quer isso significar que não existissem exemplos que escapassem mais ou menos brilhantemente da força gravítica desses géneros... Que bastem os exemplos de Rick Random (de Harry Harrisson e cujo melhor desenhador foi, sem dúvida, Ron Turner) ou Matt Marriot (de Jim Edgar e Tony Weare; série sobre a qual Domingos Isabelinho apresentará um estudo/ensaio no próximo IJOCA). Outra segunda ideia, que com esta primeira se entronca, é a da falta de rigor mas estratégia de fácil resolução de recorrer a uma divisão entre uma “forma” e um “conteúdo”.
O quarto número da revista Schizo, de Ivan Brunetti, vem despoletar mais uma vez estas questões. Não se trata apenas – mas há aqui um papel fundamental na recepção destes trabalhos – da radical mudança de formato, de revista “normal” para um tablóide com melhor papel e a quatro cores. Tem a ver também com um apuramento do seu desenho, em direcção a uma “forma” cada vez mais infantilizada, que vai tornando o seu campo temático mais vincado. As suas personagens têm corpos minúsculos e as cabeças tornam-se cada vez mais redondas e os elementos que compõem os rostos seguindo as regras do “cute” (olhos enormes contrastando com bocas pequenas, um só traço para o nariz, repetição de padrões indicativos da roupa, etc.). Nesse aspecto, apercebemo-nos da contínua e textualmente citada figura tutelar de Schulz, mas Brunetti vai mais além com essa busca pelo “giro”, atingindo territórios análogos como os dos “funny animals”, aqui mais próximo de Richard Scarry ou de Aaron Renier do que da Disney, por um lado, e de Walt Kelly, por outro (figurações idênticas para empregos, mesmo políticos, opostos). Estas histórias (cinco) com animais versam sempre um tema recorrente, são variações de um mesmo tema: o do artista incompreendido (não necessariamente genial) pelos seus pares e público imediato, e a entrega ora à criação ora à exploração material da sua obra; as mais das vezes alia-se a essa primeira incompreensão a não-correspondência amorosa.
Estas piadas em torno do mundo das artes não deixam de ser um chavão insuportável e que Brunetti nem refresca nem explicita; trata-se de uma longa continuidade dos autores de banda desenhada fazerem pouco do círculo das artes visuais, o qual não é livre nem de crítica nem de ridículo, mas em que as baterias dessas piadas são as mais das vezes apontadas para os aspectos mais circenses, superficiais e até mesmo hoje inócuos, passadas que vão décadas desde os gestos de um Duchamp, de um Klein, de um Pollock, aqui mimados em versões requentadas de anedotas que os colocam ao centro. Aventar os exemplos de Van Gogh, de Mondrian, de todos os Expressionismos Americanos e até de Guston (tudo isto presente em elementos perfeitamente identificáveis) não faz mais do que reforçar essa perspectiva romântica sobre o assunto.
A escatologia e cólera que pautavam os números anteriores dos trabalhos de Brunetti estão também mais apaziguados, ainda que os temas de um certo derrotismo existencial continuem presentes. Pergunto-me se estará relacionado de alguma forma com a sua entrega a um trabalho editorial que o terá confrontado de um modo mais íntimo com obras que fazem uma pequena história de afectos e o desviam para outras questões, mais intimistas, calmas e que parecem pretender comunicar de um modo diverso. Todavia, a entrega a algum grau de auto-comiseração continua a vergar o ambiente geral para um tom menos feliz. Quer as histórias com animais atrás referidas quer as biografias de outras figuras famosas (Erik Satie, Louise Brooks, Françoise Hardy, Kierkegaard) – publicadas anteriormente em diversas publicações - apenas servem para se associarem à autobiografia do próprio Brunetti, protagonista da maioria das histórias, todas elas de uma prancha apenas, aqui presentes, e para repisar essa ideia: o criador possui uma sensibilidade extrema, superior à dos “comuns mortais”, mas essa sensibilidade extrema não o torna mais apelativo a um amor mais imediato, físico, passional, e bem pelo contrário acaba por se erguer como uma barreira intransponível que o faz sofrer ainda mais. Isso não é, naturalmente, nem uma verdade absoluta (nunca nenhuma o é), nem se torna material de imediata criatividade e força. Brunetti tem um sentido apurado de reduzir as coisas a um mínimo essencial de informação, visual e verbal, e de as transpor em banda desenhada com ritmos acertadíssimos (a primeira página/capa, aqui mostrada, é um exemplo maior, que serve de homenagem ao criador de Peanuts), mas uma vez que trabalha no extremo oposto a Kochalka (o qual prefere discorrer sobre um amor delicodoce pelas coisas banais do mundo), torna o potencial rigor filosófico das suas ideias numa mera e leviana cobertura a um amor-próprio disfarçado de apatia e desamor.
O quarto número da revista Schizo, de Ivan Brunetti, vem despoletar mais uma vez estas questões. Não se trata apenas – mas há aqui um papel fundamental na recepção destes trabalhos – da radical mudança de formato, de revista “normal” para um tablóide com melhor papel e a quatro cores. Tem a ver também com um apuramento do seu desenho, em direcção a uma “forma” cada vez mais infantilizada, que vai tornando o seu campo temático mais vincado. As suas personagens têm corpos minúsculos e as cabeças tornam-se cada vez mais redondas e os elementos que compõem os rostos seguindo as regras do “cute” (olhos enormes contrastando com bocas pequenas, um só traço para o nariz, repetição de padrões indicativos da roupa, etc.). Nesse aspecto, apercebemo-nos da contínua e textualmente citada figura tutelar de Schulz, mas Brunetti vai mais além com essa busca pelo “giro”, atingindo territórios análogos como os dos “funny animals”, aqui mais próximo de Richard Scarry ou de Aaron Renier do que da Disney, por um lado, e de Walt Kelly, por outro (figurações idênticas para empregos, mesmo políticos, opostos). Estas histórias (cinco) com animais versam sempre um tema recorrente, são variações de um mesmo tema: o do artista incompreendido (não necessariamente genial) pelos seus pares e público imediato, e a entrega ora à criação ora à exploração material da sua obra; as mais das vezes alia-se a essa primeira incompreensão a não-correspondência amorosa.
Estas piadas em torno do mundo das artes não deixam de ser um chavão insuportável e que Brunetti nem refresca nem explicita; trata-se de uma longa continuidade dos autores de banda desenhada fazerem pouco do círculo das artes visuais, o qual não é livre nem de crítica nem de ridículo, mas em que as baterias dessas piadas são as mais das vezes apontadas para os aspectos mais circenses, superficiais e até mesmo hoje inócuos, passadas que vão décadas desde os gestos de um Duchamp, de um Klein, de um Pollock, aqui mimados em versões requentadas de anedotas que os colocam ao centro. Aventar os exemplos de Van Gogh, de Mondrian, de todos os Expressionismos Americanos e até de Guston (tudo isto presente em elementos perfeitamente identificáveis) não faz mais do que reforçar essa perspectiva romântica sobre o assunto.
A escatologia e cólera que pautavam os números anteriores dos trabalhos de Brunetti estão também mais apaziguados, ainda que os temas de um certo derrotismo existencial continuem presentes. Pergunto-me se estará relacionado de alguma forma com a sua entrega a um trabalho editorial que o terá confrontado de um modo mais íntimo com obras que fazem uma pequena história de afectos e o desviam para outras questões, mais intimistas, calmas e que parecem pretender comunicar de um modo diverso. Todavia, a entrega a algum grau de auto-comiseração continua a vergar o ambiente geral para um tom menos feliz. Quer as histórias com animais atrás referidas quer as biografias de outras figuras famosas (Erik Satie, Louise Brooks, Françoise Hardy, Kierkegaard) – publicadas anteriormente em diversas publicações - apenas servem para se associarem à autobiografia do próprio Brunetti, protagonista da maioria das histórias, todas elas de uma prancha apenas, aqui presentes, e para repisar essa ideia: o criador possui uma sensibilidade extrema, superior à dos “comuns mortais”, mas essa sensibilidade extrema não o torna mais apelativo a um amor mais imediato, físico, passional, e bem pelo contrário acaba por se erguer como uma barreira intransponível que o faz sofrer ainda mais. Isso não é, naturalmente, nem uma verdade absoluta (nunca nenhuma o é), nem se torna material de imediata criatividade e força. Brunetti tem um sentido apurado de reduzir as coisas a um mínimo essencial de informação, visual e verbal, e de as transpor em banda desenhada com ritmos acertadíssimos (a primeira página/capa, aqui mostrada, é um exemplo maior, que serve de homenagem ao criador de Peanuts), mas uma vez que trabalha no extremo oposto a Kochalka (o qual prefere discorrer sobre um amor delicodoce pelas coisas banais do mundo), torna o potencial rigor filosófico das suas ideias numa mera e leviana cobertura a um amor-próprio disfarçado de apatia e desamor.