Brian K. Vaughan é um dos mais badalados escritores no momento no mainstream (e middlestream) norte-americano. Autor de duas das mais interessantes séries fabricadas no seio dessa indústria – Y: The Last Man e Ex Machina - vai dividindo o seu tempo em projectos mais atreitos ao facilitismo dos super-heróis, mas através dos “desvios” que pretende explorar (refiro-me a Runaways e a Doctor Strange), e outros mais pessoais. Pride of Baghdad é um deles.
Como o próprio autor tornou explícito numa entrevista, a banda desenhada estabeleceu desde cedo uma tradição de contar “histórias significativas através da antropomorfização de animais”. Esta tradição encontra no Pogo de Walt Kelly um pico nessa curva, e em todo o caso é uma vontade ficcional que recua até Esopo e passa por uma das partes dos Caprichos de Goya. Pride of Baghdad abre-se-nos com o seu mundo realista e natural, mas no qual aos animais é dado não só o dom da fala como de algum pensamento e capacidade de decisão. Quatro leões escapam de um jardim zoológico de Bagdade e lançam-se na descoberta forçada do mundo (pretensamente livre) dos homens no preciso momento em que as tropas americanas invadem a capital do Iraque na última das guerras nesse país.
Uma vez que em inglês a palavra pride significa tanto “alcateia” (o nome colectivo a empregar em português com estes felinos) como “orgulho”, é natural que esse trocadilho se verifique não só textualmente neste ou naquele momento dos diálogos entre as personagens, como seja o baixo contínuo de toda a temática do livro, mas ultrapassando a esfera dos animais. O orgulho estará na força dos muitos ou na decisão consciente do indivíduo? Será mais importante a manutenção de um estatuto em nome de um orgulho ou arriscá-lo pela mudança? Não será através da conquista, mesmo que arriscada, que realmente se poderá alcançá-lo? Essas são as questões que as personagens procuram responder através das suas acções e périplo. Mas como disse, são ecos que ultrapassam as bestas e poderão ser aplicadas aos humanos (envolvidos na diegese ou não), pois afinal, não estando ao centro do palco, ainda assim as tropas invasoras/libertadoras dos norte-americanos são vistas como gigantescas e invencíveis, o que as torna, a um só tempo, orgulhosas... e monstruosas. Vaughan parece explorar sempre (pelo menos em Y: The Last Man e Ex Machina) essa ideia: não existe qualquer tipo de maniqueísmo, mas simplesmente decisões que tomamos no calor das circunstâncias, e por vezes nem sempre as melhores ou as que trarão as mais simples consequências. Não existe moral aqui, a não ser a de que a balança está sempre em movimento.
O livro segue ora regras naturalistas ora as maiores liberdades imaginativas. É brilhante o momento em que ao entrar num dos palácios de Hussein são defrontados com um mural ou pintura de um imenso leão alado. Pouco importa se os leões não vêem imagens a duas dimensões, ou se seriam capazes de pactuar com animais de outra espécie... são esses os espaços que a ficção permite para nos esclarecer de um outro modo as empatias, emoções e surpresas sentidas pelos leões... É uma espécie de Animal Farm, mas onde os mais fortes estão enclausurados num espaço de terrível ingenuidade. Os desenhos e a aproximação formal permitida por Niko Henrichon, empregando um estilo quase ilustrativo, simples e límpido, apenas reforçam o ambiente dessa ingenuidade (como se folheássemos um livro infantil que escondia um conto mais violento sob a superfície).
Outros episódios reveladores da ideologia que se analisa em Pride... se estabelecem, sobretudo através da distinção que as duas leoas, Safa e Noor, fazem em relação aos “caminhantes” (os homens), a primeira e mais velha achando-os como protectores a quem se deve alguma lealdade, a segunda e mais nova afirmando “aqueles que nos mantêm prisioneiros serão sempre tiranos”. De certo modo, esta mesma discussão poderia ser aplicada a praticamente todo o ser humano, mas sobretudo numa relação com os regimes em questão (iraquiano e norte-americano), e as diatribes políticas a que leva. Veja-se o urso a chamar “radicais” às leoas e entenderemos a dicotomia entre os “pombos” e os “falcões”, os “de esquerda” e os “liberais”, entre tantas outras divisões que procuram racionalizar e explicar as guerras do petróleo. Não há moral, não há lógica. Vaughan dá-nos o espaço para perguntar, mas não tem resposta a dar, não há que tê-la sequer.
E no fim, no fim, a finíssima faixa entre a liberdade e a morte não é nada leve....
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