Há uma regra mais ou menos implícita neste blog que é a de me limitar a discorrer sobre livros que tenham sido editados nos últimos dois anos da data presente, decisão arbitrária mas que me permite ter algum controlo nas leituras e seguir uma estratégia mista de discussão contemporânea, alerta do que nos é relativamente acessível, desejo de estabelecer diálogos (mesmo que silenciosos). Não me limito, como será de desconfiar, a procurar ler apenas o que surge no momento, mas não remeto a esta classe de interesse textual – no blog – as leituras que faço de bandas desenhadas mais antigas. Isto para justificar onde não o preciso, a bem dizer. Ultra: Seven Days foi editado há cerca de dois anos, mas só me foi possível conhecer este trabalho agora. A surpresa que me causou foi motivo para o relatar aqui.
Já muito foi escrito sobre o revisionismo, a reconstrução, e a reinterpretação dos super-heróis. Watchmen continua a ser apontado como a grande referência, e há mesmo um livro semi-académico semi-simplificação que dá conta desse mesmo revisionismo: How to Read Superhero Comics and Why, de Geoff Klock. Mais recentemente, outro livro de uma natureza idêntica foi publicado, de Peter Coogan, Superhero: the Secret Origin of a Genre. Havia muito que dizer sobre os super-heróis, uma vez que existem muitos. É o único género especificamente criado na banda desenhada, nos Estados Unidos, e é nela (e neles) que encontra maior culto, se bem que o cinema explore as suas dimensões mais espectaculares – raramente as mais revisionistas. E, se encararmos as coisas de um modo aberto, dar-nos-emos conta de que todas as gerações desde os anos 40 reformataram os super-heróis conforme as suas práticas e leituras da sociedade. Nos anos 50 ridicularizaram-se, nos anos 60 ganharam contornos mais frágeis, nos anos 70 olharam para assuntos domésticos (estamos sempre a falar dos Estados Unidos, obviamente), nos anos 80 ensombraram-se, nos anos 90 extravasaram pela violência, nos anos 00 lançaram-se em todas as direcções. Ultra é uma outra dessas direcções.
Após anos e camadas densas de páginas de ficções com este tipo de personagens, repetidas vezes a pergunta “O que aconteceria se os super-heróis existissem no nosso mundo real?” encontrou resposta em... mais ficções. No rol das produções que se poderiam chamar ao palco, temos o incontornável (e merecidamente) Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons mas também a terrível série de títulos do "Novo Universo" da Marvel dos anos 80. mais recentemente, escritores como Warren Ellis, Mark Millar, Grant Morrison e Ed Brubaker tentam responder ao mesmo – sobretudo com o grupo Authority – mas a televisão não é alheia a esse fenómeno, com Heroes.
Não estou a mencionar a televisão por acaso. Acontece que cada vez mais a produção destas ficções se fazem no interior de aglomerados mediáticos, e tentam procurar caminhos para o sucesso imediato de fórmulas. Uma boa e forte análise sociológica e económica explicaria toda uma série de factores que concorrem para estas histórias, da qual Ultra: Seven Days faz parte.
Muitos dos leitores e espectadores da cultura norte-americana saberão como é banal a situação em que, para se explicar algo a alguém, se recorre à fórmula “x meets y”, em que somente a ideia da colação de dois produtos previamente reconhecíveis gera de imediato uma apetência para essa nova suposta síntese (no caso dos elementos x e y serem apelativos à pessoa em questão, claro). Não sou propriamente um adepto desses facilitismos, mas no caso presente a fórmula repetida “superheróis meets O Sexo e a Cidade” não podia ser mais exacto. Esta é a pequena saga de uma super-heroína, Ultra/Pearl Penalosa na sua atribulada crise com o sexo oposto, oposição essa expressa em muitos sentidos. Se bem que existam momentos de acção, muito próximos de uma ideia comercial de “money shots” que garantam um pequeno prazer na redundância e confirmação das regras, a maior parte das páginas são dedicadas aos momentos de diálogo entre Luna e as suas duas amigas com quem sai, vai ao café, sai aos bares, ou com os homens com quem se consegue aproximar mais (para se afastar logo a seguir...). Se bem que não estamos perante uma personagem feminina tão chã e poderosa como as de Doucet ou Satrapi, nem sequer de Adrian Tomine, no interior desta “lógica de mercado”, Ultra é uma personagem bem desenvolvida e, pois é essa a dimensão a que se presta, divertidamente humana, tanto quanto possível nestes universos programáticos.
Para ser mais explícito, é quase como se os irmãos Luna (ambos têm a ideia, Joshua desenvolve-a e faz a mise-en-page, Jonathan executa-a) estivessem menos preocupados em construir um discurso de banda desenhada – a nível das especificidades formais, não há muito a destacar, limitando-se a sua linguagem a procurar caminhos seguros, límpidos, de máxima legibilidade; até as focalizações visuais exploram pouco dramatismo angular,m preferindo “enquadramentos de câmara” a nível do corpo humano, como nas séries de televisão mais regulares – do que em construir uma narrativa clássica, não obstante o menor grau de naturalismo pela presença de superseres. Se desconfiássemos de um exercício de pitching e respectivo storyboard para um projecto televisivo (e de merchandising, tendo em conta os “falsos” anúncios e publicações internos ao universo diegético do livro?) gorado e desviado para as páginas então de comics, não penso que estivéssemos a fazer um desfavor ofensivo.
Um título leve, sem sombras de constrangimentos ou preconceitos, e por isso curioso por viver à margem ou num espaço de compromisso entre os seus potenciais e separáveis (ou temo estar a fazer uma violência falsa, uma vez que não serei o único leitor comum dos dois territórios) públicos.
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