
Com o advento da revista Garo em 1964, marcou-se uma nova fase da produção e fruição da banda desenhada (mangá) no Japão. A seriedade que ganhava, se numa primeira imediata fase se prendia sobretudo com a representação da violência e do sexo – de que a as histórias de Sanpei Shiarato ou de Kazuo Koike não eram excepção – logo encontraram espaço para fazer retornar um olhar à mais chã e sofrida das experiências reais, sobretudo com Yoshiharu Tsuge, mas também com Yoshihiro Tatsumi. Nessa mesma época, os estúdios de Tezuka trabalhavam na produção de filmes de animação das mais diversas qualidades. Lentamente, Tezuka deseja lançar-se na ocupação de outros sectores de produção, sobretudo de banda desenhada, que agora, graças a essa nova geração de autores mais adultos, que conseguiam fazer com que um público mais adulto, mais educado, se entregasse à leitura do que antes era apanágio da juventude, se prometia a si mesma novos territórios a explorar. Não posso afirmar de modo nenhum se a atitude de Tezuka era idêntica à das indústrias Disney nos Estados Unidos. Quer dizer, o termo de comparação não é perfeito nem sequer de boa gestão dos seus elementos comparáveis, mas aponta a uma possível direcção da forma como o mercado japonês se balançava, e em como as vozes de um possível underground rapidamente encontravam ecos dentro de uma veia mais mainstream. Seja como for, o aparecimento dessoutra banda desenhada colocou Tezuka também à procura de outros temas e abordagens, das quais nasceriam alguns dos títulos já aqui discutidos, como a série incompleta Fénix, Engolir a Terra, A Canção de Apolo e o grande projecto de Buda. Estes outros dois títulos presentes, Ode a Kirihito (de 1970 a 1971) e Choujin Taikei (de 1971 a 1975) – este último traduzido em inglês por The Line of Winged Species e em francês (a presente edição) por Demain les Oiseaux, mas que é traduzível por “Sistema dos Pássaros” – são, como dizia, mais dois exemplos. Tendo em conta que, diferentemente de Fénix, estas duas histórias se encerram num só volume (nas edições indicadas; são ambos grossos, Ode... com mais de 800 pranchas, Demain... mais de 300), são excelentes pontos de partida para conhecer este lado de Tezuka.
Ambas as obras abordam, se bem que em distribuições diferentes, dois temas profundamente interligados: o poder e a espiritualidade. Ode to Kirihito conta-nos a história de uma misteriosa doença que faz as pessoas se transformarem gradualmente numa espécie de lobisomens, até morrerem, e todos os jogos de poder entre médicos para identificar a sua origem, garantirem o sucesso das suas publicações e assegurar prémios e reconhecimento. Claro, a cura também se prevê nesses planos, mas não necessariamente nas primeiras prioridades. A trama complica-se quando um médico, Kirihito, se envolve pessoalmente (e fisicamente!) no assunto, caindo numa sucessão de imbróglios e peripécias que tornam a sua queda inevitável. E subsequente salvação, pois o que Kirihito prova – e daí que mereça uma Ode – é que mesmo mergulhando na mais abjecta das humilhações e animalidades, o ser humano se revela enquanto tal na sua mais livre das expressões. Num momento em que muitas pessoas abdicam dessa (curta? breve? fátua?) dignidade por uma mão-cheia de patacos, estas ficções devolvem-nos ainda esse tipo de fé. Moral básica? Sem dúvida, tal como a certeza no respeito que devemos uns aos outros independentemente de todas as contingências flutuantes (idade, cor, altura, curvatura do pêlo). Tal como aos livros, aos quais devemos lê-los primeiro antes de sobre eles reflectir e julgar, tal às pessoas.

Demain les oiseaux é uma longa narrativa que acompanha a evolução dos pássaros para uma nova raça inteligente à face da terra, e cujas primeiras acções se revelam na vingança para com o ser humano, que lhe usurpara – viremos a saber, nós os leitores – o lugar de herança. Neste livro, de certa forma como em Fénix, não temos uma única personagem (no outro livro há a própria fénix, claro), mas vários episódios (19) através dos quais acompanhamos os séculos com esta nova raça de criaturas, e a emergência dos seus modos de vida, de civilização, de exercício da razão e do poder que, pouco surpreendentemente, mimam com grande precisão o nosso próprio – existem mesmo animais de estimação: os humanos devoluídos. A ficção como espelho (pouco) distorcido. Ou apenas à superfície, substituindo a epiderme lisa por outra coberta de penas...

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