9 de dezembro de 2006

Avaler la Terre. Osamu Tezuka (Kankô)


“Engolir a terra” foi publicado no final da década de 60, num Japão que começava a dar os primeiros passos seguros enquanto potência económica mundial, e onde o trauma da guerra se começava a dissipar em nome de preocupações mais entregues ao futuro. Foi também o primeiro trabalho de Tezuka para a Big Comic, uma das primeiras revistas semanais de mangá, e que tinha como público-alvo uma faixa etária de adolescentes mais velhos ou jovens adultos que não tinham ainda recebido uma atenção mais complexa de Tezuka. Se bem que esta obra seja posterior a Phoenix, uma das mais longas sagas (inacabadas) do autor, esta é a primeira tentativa num estilo que de facto se reveste de contornos mais sérios e adultos. Tezuka produzia cerca de 300 a 400 pranchas por mês, marcando assim um ritmo que seria emulado por muitos outros autores posteriores, vergava já sob o peso de uma companhia enorme de produção e sentia a necessidade de dar conta dos tempos que vivia, tendo em conta de uma forma especial o sucesso de outro tipo de banda desenhada então aparecendo no Japão, a gekigá (cujos elementos mais sombrios, mais realistas, mais agregados a pormenores aparentemente banais do quotidiano, começam a invadir as páginas de Tezuka).
A linha de fundo é relativamente simples, tratando-se de uma imensa vingança da parte de uma mulher, que terá como alvo não apenas o homem com quem sofreu directamente, mas todos os homens e, enfim, o mundo que eles construíram, marcado pela corrupção do dinheiro, da cobiça, da luxúria e do uso das mulheres como objectos, e pelas marcas da guerra e da selvajaria que ela impõem. Como consequência, Avaler la Terre acaba por ser também um comentário sobre essas paixões baixas do género humano e talvez uma chamada de atenção a um Japão que se desligava paulatinamente das suas tradições e filosofias mais estreitas à terra...
O tom mais sério a que me refiro está apenas a um grau de diferença de outros trabalhos de Tezuka, obviamente: existe ainda todo o humor gráfico “típico” da mangá (digo-o entre aspas pois é Tezuka quem o funda), os pequenos desvios que nos estranharão a nós, ocidentais, habituados a que um mesmo tom se mantenha de ponta a ponta, a figuração das personagens é ligeiramente diferente dos tratamentos mais arredondados e infantis de trabalhos anteriores, mas todo o resto das estratégias é idêntico... Digamos que a diferença fundamental reside de facto no conteúdo da história e nos temas que aborda. Além disso, há um curioso e oscilante ritmo dos “episódios” (que são nomeados a partir de elementos musicais: tema, motivo, desenvolvimento, variante, scherzo, etc.): não estamos perante uma série como Phoenix em que cada episódio faz uma história completa, conjugadas as quais se atinge um sentido maior, ou como Atom, de episódios sucessivos e de aventura do protagonista. Há uma linha contínua (a vingança das filhas de Zéphirus), que se vai desdobrando conforme seguimos o que se passa com os outros personagens envolvidos, mas há por vezes desvios (como no 11º episódio) por histórias de personagens sem qualquer relação com a narrativa central, ligados a ela apenas por um ténue fio material (a pele sintética, neste caso). Curiosamente, Kasuo Koike, um dos nomes mais sonantes precisamente de um estilo mais adulto e violento da mangá (sobretudo o famosíssimo Lobo Solitário), criaria uma série intitulada Yuki, com Kazuo Kamimura, que parte de um pressuposto semelhante aos traços largos desta história.
Não sendo uma obra tão profunda como a da vida de Buda ou Phoenix, é ainda assim um trabalho curioso que nos permite entender como Tezuka tentava dar conta da evolução dos tempos de um modo não só informado como de uma mentalidade atenta aos outros e alerta aos problemas dos excessos (do machismo, acima de tudo). Para além disso, a estrutura algo flutuante da narrativa não deixa de se mostrar irmanada a uma estratégia já aqui discutida nos exemplos de Seth, Clowes ou Sapin, mas que no encerramento da saga se mostra um todo acabado.
Nota: um problema "físico" é que este tankobon - livro pequeno de mangá - é de facto tão pequeno, que as letras do texto são minúsculas e são um desafio à leitura, até para pessoas habituadas a ler em transportes públicos ou apenas semi-míopes, como eu. Assegurem-se de boas condições de ambiente e luz para evitar enxaquecas.Posted by Picasa

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