9 de dezembro de 2006

La Pluie. Philippe de Pierpont e Eric Lambé (Casterman)


Uma coisa é ou não é. Se uma coisa é, ela tem de sê-lo de uma determinada maneira ou, por outras palavras, ela é assim/isto e não assim/aquilo. Para além disso, a coisa tem toda uma série de qualidades perceptíveis, que nascem da sua contingência, que podem ser a relação entre forma e matéria, a quantidade, o tempo e o lugar, a acção... Na filosofia, desde Aristóteles mas com um grande peso instituído por São Tomás de Aquino, é ente o que se chama qualquer coisa que é, essência ao ser de certa maneira dessa coisa, e acidentes às qualidades que essa coisa possui. São as diferenças entre essas noções o que permite classificar e organizar o universo. O homem muitas vezes enamora-se dos acidentes, sem reflectir sobre o facto de muitas vezes as coisas participarem da mesma essência, logo merecedoras de uma mesma atitude, respeito, amor. La Pluie, segundo trabalho da colaboração entre Pierpont e Lambé, é um exercício sobre os erros de perspectivação instigados por essa mesma falha. (Mais)

Há um evento imenso que afecta uma cidade, um mundo, um casal, uma chuva que não cessa, que não parece natural, que tudo altera. A cidade e o mundo é afectado, seguramente, mas não é esse o foco da atenção do livro. Seguimos antes a relação do casal, sobretudo a partir da perspectiva do protagonista-narrador, e de uma relação de afastamento paulatino provocado pela intempérie, de aproximação (por analepse) e novamente de aproximação (o final feliz). Esta atenção, esta escolha sobre o individual do que o universal enquanto palco da afectação do evento, é dirigida por ele, e é mesmo verbalizada (pg. 120). Este protagonista é professor de natação e vive na água, senão mesmo pela água. Mas a chuva que não cessa, sendo ela mesmo água, não tem o mesmo peso ou valor: é negativa, mói, corrói a cola que une as juntas de toda a cidade, das relações sociais, das relações amorosas (a que vemos, pelo menos). A relação é corroída precisamente porque a mesma falha em ver o que há de comum (a essência) entre a água da piscina e a água da chuva, por todos os que sofrem a segunda, se passa no vislumbre das pessoas que participam na acção: ele não quer vê-la a ela como “aspirante a mãe”, ela não o consegue convencer em ser “pai”.

Estou em crer que quando uma mulher entrega o seu ventre a um homem, há um elo complicadíssimo de desejos vários, que terão a ver com os corpos implicados, sem dúvida, mas também com uma espécie de eternidade votada no tempo. Isto para além das contingências sociais e históricas, passíveis de serem chamadas de “machistas”, “homogéneas”, “societais”... É algo que pertence à esfera do sistema límbico e nos fala de um modo idêntico ao dos pesadelos, com um peso maior e mais premente que o dos sonhos, que nos impele a acções forçosas, que nos fala enquanto animais pertencentes à terra, de onde a água também brota.

O trabalho anterior dos autores, Alberto G., partia da obra e da vida de Giacometti para fazer uma elaborada teoria das teias que unem de forma profunda a solidão mais profunda à entrega a um outro (amor) da maneira mais totalizante. Esse livro é obviamente informado pelo pequeno volume de Jean Genet dedicado ao escultor suíço, O Estúdio de Alberto Giacometti. Nele, encontramos a seguinte frase: “é preciso uma arte – não fluida, antes pelo contrário, muito dura – dotada do estranho poder de penetrar os domínios da morte”. Ora, há qualquer coisa na arte de Lambé, uma sua qualidade (da sua natureza, não falo de “níveis”), que me recorda aquela que se torna possível com alguns stills de vídeo, que se mostram como despojadas de exactidão, de contornos definidos, uma luminosidade difusa que confunde as formas, e que opta as mais das vezes por um determinado “desvio” de enfoque. 

Os enquadramentos inauditos remetem sempre não para uma distracção de um suposto “objecto central”, mas para uma atenção especial a pormenores. Fora da cena da piscina, que informa como “razão” clara o desvio da focagem dos corpos e objectos debaixo de água, todas as outras focagens, porém, acabam como que ainda informadas por essa cena. Como se o protagonista vivesse permanentemente num nível que lhe pertencesse somente a ele, “sob” o dos outros personagens, das outras pessoas. Que todas estas características se plasmem à de uma certa família do vídeo não deverá ser surpreendente, sobretudo tendo em conta aquela a que se costuma dar o nome (mal ou bem, escapa-me), de “experimental”, como o Sans Soleil de Chris Marker. Espaços de criatividade onde são postas em relação, questão e dúvida dicotomias como as de ficção e verdade, realidade e transfiguração, etc. Alberto G. e Ophélie et les directeurs des ressources humaines (apenas de Lambé e baseado nas cartas entre Fernando Pessoa e Ofélia) poderiam ser mais claros nesse aspecto, mas apenas a título nominal, já que La Pluie se entrega igualmente a um exercício de “outrar” a Europa de um modo muito próximo aos Notes pour une histoire de Guerre, de Gipi.

Todavia, como se disse, é para se mergulhar na relação entre duas pessoas. Mais, para se penetrar os domínios da morte que aqui estão presentes no desacordo em relação ao nascimento, no afastamento do casal (que culmina num “grande vazio”, uma íris vazia, pg. 135), no dilúvio que vem castigar a Terra (se bem que todas estas acções se invertam em benesses). Se bem que os corpos dos dois protagonistas sejam sempre visíveis, apresentados, escrutinados até na sua intimidade, parece que apenas na sequência sob o sol, na praia (analepse), aquando do diálogo sobre “bebés” (pgs. 106-107), é que os rostos ganham toda a sua cidadania e peso de presença. É aí que se instala uma paradoxal presença e afastamento.

O estilo diagramático de Lambé está aqui bem mais suavizado do que em Les Jours Ouvrables, mas ainda assim sublinha os aspectos diegéticos em que se procura talvez apontar um caminho mais metafórico, mais alegórico, quem sabe até de “aviso à navegação”, procurando os traços da morte que remetem novamente ao mais vivo (o diametralmente oposto à obra de Tilmann, onde se vê na vida o que remete à morte) . Uma arte, “dura”, que partilha um pouco de tudo, como todas as obras sérias e fortes. Desta e doutras artes. 

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