Não posso afirmar conhecer toda a produção de Marko Turunen, mas talvez não seja um erro, pelo menos crasso e redutor, dizer que ele explora dois caminhos paralelos. E o paralelismo aqui não serve de mera metáfora, mas verdadeira estrutura: pois são dois caminhos equidistantes em qualquer ponto do trajecto, o qual é partilhado.
Por um lado, temos uma espécie de “linha clara”, com a qual já trabalhara em Kill Bunny, vols. 1 & 2, e agora este Karhu (“Urso”). Violência, sexo, um humor feito de clichés e bitola baixa são os ingredientes, retirados de géneros bem diferentes daqueles que costumam ser os pertencentes a esta figuração. Mas é aí que reside a paródia, mais, a ironia desse uso “desviado”. Dentro do mesmo espaço de exploração, mas num meio diferente, inscreveria os seus curtos episódios na animação de volumes, que emprega personagens fisicamente análogos a uma família na qual os Moomins de Tova Janssen (recentemente reeditados pela Drawn & Quartely numa edição completista) também se encontram (na raiz?), mas que Turunen explora para pequenas rábulas absurdas. (Mais)
Por outro, temos uma “linha pesada”, de uma figuração mais acabada, pormenorizada, por vezes apontando mesmo à apropriação de imagens outras. Essa apropriação desdobra-se entre a dos cenários que parecem remeter para um universo da fotografia, numa obsessão por detalhes presentes nas ruas, etc., por outro no uso de personagens retiradas de imaginários diversos, como já tivemos oportunidade de discutir a propósito de La Mort Rôde Ici. É precisamente nesse estilo que Marko Turunen se apresenta com a história Ufoja Lahdessa (UFOs in Lahti) no livro Aleksis Kiven Päiva, num campo em torno da ficção científica clássica (aliás, nesse aspecto de citação do imaginário da série B, deveríamos trazer à colação a série sobre O.V.N.I.s de Jacques Lob e Robert Gigi e Los Invasores do espanhol Max).
Esta é uma publicação colectiva (com tradução em inglês na margem inferior das pranchas), logo, com mais autores para além de Turunen, obviamente. Antes de falarmos de alguns deles, é necessário notar uma coisa: este livro foi feito segundo um projecto análogo ao do proposto por McCloud, do “24 hour comic”, e outras variações. A 10 de Outubro, é o dia de Aleksis Kivi (o título significas “dia de A.K.”; o sufixo –en é uma espécie de genitivo), grande autor de teatro e o grande romancista da Finlândia (apesar de ter sido apenas um romance publicado: Os Sete Irmãos, leitura obrigatória na escola, e talvez conheçam o filme Sete Noivas para Sete Irmãos, baseado nele); pois bem, a única obrigatoriedade era fazer uma banda desenhada que retratasse os eventos passados na vida dos autores nesse mesmo dia, em 2005, feriado.
Assim sendo, a esmagadora maioria das histórias versa aspectos muito concretos da vida quotidiana na Finlândia, pequenos apontamentos diarísticos ou empregos menores da memória para um relato simples, mas que, longe de afastar leitores “de fora”, permite até um grau de estranheza e aproximação, a um só tempo. Não posso de forma alguma descobrir, não conhecendo a obra de Kivi (apesar de existir uma velha publicação em português do livro citado), deslindar quais serão os possíveis elos directos, fortes ou não, entre a obra do escritor e as histórias aqui apresentadas, mas uma certa expectativa em ver modos de lidar robusta e amorosamente com a adversidade da natureza em torno como caminho para a robustez moral e individual estão aqui presentes, sublinhada de maneira clara e representativa na ideia de “passeio” ou “movimento”, repetido das mais variadas maneiras em cada uma das contribuições. De todos os autores presentes, permitamo-nos a citar, para além de Marko Turunen (autor da capa e de uma colecção de “U.F.O. sightings”), Penti Otsamo, que alguns leitores poderão conhecer da edição americana de The Fall of the Homunculus e participações nas antologias da Drawn & Quarterly, aqui com uma história feita de vinhetas “descentradas” sobre os objectos sob a perspectiva dos olhos do próprio autor, contornando a noção de diário de um modo invulgar. Para os que se recordam dos artistas finlandeses presentes no Salão Lisboa de 2005, encontrarão aqui histórias de Jyrki Heikkinen e Kati Rapia, ambos com passeios pelos parques das suas cidades respectivas (aliás, acompanhando a biografia dos autores, no fim do volume, vem uma pequena descrição das suas cidades, todas diferentes, apontando para este livro como uma espécie de catálogo nacional; um mapa psicogeográfico, de certa forma...).
Dos restantes seis artistas presentes, citarei ainda um outro, também um dos editores, Mika Lietzén, que no seu Turku (The written man), de 47 pranchas regulares, e maioritariamente “mudas”, nos mostra o declínio físico da vida de um escritor, cujas memórias mais vivas apenas se limitam às últimas páginas que escreve à máquina, já que o resto dessa sua vida é apenas vista como um peso para os outros (representados aqui pelo jovem homem que o vai procurar e cuidar, talvez o filho, um amigo...não é explicitado). Se bem que o desenho não seja surpreendentemente virtuoso, deixando apenas transparecer a presença das personagens e dos objectos através de contornos breves e interrompidos, a expressividade mínima das mesmas personagens, o ritmo compassado das vinhetas, a gestão dos silêncios com as frases coloquiais bem empregues, e o tom subentendido de peso existencial, torna esta a mais forte das histórias do livro, em termos humanos. Não tem qualquer tipo de clímax, nem de fecho de arco narrativo, acoplando-se assim de um modo completo à minuciosidade e morosidade da vida real.
Nota 1: Para mais informações ou encomendar o livro, visitem o site www.asemakustannus.com e depois cliquem sobre o nome da editora em baixo, enviando um email em inglês, que responderão seguramente. O site está todo em finlandês, mas responderão.
Nota 2: agradecimentos a Marko Turunen, pela oferta dos livros.
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