15 de maio de 2007

Travaux Publics, Combats, Voyage. Yuichi Yokoyama (Matière)


Há relativamente pouco tempo, o crítico mais acrimonioso (e único?) de design em Portugal, Mário Moura [nenhuma relação, apesar de nos conhecermos pessoalmente], aliás, The Ressabiator, esteve na ESAG e deu uma conferência em torno do tema do design e da banda desenhada, repescando algo sobre o qual já havia tecido considerações no 4º número da Satélite Internacional (e que encontrarão no seu site, aconselhando-se a sua leitura).
Yokoyama parece ser um autor feito à medida para tornar a discussão do design na banda desenhada – não enquanto método de packaging, nem de embrulho, nem de estratégias secundárias, mas no seio da linguagem empregue – o mais ao de cimo possível. É como se os métodos de trabalho do design se tornassem passíveis (e são-no) de estruturação de uma linguagem narrativa da banda desenhada. A primeira vez que encontrei uma história de Yokoyama foi no número inaugural da Bête Noire, e já aí me haviam surpreendido as onomatopeias com direito de cidadania no plano visual. Estando elas representando sons fora da linguagem “articulada” e “civilizada”, cf. Mário Moura, elas ganham em Yokoyama (nessa pequena história e nestes três livros editados em França) o direito ao retorno à civilização, porque toda a civilização se plasma de acordo com o princípio construtivo dessas mesmas onomatopeias: presença total na bidimensionalidade, inseparabilidade do universo onde se inscrevem, dinamismo gráfico imperando sobre o narrativo.
Uma primeira ideia que vem à colação com a leitura destes três livros atravessa as relações antagonistas que as personagens estabelecem umas com as outras, mais subtilmente em Voyage, mais abertamente em Combats. Relações que passam pelo olhar (delas) mas que entroncam com o nosso (leitores-espectadores), necessariamente. São estratégias do olhar que funcionam mesmo num registo tão diferente quanto o de Gon de Masashi Tanaka (isto é, um registo tentativamente realista), o que aponta, para além da falsa dicotomia forma-conteúdo, a existência de uma força funcional (ou functiva, para nos desligarmos da ideia de um fim ulterior e nos aproximarmos de uma perspectiva que associa o actual ao verificável) que sobrevive a todas essas compartimentações primárias. Primeiro passo para o desmantelamento da “empatia”.
As acções das personagens, mesmos os gestos mais banais como abrir um maço de cigarros, acender um e depositar as suas cinzas num cinzeiro, são transformadas, pela presença sólida das linhas de movimento, pelo foco apertado dessa acção específica, pela sua relação com a mise en page, em momentos de uma grande tensão em Voyage, tensão a qual explode abertamente em Combats (e aqui é mesmo “combates” e não “debates”, vide Mário Moura), no qual o que parecem ser dois grupos rivais, um interminável exército de uns contra outros, sem que os possamos distinguir de acordo com qualquer eixo, se digladiam entre si nos mais díspares cenários e usando aquilo que estiver à mão, de utensílios de cozinha ao mais sofisticado dos armamentos. Nada disto serve para tornar os combatentes em implacáveis assassinos, à la Bullseye/Mercenário. Torna-se antes uma maneira de transformar o vórtice de acção numa louca e aceleradíssima paródia a esses mesmos épicos da banda desenhada, filmes, jogos de acção... Segundo passo.
Os jogos de reflexos, os já indicados trocares de olhares entre as personagens que se movem e as que estão sentadas, as que esperam e as que passam, os brilhos e distorções provadas pelas águas e pela luz do sol e pelas velocidades que também se cruzam, tudo isso são elementos díspares que se vão compondo e encontrando o seu nicho correspondente até criar essa imagem maior e unificada, a da obra.
O volume Travaux Publics, o primeiro editado, tem um pequeno texto que explica as “regras do jogo” da obra de Yokoyama, e Combats vem acompanhado de uma entrevista. É graças a esses dois textos que encontramos algumas linhas de apoio à interpretação. A inexistência de diálogo (em Voyage) ou a de diálogos que apenas servem para sublinhar o óbvio ou pequenos nós de viragem (Combats e Travaux Publics) revelam o pouco interesse do autor em construir personagens verdadeiramente humanas, “redondas” (no termo de Forster), de estruturação psicológica. Esse apagamento da humanidade perpassa igualmente através da figuração das personagens, homens compostos por informações mínimas para os corpos e com cabeças estilizadas como tudo o resto, e rostos próximos de uma logotipização, onde um determinado elemento, estrutura ou traço absolutamente claro se torna o símbolo que “nomeia” essa personagem. Como se a típica uniformização de uma personagem da banda desenhada clássica (Tintin quase sempre de calças de golfe, Batman com a sua capa e orelhas pontiagudas) fosse aqui levada até às suas consequências últimas e consumisse a personalidade (a psicologia) das personagens de Yokoyama. Todavia, esse apagamento da humanidade não serve para aumentar a possibilidade da (suposta) empatia – tese com a qual tenho dificuldade em concordar logo à partida – do leitor; bem pelo contrário, serve precisamente para apagar traços de ligação possível e assunção do estranhamento total. Passo último, portanto.
A desumanização atinge o seu grau máximo em Travaux Publics, onde toda a natureza (banal e natural) é brutal e rapidamente substituída por titânicas operações que erguem construções humanas representando... a natureza (artificial, logo fenomenal).
Esse silêncio e total funcionalização das personagens fazem também recordar esse papel apagado que é reservado à esfera verbal e actancial nos filmes de Jacques Tati, nos quais é precisamente o corpo, e os movimentos que ele desencadeia e que se estruturam em torno dele, que assume a preponderância máxima. Em Tati com humor, aqui através de uma frenética acção e um certo desconforto, também explicitados pelas fórmulas do próprio autor: “mangá sem história”, “sem princípio nem fim”, “representar a passagem de uma cena à outra”...

Esta última expressão indica claramente o modo como os livros de Yokoyama levam a pensar sobre a transição das vinhetas, quer segundo McCloud (relações aspectuais) quer segundo Groensteen (uma gramatologia), ou reformulando, levam-nos a repensá-las em termos de velocidade da leitura. Independentemente de estarmos perante uma transição entre momentos, acções ou aspectos, ou estarmos numa relação de coordenação ou de subordinação, tudo é exacerbado numa velocidade contínua de avanço. Vejam-se por exemplos estas três pranchas (páginas) seguidas, que representam – representação-como (Goodman) – a passagem progressiva por uma estruturas metálicas como de uma ponte por onde atravessa o comboio, sob a chuva batendo nas janelas, e ao mesmo tempo nos apresentam uma imagem geométrico-abstratizante – a imagem propriamente dita – perfeitamente compondo toda uma unidade não só plástica como de leitura (são três páginas, pelo menos implica uma acção de as virar; aqui estão na ordem de leitura ocidental). É tentador estabelecer entre estes três livros uma ordem narrativa ulterior, apesar de tudo, impondo uma flecha do tempo onde o próprio Yokoyama quer nos mostrar o seu aspecto cíclico e incansável. Esta estilização toda encontra a sua raiz mais nobre em Hokusai, como víramos a propósito do seu Manga, mas outros percursores serão os autores “formais”, de Sterrett a Vaughn-James à geração da RAW (penso especialmente em Mark Beyer) e a do Fort Thunder, sobretudo em publicações mais recentes, passando por um historial de designers e geómetras virtuosos.
A empatia apagada, retorna um dos possíveis fins do design: tornar tudo mais acessível, mais utilizável, user-friendly. A destruição da paisagem natural (ser humano inclusive) para levantar a sua funcionalidade. Em suma, citando um livro de poemas, é a “Ergonomia da paisagem”.
Nota: agradecimentos e desculpas a António Jorge Gonçalves. Foi um misto da sua simpatia e da minha bisbilhotice que me pôs no caminho destes livros.

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