
A editora alternativa L'Association, apesar da sua saúde actual, prossegue a sua política de reedição de “livros esquecidos” de autores que fizeram parte de uma revolução silenciosa na banda desenhada moderna francesa (integrado num ciclo maior de recuperações). Mesmo em livros que versam a história do tempo em que ele se inscreveu, Gébé faz parte dos inominados, apesar de ter sido um dos autores mais participativos da revista Pilote que, a seu tempo, protagonizou uma pequena viragem na natureza da banda desenhada francófona. Curiosamente, quando hoje dizemos “bd franco-belga” estamos a compactar toda uma diferenciação de trabalhos num mesmo nome, e poder-se-ão perder, nessa percepção apressada e sem uma predisposição para com a história, os combates a que cada uma dessas obras diferenciadas se entregara, combates que se deram nas suas recíprocas relações. A mais famosa é precisamente a “oposição” que existiria entre a publicação belga Tintin e a francesa Pilote. E assim, ainda que anedoticamente, entre as personagens Tintin e Astérix, respectivas de cada título (uma das razões do esbatimento dessa oposição junto ao público português é o facto de se terem ambas apresentados na nossa revista Tintin; vejam-se o livro de Dias de Deus, Os Comics em Portugal, e a série televisiva a estrear VERBD, episódio 2). Esta longa recordação importa pelo apodo que a Pilote ganharia de ser “iconoclasta” (não tivesse Goscinny passado pela equipa de Kurtzman e da MAD nos E.U.A.); mas poder-se-ia dizer também “onconoclasta”, já que as transformações operadas pelas bandas desenhadas desta revista não só desmontavam o aspecto mistificador que a “bande dessinée” havia proposto durante as largas décadas anteriores, a saber, “divertimento para crianças”, como também o seu papel político e social e até filosófico. Remeto-vos à leitura de livros de historiadores para a complexidade dessas flutuações e papéis, por exemplo, de Bruno Lecigne. Diga-se aqui, porém, para uma máxima clareza de pensamento, que não seriam todas das bandas desenhadas no interior da Pilote que cumpriam esse papel. A iconoclastia de Astérix e Lucky Luke seriam importantes a seu tempo, talvez, mas seriam dissensões “calmas” e de “baixo sinal”, em relação a outros exercícios mais bem mordazes e corrosivos da revista. As de Gébé seriam bem mais vincadas.
La Plume de Clovis é uma pequena história de 27 pranchas, que havia sido publicada a cores nessa revista (e que L’Association agora republica), mas que também conheceu uma edição em livro em 1975, a preto e branco, conjuntamente com outras histórias menores, às vezes de uma página apenas (pelas Éditions du Square).
Muitos dos textos em torno deste livro apresentam-no, as mais das vezes como sendo uma obra singular – no universo da aventura a que a banda desenhada tantas vezes se resume - por apresentar uma personagem que não é “norma” do cânone desta arte: um velho. “Clovis é um pouco o anti-herói por excelência: velho, mais ou menos reformado, rezingão, olha que não está longe de ser um velho idiota, hã?” (como reza na entrada sobre este livro na Bédetheque). Seja. Mas essa leitura só se mantém segura se for feita pelo estreito prisma da banda desenhada das tais décadas a que me referi atrás, e no interior da francofonia. De Töpffer a Bordalo, de Caran d’Ache a Doré, quantos autores colocavam adultos maduros (mesmo que “loucos varridos”) no papel primeiro? E as primeiras prestações dos super-heróis não apresentavam “jovens”, sequer. E que idade tem Krazy Kat? Não é uma adolescente, seguramente.

Esta trama revela, portanto, daquela rapidez e concisão de eventos e nódulos de transformação que Italo Calvino apresentaria como “lições para o novo milénio”. É nesse têxtil de trama apertada e nas suas convergências da memória (o retorno do mesmo) e da ficção (o lançamento do diferente), como com Goblet, que Gébé se revela, outra vez (ou finalmente?), como um autor fundamental para a assunção da banda desenhada como uma linguagem de pleno direito da representação das paixões humanas.
Pedro, gostei bastante do texto, mas queria esclarecer uma coisa: este livro trata-se de uma reedição
ResponderEliminar--desta feita, a preto-e-branco-- da L'Association, não? Pelo menos, a edição que tenho da L'Association é a cores: colecção "Éperluette" (março 2001). Há mesmo a príncipio uma nota de agradecimento à Dargaud, e a Guy Vidal e Pierre Fischer, "por nos terem ajudado a recuperar as cores originais, efectuadas pelos Estúdios Pilote".
Nuno F.
Não é uma reedição. É a versão da L'Association a cores (a capa). No entanto, a imagem que utilizo é retirada da versão da Square (a preto e branco).
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