1 de julho de 2007

Faire semblant c'est mentir. Dominique Goblet (L'Association)


O título revela de imediato a pista que nos permite entrar na problemática instituída pelo último livro de Dominique Goblet, a qual já anteriormente, com Souvenir d'un journée parfaite, nos lançara no campo da memória como, não um campo denso e sólido e seguro, mas antes um paul onde o solo desenha uma paisagem aparentemente heterogénea mas que pode subitamente ceder sob o nosso peso, ao pisarmo-lo (como, doutro modo, Gébé o fez). Faire semblant c’est mentir, “Fingir é mentir”. Etimologicamente, o verbo “fingir” associar-se-á a uma outra palavra de contornos muito contemporâneos que é “ficção”: ambos os vocábulos nascem de fingere, cujo significado antigo remete a uma acção, a de “dar forma”.
Souvenirs era uma “ficção”, co- ou inteiramente escrita por Guy Marc Hinant, mas que se se lançava no complexo território da autobiografia (leia-se o prefácio de Menu neste livro), ou pelo menos no da rememoração [uma questão: se é possível falar-se de autobiografia em banda desenhada no caso de livros escritos por um autor, por exemplo Harvey Pekar, que recorre a um artista para os desenhos, porque será confuso aceitar o contrário?]. Faire semblant é também co-escrito por Hinant, mas é antes um exercício daquilo a que se dá o nome de auto-ficção, no qual o autor empírico se coloca enquanto protagonista da diegese que apresenta, existindo várias linhas de divergência entre a “realidade” e o “universo diegético”. Obviamente, pouco (nos) importa explorar quais as divergências aqui presentes, o que nos impeliria para uma investigação biografista, que pouco nos preocupa e pouco nos auxiliaria a ler o livro. A questão é que esse estranho pacto (para repescar a expressão de Lejeune a propósito do pacto autobiográfico) é desde logo um acordo entre o leitor e a obra apresentada, e aceitamo-la precisamente por não apresentar quaisquer fronteiras acertadas entre uma coisa e outra: a nossa mente ricocheteia entre uma leitura de um “isto é verdade” e “isto é ficção”. Não se chega a qualquer remate, mas aí reside a felicidade da obra. O título, gritado por uma das personagens (uma complicada e traumatizada “mulher do pai”; e, como vemos no exemplo da imagem, representada somente nas linhas dos seus sintomas de ódio, intemperança e impaciência), fecha-se num julgamento moral e num desacerto em relação ao acordo indicado: fingir não é mentir, é dar forma a uma outra linha da verdade, que assim chega até nós. Mais tarde, a protagonista repete numa outra versão, e aplicada a uma outra realidade – as relações amorosas – onde o fingimento dá forma também, mas a fantasmas, os quais herdam um peso do qual há que nos alijar o quanto antes.
Faire semblant c’est mentir
surge-nos estruturado em quatro episódios ou partes, uns co-escritos com Hinant (o segundo e quarto), outros somente por Goblet (o primeiro e terceiro). Todos eles nos remetem para um “presente” (a rememoração, na literatura, poder-se-á fazer por um presente transfigurado nos pretéritos imperfeito ou perfeito, mas na banda desenhada as imagens obrigam a um “presente eterno”), mas um presente sub-dividido: os de capítulos de Goblet remetem-nos para uma visita da protagonista, com a sua filha, ao pai, que vive com uma segunda mulher, e as crises que daí advêm... (a mãe terá morrido, está ausente, surgindo na “introdução”, que de resto é apresentada formalmente como pertencendo a um nível exterior a toda a narrativa, como se pertencesse à jurisdição do onírico, ou da memória tout court, i.e., intocável, irreparável, irrepetível, logo, falsa, uma vez que a memória jamais cristaliza); os com Hinant para uma esfera mais reduzida de relações, amorosas, doméstica. Na metade de Goblet a representação é algo livre, em que a cada personagem é atribuída uma plasticidade particular, no qual cabem as intervenções de um desenho infantil, pequenas colagens, intervenções de ícones e símbolos; na com Hinant, a linguagem é mais contida, mas assombrada, literalmente pelos fantasmas das relações terminadas, colocando gente a mais nas relações presentes, e pelo trabalho do carvão, sobretudo carregado nos momentos das paisagens e dos retratos dos fantasmas (transições?), ou da penumbra.
Ou seja, logo à partida, o livro, enquanto um todo, apresenta-se dividido, espelhando a quebra da recepção do leitor de um suposto entendimento coeso das relações entre memória e ficção. Mais, a representação dos corpos, sobretudo da protagonista, é mostrado de uma forma dupla, diferenciados entre cada um dos núcleos de capítulos. Implicará isso, portanto, uma dupla leitura, ou uma diferenciação da leitura conforme as unidades em que se inserem essas representações; ou então, são essas representações diferenciadas, distribuídas nesses episódios que informam (mais uma vez, dão forma a) essas partes como também diferenciadas (o que não quer dizer que não existam como que metástases de cada uma das partes nas outras, impedindo o exercício de uma partição básica e fomentando a indecibilidade da obra). Após o que, retornamos à convergência, por estarem ambas no interior de uma unidade maior, a da obra propriamente dita. De acordo com os ensinamentos de Groensteen, o fenómeno de percepção e memória na banda desenhada a que ele chama tressage encontra aqui uma instância única, que dá que pensar. Não será essa a maior felicidade de uma obra?

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