1 de julho de 2007
Babinski. José Feitor e Luís Henriques (Imprensa Canalha)
Uma epígrafe deve ser levada a sério. A epígrafe de Babinski, que deve ser entendido como um equilíbrio feliz entre a adaptação e a versão original, é um rebus de Grandville. Um rebus é um enigma que se apresenta sob a forma de uma mescla entre imagens e palavras/letras (em termos nominais, como a banda desenhada), mas onde as primeiras tanto assumem o seu valor icónico como simbólico, e as segundas tanto o seu valor denotativo como uma existência material (fonética, gráfica). É uma citação que leva logo a pensar na constelação da banda desenhada, em termos históricos, ontológicos e até formais.
A epígrafe aponta para a existência de dois modos de interpretação. Três. O primeiro é olhar para a superfície das coisas e tomá-las tal qual elas são, com um valor presencial tão forte que pouco importa, na verdade, a interpretação. A segunda está em perscrutar os significados latentes, ora arrancando-os pela força ora seduzindo-os a se mostrarem, pelo trabalho da investigação, da inquirição crítica, da análise. A terceira é bater com a cabeça, isto é, repetidamente falhar na maneira de ler e nem sequer produzir resultados infrutíferos: é não produzir resultados no trabalho interpretativo.
A estória de Babinski surgiu pela primeira vez no romance de Meyrink intitulado O Golem (editado entre nós pela Vega). Tal como o Drácula de Bram Stoker, O Golem é uma obra de má literatura, pretensiosa, epocal, mas que conheceria uma grande fortuna enquanto fonte de inspiração, transformando-se numa plataforma do trabalho imaginativo de outros artistas a vir. Na banda desenhada o Golem, enquanto personagem, tem surgido em avatares díspares pelas mãos de Dino Battaglia e James Sturm, Joann Sfar e David B., e no mundo dos super-heróis tem surgido vezes sem conta em versões mais ou menos disfarçadas. A fortuna de Babinski é breve nesse romance, contada sob a penumbra de uma Praga com símbolos a mais e entre duas canecas de cerveja. A primeira película de transfiguração que atravessa para chegar ao presente livro é o trabalho arqueológico de José Feitor, que arranca desse conto em segunda mão os eventos significativos, transformando-os em nós pertinentes e passíveis de se colocarem enquanto marcos de uma construção pelas imagens. Neste passo em particular, “nós” assume tanto o seu significado narratológico como a de metáfora, através da presença da corda, leit-motif do livro. Esses nós tornam-se a matéria a qual cabe a Luís Henriques - “cristalizar” (para empregar uma palavra que lhe é cara) em forma de imagem: é Henriques o ilustrador, artista, desenhador, banda desenhista, seja qual for a função ache o leitor que ele cumpra, quem assume essa segunda transformação, se bem que julgue estarmos perante um trabalho que confunde todos esses papéis. Confunde no seu pleno e positivo sentido: “verter em conjunto”.
Porque é isso mesmo o que acontece neste Babinski: vertem-se fontes num só cadinho. Quer provenham do campo imagístico (os soldados adormecidos de Piero della Francesca, os Carceri de Piranesi, os panoramas de Praga de Josek Sudek), do campo literário (do epitáfio de Villon às canções de Vian, etc.), quer de campos laterais da e pela História da Arte e da Cultura (de medalhões a moedas aos emblemas medievais, à presença dos nomes das musas de Abelardo e de Jean-Martin Charcot - este último lançando pistas extra- ou intertextuais muito curiosas mas obscuras com a obra presente), a utilização pródiga desses materiais dispersos e diversos leva a uma fuga da preocupação pela acuidade da adaptação - histórica, geográfica, etc. - para entrar num espaço pleno da agudeza da criação de imagens (a diferença entre acuidade e agudeza aqui sendo de graus, a primeira revelando mais da subserviência pela verdade, a segunda da inteligência criativa). Se já nas Black Box Stories, escritas por José Carlos Fernandes, Luís Henriques demonstrara que não lhe interessará desenhar à sua volta (ou do seu trabalho, melhor dizendo) uma fronteira clara entre territórios de expressão, aqui mostra como a criação de imagens pode estar ao serviço de uma abertura contínua... A criação de imagens e o seu emprego não redutor a um texto despoleta leituras abertas. O grau de desarrumação em relação ao próprio campo da banda desenhada ou ilustração fica demonstrado pelas variadíssimas estratégias de distribuição do tempo e da acção, das personagens, da própria organização e estruturação das “pranchas” e “vinhetas”, etc.
Nesta versão em particular, é difícil não escapar do espaço que é desenhado pela corda. Também as Parcas teciam, mediam e cortavam outra corda, a da vida dos mortais; esticada, é a menor linha possível que mede a vida de um homem e o que ela tocou, isto é, a sua circunferência. A circunferência da vida de Babinksi é fechada sobre um crime, que não é somente a do assassinato. Este poderia ser mitigado aos olhos de uma qualquer injustiça pelo seu interesse ulterior em amealhar fortunas roubadas ou garantir um proveito... Mas o pecado de Babinski é maior que isso: está em tomar a vida dos outros como seu território de distribuição (aleatório e caprichoso), usurpando o papel das Parcas. Assim sendo, o pagamento não se encontrará num castigo pela imediata morte fria do Estado, mas pela destruição do seu valor enquanto indivíduo: Babinski viverá o tempo suficiente para se ver despojado das suas paixões de assassino, mas para além disso também, tornando-se brinquedo, marioneta, mas uma marioneta que não ganha a sua própria autonomia (o seu ponto de gravidade, como diria Kleist). Bem pelo contrário, é um mero “joguete”, como soe dizer-se. Nas mãos de crianças, nas montras como peça decorativa, como objecto de melancolia nas mãos dos viúvos e órfãos e abandonados, os sobreviventes das vítimas de Babinski. Por essas razões a corda surge como leit-motif do trabalho gráfico desta versão, seu centro, seu título, seu elo de ligação...
Nota: agradecimentos ao editor e autor José Feitor, pela oferta. As imagens foram aproveitadas do blog do autor-editor.
Prezados autores, adorei saber algo mais sobre o meu Sobrenome.
ResponderEliminarSaudades
Marcio Antonio BABINSKI