
Uma epígrafe deve ser levada a sério. A epígrafe de Babinski, que deve ser entendido como um equilíbrio feliz entre a adaptação e a versão original, é um rebus de Grandville. Um rebus é um enigma que se apresenta sob a forma de uma mescla entre imagens e palavras/letras (em termos nominais, como a banda desenhada), mas onde as primeiras tanto assumem o seu valor icónico como simbólico, e as segundas tanto o seu valor denotativo como uma existência material (fonética, gráfica). É uma citação que leva logo a pensar na constelação da banda desenhada, em termos históricos, ontológicos e até formais.
A epígrafe aponta para a existência de dois modos de interpretação. Três. O primeiro é olhar para a superfície das coisas e tomá-las tal qual elas são, com um valor presencial tão forte que pouco importa, na verdade, a interpretação. A segunda está em perscrutar os significados latentes, ora arrancando-os pela força ora seduzindo-os a se mostrarem, pelo trabalho da investigação, da inquirição crítica, da análise. A terceira é bater com a cabeça, isto é, repetidamente falhar na maneira de ler e nem sequer produzir resultados infrutíferos: é não produzir resultados no trabalho interpretativo.
A estória de Babinski surgiu pela primeira vez no romance de Meyrink intitulado O Golem (editado entre nós pela Vega). Tal como o Drácula de Bram Stoker, O Golem é uma obra de má literatura, pretensiosa, epocal, mas que conheceria uma grande fortuna enquanto fonte de inspiração, transformando-se numa plataforma do trabalho imaginativo de outros artistas a vir. Na banda desenhada o Golem, enquanto personagem, tem surgido em avatares díspares pelas mãos de Dino Battaglia e James Sturm, Joann Sfar e David B., e no mundo dos super-heróis tem surgido vezes sem conta em versões mais ou menos disfarçadas. A fortuna de Babinski é breve nesse romance, contada sob a penumbra de uma Praga com símbolos a mais e entre duas canecas de cerveja. A primeira película de transfiguração que atravessa para chegar ao presente livro é o trabalho arqueológico de José Feitor, que arranca desse conto em segunda mão os eventos significativos, transformando-os em nós pertinentes e passíveis de se colocarem enquanto marcos de uma construção pelas imagens. Neste passo em particular, “nós” assume tanto o seu significado narratológico como a de metáfora, através da presença da corda, leit-motif do livro. Esses nós tornam-se a matéria a qual cabe a Luís Henriques - “cristalizar” (para empregar uma palavra que lhe é cara) em forma de imagem: é Henriques o ilustrador, artista, desenhador, banda desenhista, seja qual for a função ache o leitor que ele cumpra, quem assume essa segunda transformação, se bem que julgue estarmos perante um trabalho que confunde todos esses papéis. Confunde no seu pleno e positivo sentido: “verter em conjunto”.

Nesta versão em particular, é difícil não escapar do espaço que é desenhado pela corda. Também as Parcas teciam, mediam e cortavam outra corda, a da vida dos mortais; esticada, é a menor linha possível que mede a vida de um homem e o que ela tocou, isto é, a sua circunferência. A circunferência da vida de Babinksi é fechada sobre um crime, que não é somente a do assassinato. Este poderia ser mitigado aos olhos de uma qualquer injustiça pelo seu interesse ulterior em amealhar fortunas roubadas ou garantir um proveito... Mas o pecado de Babinski é maior que isso: está em tomar a vida dos outros como seu território de distribuição (aleatório e caprichoso), usurpando o papel das Parcas. Assim sendo, o pagamento não se encontrará num castigo pela imediata morte fria do Estado, mas pela destruição do seu valor enquanto indivíduo: Babinski viverá o tempo suficiente para se ver despojado das suas paixões de assassino, mas para além disso também, tornando-se brinquedo, marioneta, mas uma marioneta que não ganha a sua própria autonomia (o seu ponto de gravidade, como diria Kleist). Bem pelo contrário, é um mero “joguete”, como soe dizer-se. Nas mãos de crianças, nas montras como peça decorativa, como objecto de melancolia nas mãos dos viúvos e órfãos e abandonados, os sobreviventes das vítimas de Babinski. Por essas razões a corda surge como leit-motif do trabalho gráfico desta versão, seu centro, seu título, seu elo de ligação...
Nota: agradecimentos ao editor e autor José Feitor, pela oferta. As imagens foram aproveitadas do blog do autor-editor.
Prezados autores, adorei saber algo mais sobre o meu Sobrenome.
ResponderEliminarSaudades
Marcio Antonio BABINSKI