23 de novembro de 2007

Rei. Rui Zink e António Jorge Gonçalves (Asa)


A esmagadora maioria dos textos até agora surgidos e que discutem este livro abandonam-se somente aos aspectos mais jornalísticos, factuais, superficiais e, por isso mesmo, menos importantes para uma efectiva leitura da obra. Ou, por outras palavras, não o discutem. Chegam mesmo a surgir alabanças “apesar de não o ter ainda lido”. Recorrer à obra anterior do autor dúplice implicado, a voz Zink-Gonçalves que havia perpassado pela A Arte Suprema, não ajudará, e muito menos a busca de uma continuidade formal ou mais completamente estética entre os outros livros de A. J. Gonçalves, a solo ou acompanhado, ou os de Rui Zink, e o presente, pela simples razão de que estas ficções apresentam-se como sendo autónomas e não como fazendo parte de uma respiração contínua, ou um poema único, como poderá ocorrer e ocorre de facto noutros casos. Seria relativamente fácil exercitarmos aqui pontos de contacto paralelos entre A Arte Suprema e Rei: a expressividade do Eu pelo Outro, ou pelo seu próprio Alter-ego; a presença de um Oriente transfigurado em plataforma de ficções outras; a presença hodierna dos complexos político-financeiros como alvos de pequenas diatribes “engajadas” (em todo o seu sentido, inclusive demodé) contra a real-politik... Mas isso não nos levaria senão e ainda ao comentário mais superficial, e que não daria conta do “esvaziamento sígnico” de Rei. Essas interpretações não surgem apenas da parte dos seus leitores (mais ou menos qualificados e glorificados), mas da parte dos seus autores (que, enfim, como soe dizer-se, são os seus primeiros leitores). Seria interessante, por exemplo, rebater as afirmações dos próprios autores em relação ao livro, uma vez que em várias oportunidades eles salientaram o facto deste ser um “livro de silêncios, com poucas palavras”; mas na verdade é precisamente o contrário: são muito menos as pranchas sem texto verbal, e as mais das vezes associadas às alucinações (superficiais ou mais profundas, como se entenderá da narrativa) de Nuno, o protagonista, e muitas vezes sendo o texto o que veicula os significados acabados da diegese, remetendo-se a imagem à transmissão de acções ou ambientes.

O livro narra de uma forma relativamente simples uma aventura muito banal dos viajantes que se dizem “procurar a si mesmos” em paragens exóticas, de que o “Oriente” se constrói sobremaneira: Nuno pretende alcançar um certo grau de independência e maturidade em relação à sua mãe, que percebemos ser uma mulher influente na sociedade portuguesa; como havia aprendido karaté e lições meio-cozidas do “espiritualismo oriental”, pensa que será no Japão (“a fonte”) o local onde (se) encontrará a resposta. Rapidamente nos apercebemos de que esse grau de independência é nulo, de que Nuno vive nas dobras das saias da mãe, desejando a um só tempo dela(s) se libertar e de ser depositário da sua máxima atenção e amor. Por seu lado, a mãe desencadeará uma busca pelo seu filho depois deste aparentemente ter “desaparecido”, recorrendo aos serviços do seu antigo mestre de karaté, Tano. No fundo, a mulher que é representada como fria, distante e auto-suficiente, e que chega mesmo a ser visualmente comparada com a Rainha Má da versão Disney da “Gata Borralheira”, acaba por se mostrar uma mãe como as outras: frágil, genuinamente preocupada e revelando várias camadas de humanidade (sendo a de mulher passível de se apaixonar uma delas). Estas duas buscas – a de Nuno e a da sua mãe Teresa – são contadas alternadamente, numa fórmula clássica de acções paralelas. No entanto, o complexo de Édipo não se submete aqui a grandes convulsões de diferença; é mantido, ainda que fragmentado em dois caminhos que se fingem não querer unir. Para vincar ainda mais as distâncias entre essas duas linhas de narração e, no fundo, de dois “mundos” recorre-se a registos visuais diferenciados. Na “linha do Nuno” seguindo-se num carácter mais estilizado, mais próximo dos “bonecos” ou de uma mangá mais comercial, com as figuras de corpos arredondadas, olhos grandes, movimentos repentinos sublinhados por linhas, um maior grau de fantasia e metáforas visuais, muitos elementos derivados de um imaginário tecnológico e popular associado ao Japão (jogos de computador, as máquinas de pachinko, o cosplay e as modas de “faz-de-conta” de Harajuku, os grupos de J-pop, etc.), estruturações das pranchas menos regulares e mais espectaculares. Na “linha de Teresa”, opta-se antes por um traço bem mais contido, realista, de contornos e jogos de sombra e luz pautados por regras de naturalismo, uma submissão à lógica do mundo, uma composição de pranchas mais sóbria, diálogos mais ritmados, com mais referências ao mundo “real” e “adulto”, e que relevam de facto duas personalidades conversando (Teresa e Tano).

O ponto súbito de reconhecimento e de desenlace da história, que une finalmente estas duas linhas, desvia-se porém para um universo de referências da ficção científica e logo se desvia ainda mais para um vago final, que tanto pode beber do fantástico como do maravilhoso, mas que não me parece fazer jus às personagens entretanto construídas: é como se fosse uma fuga para a frente e se evitasse devolver as personagens aos seus caminhos desenvolvidos. Há quem queira ver aí uma “obra aberta”, o que é aceitável até certo ponto. Mas uma vez que essa abertura não foi sendo garantida pela narrativa restante (o que sucede, por exemplo, em Horace Dorlan desde o primeiro momento de crise), apenas se vislumbra aí uma irresolução disfarçada em metamorfose das personagens envolvidas.
Um dos mais maravilhosos (isto é, que produz maravilha, “que provoca pensamentos sobre”) livros sobre o Japão ou por entre o Japão que conheço é L’Empire des signes, de Roland Barthes, que (digo-o eu) é uma espécie de romance erótico, quer no seu sentido de movimento quer no de encontro amoroso, sexual, violento. As relações entre o texto, as famosas leituras “mitológicas” de todos os sinais do mundo por Barthes, e as imagens por ele captadas ou compiladas são explicadas pelo mesmo: “Le texte ne ‘commente’ pas les images. Les images ‘n’illustrent’ pas le texte: chacune a été seulement pour moi le départ d’une sorte de vacillement visuel, analogue peut-être à cette perte de sens que le Zen appelle un satori; textes et images, dans leurs entrelacs, veulent assurer la circulation, l’échange de ces signifiants: le corps, le visage, l’écriture, et y lire le recul des signes”. Os sublinhados são meus, pois por “vacilação visual” e “entrelaçados” entendo essa qualidade do produto da simbiose existente entre a parte do verbo e a parte da imagem, e a qual se verifica extraordinariamente na banda desenhada (ou a um campo alargado a que esse nome serve). E é por essas razões que as duas fotografias do actor Kazuo Funaki que abrem e fecham o livro podem ser vistas como os limites de todo o livro, não somente por um arranjo gráfico e editorial, mas como se todo o movimento (erótico, portanto) do livro fosse levar o actor, o recipiente do convite do rendez-vous de Barthes, a sorrir. O que se encontra, portanto, é um equilíbrio total entre os pequenos fragmentos aparentemente desunidos, e o todo, fazendo emergir de uma aventura semiológica sobre um mundo pleno de “signos vazios” um romance amoroso.
Ora, em Rei, não só as ligações amorosas (entre Teresa e o filho, entre Teresa e Tano, para ser mais preciso) não se satisfazem, como se nota algum grau de separação entre o trabalho de escrita e o de desenho. Ou por outras palavras, o divórcio nota-se por excesso. Recorrendo a Walter Benjamin, ou melhor, a uma lição de Maria Filomena Molder sobre Benjamin, na discussão sobre os espaços criados, em qualquer obra de arte, entre os teores de verdade e os materiais, poder-se-á afirmar que “quando o conteúdo material se destaca de tal maneira que toma a dianteira parece que o conteúdo de verdade se dissolveu e nós só temos a estranheza do que foi vencido pela passagem das horas”. É o que aqui sucede, enfim. Não há uma união subterrânea entre as duas vontades, para que os acidentes do terreno, isto é, a obra, a sua parte visível, legível, interpretável, se apresentem em harmonia com ela mesma. Surgem no seu tremor de incumprimento, de deslize periclitante. Permite o repreensível, o não desejável na obra, que é a separação – fictícia, e abstracta, seguramente, mas por vezes apreciável – entre forma e conteúdo. Daí que fale de divórcio, como poderia referir-me a um desentrelaçamento, ou à falta de vacilação das duas presenças (que nada têm a ver com os autores empíricos, mas com as dimensões necessárias da banda desenhada), antes surgindo dois territórios quase separáveis. É desse equilíbrio que são feitas as obras na qual a coesão é conseguida. Todavia, não conseguimos vislumbrar esse mesmo equilíbrio nem essa coesão em Rei.
Parece-se mergulhar aqui de uma forma directa e dúctil sobre os “signos vazios”, de que Barthes também fala, signos sobre os quais se poderão exercer poderes menos ou mais criativos, subjectivos, responsáveis... A ductilidade desse gesto cabe quase totalmente à parte visual de Rei, no seu constante uso de toda uma série de registos gráficos, de “tons” de figuração, de estratégias de composição de prancha, de confronto entre as camadas de informação existentes na obra, a que já nos referimos parcialmente. Se é esta uma estratégia “arriscada”, “audaz”, ou até, como surgiu nalguns locais – inclusive da parte da editora – “experimental”, duvidamos muito, pois o peso da legibilidade e dos trâmites mais clássicos da narrativa e da representação não se encontram em crise, bem pelo contrário, são sustentados claramente. Mas esta afirmação não visa um perjúrio à qualidade do trabalho conseguido; somente uma maior precisão e justiça em termos estéticos. O Senhor Abílio, por exemplo, de António Jorge Gonçalves a solo, apesar de ter nascido de uma relação comprometida, de encomenda comercial, trabalho regular e outros tipos de demarcação, acabou por se tornar num livro autónomo e o de maior arrojo do artista, a todos os níveis.
O Japão que aqui surge não é – nem tampouco seria esse o desejo dos autores, presume-se – real, histórico, e muito menos um Japão turístico, ou místico. Mas não deixa de surgir como um aglomerado de sensações rápidas e usuais, alcançáveis a partir de um mero passeio pelas referências mais conhecidas do Japão moderno. As dicotomias construídas – eu e o Outro, a identificação com um Outro mais caracterizado (e sexual) por oposição a um Outro mais descaracterizado (Ocidentalizado), o sublinhar das aparentes contradições culturais entre um país votado ao Shintoísmo mais ritualizado ao mesmo tempo que se dedica às tecnologias mais avançadas e despersonalizadas – não deixam também de ser pouco profundas e, o mais importante, por apenas contribuírem para um ambiente geral onde decorre a acção e não por se tornarem num aspecto actante sobre a narrativa. A fábula, em si, poderia ser deslocada em termos de preenchimento actual (um outro local, uma outra personagem), que não perderia a sua caracterização geral; funcionaria à mesma. Todavia, isso leva novamente à ideia de esvaziamento dos signos que percorrem estas páginas, ecoando precisamente a leitura que Barthes havia feito do seu séjour pelo Japão.

Rei tem momentos formalmente poderosos, como a cena de Tano a comer caracóis numa taberna portuguesa, com um amigo; ou momentos de diálogos de grande solidez, como os que decorrem entre Teresa e Tano. Não obstante, em termos gerais, Rei apresenta-se (até mesmo o formato do livro lembrarão alguns leitores dos tankobon, ou dos volumes da colecção Sakka, remetendo a partir dessa dimensão para o universo até mesmo físico e comercial das mangá - e reforçada essa dimensão através de novas estratégias, publicitárias e mercantis) como uma obra diferenciadora no panorama português, como uma promessa de experimentalismo e arrojo que na verdade não é o seu caminho. É antes a de uma obra despretensiosa, que permite contar uma história das relações de um rapaz que foge procurando aquilo de que foge e da sua mãe que procura (e encontra?) aquilo de que mais desejava, no fundo, fugir. E cuja diferenciação interna, gráfica, mima essas duas vontades contraditórias, mas indómitas, serão coroadas, no fim, com algum grau de sucesso, mesmo que esse sucesso nos escape.
Se assim for apresentado Rei, descomprometidamente, então cumprirá essa sua promessa, e o esvaziamento dos signos internos ao livro tornar-se-ão uma fortaleza da sua construção. Se for avançado como uma aventura autoral de diferenças extremas para com a banda desenhada, mesmo portuguesa, não atingirá esses objectivos publicitados, e o esvaziamento transbordará para a própria obra, em seu detrimento. O seu a seu dono, e a precisão humilde que garanta um lugar certeiro.

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