23 de novembro de 2007

Glomp no. 9. AAVV (Boing Being)



Ainda que corra o risco de cair numa apresentação superficial e parvamente (em ambos os sentidos, de limitação quantitativa como de restrição do espírito) redutora da filosofia, poder-se-á dizer que existem duas grandes atitudes perante ela: a de a aceitar como um movimento intrínseco ao homem, que ganha graus cada vez mais complexos e acabados (uma verdadeira filosofia) ou como a de perda de tempo, algo impenetrável num espírito que se chama a si mesmo “prático”. Mas a esses crentes na superioridade do pragmatismo, respondo o mesmo que Carlos Bruno, o protagonista de Mudança, de Vergílio Ferreira: “O senso prático é a pior besta de crueldade. Creio que por querer dar-se ares de razão que afinal dispensa”. É o fito da filosofia colocar problemas, não providenciar respostas.
Uma das mais belas lições que a filosofia pôde dar vem de Kant, quando este fala da única comunidade possível entre os homens, que é a estética. É só no horizonte de partilha de um mesmo prazer estético que o homem sabe conseguir estabelecer verdadeiros elos com os outros homens. Bem viam os gregos em distinguir os amores obrigatórios (pela pátria, pelos pais, pela família) dos acidentais (as paixões, inclusive as eróticas, sexuais, carnais) e dos escolhidos pela ordem da razão (as amizades). Os elos da amizade são os que mais verdadeiramente resistem à conturbação do mundo, e mais fortes serão esses elos quanto mais fortes forem as partilhas do gosto. É ainda Kant que afirma que o gosto, não se podendo disputar (“é bom!”, “não, é mau!”, “não tens razão!”, “tenho sim!”), pode-se discutir: i.e., entrar-se logo à partida num acordo primeiro de que eventualmente se poderá alcançar um acordo último, uma convergência, concordância, e, logo está, uma verdadeira comunidade.

São todas estas lições que me fazem aproximar de uma publicação como a Glomp com uma enorme esperança em que lentamente uma determinada comunidade se vai formando e expressando de uma forma tangível, uma comunidade atenta, inteligente, criativa, para com uma leitura da banda desenhada como linguagem totalmente livre de preconceitos de qualquer espécie, desprovida de limitações de qualquer tipo, e ainda despretensiosa em relação a qualquer sorte de caminho programático.
É por isso curioso que muitas das reacções que por vezes surgem em determinadas plataformas de discussão sobre esta área me surpreendam pela negativa, e as mais das vezes por revelarem aquilo a que se pode dar o nome (recorrendo a um outro filósofo ainda, Wittgenstein), de “cegueira aspectual”: isto é, não querer ver as nuances de um problema porque essas nuances escapam à experiência mais chã que se tem da mesma cor, território, conceito, etc. Ou, por outras palavras, revelando como um certo pensamento prático é inconsiderado para com uma sensibilidade mais ampla e aberta a experiências diferentes mas tão ou mais efectivas do que aquelas a que pensam se pode retornar. Uma primeira pauta-se pela seguinte afirmação: “(já) não há revistas de banda desenhada”, o que deve ser antes lido não existirem repetições de modelos editoriais análogos aos de uma forma de fazer, ditar e fruir a e da banda desenhada como num tempo em ela ocupava um lugar privilegiado de instrumento de entretenimento, e não de expressão pessoal ou investigação artística. A resposta a isso é, “existem, sim, mas não são iguais às que procura, veja, ei-las”. Outra passa por um pequeno desvio, relacionado com algumas das diatribes passionais contra o programa VerBd (ver secção dos comentários aqui, ou o a parte que lhe cabe no BDJornal # 20) onde um dos intervenientes afirmou, em detrimento dos autores seleccionados, “quem trabalha não faz relações públicas”, acusando assim esses autores e, por tabela, o entrevistador, de uma espécie de conluio social, pelas redes da amizade e conveniência e não pautado por alguma solidez (a vário graus e naturezas, sem dúvida) de trabalho efectuado, e mais acima de tudo, uma procura por uma qualidade intrínseca, estética e de atitude perante a banda desenhada como modo de expressão, e não como mero veículo (empregue seja em que “função” for). Apenas um exemplo, e que se prende com a Glomp directamente: André Lemos poderá ser um “ilustre desconhecido” entre nós, que nos abandonamos à ignorância e à falta de capacidade de procura individual, e contentamo-nos com felicidades afoitas e famas de praça pública, mas é também um dos autores mais internacionalizados dos portugueses desta geração mais jovem (fins da década de 80 até hoje), se não o que mais trabalho tem em publicações estrangeiras (dessa geração), à qual se junta esta mesma Glomp. Mas essa afirmação, como dizia, deve também ser lida de uma outra forma, encará-la como um grau muito grave de ensimesmamento, em que apenas se pode recorrer ao convívio com os Outros, quando esses outros são o Mesmo; afinal é como ser-se confrontado de facto com experiências de alteridade, seja essa cultural e intelectual, artística, e política, etc., fosse visto não como criação de oportunidades de fortalecimento ou desenvolvimento do Si-Mesmo, mas como ameaça à Mesmidade que se pensa ter alcançado enquanto, ilusória, claro está, “perfeição”. A última dessas afirmações já denota um breve contacto com as publicações, mas um contacto que se estabelece para logo ser negado: “não têm interesse”, o que por sua vez deve ser lido como uma qualidade de medo, não dos trabalhos, mas a de que estes trabalhos levantem uma incompreensão que está dentro de quem os não deseja sequer compreender; pois a mera verificação desta comunidade crescente e internacional que estabelece elos de colaboração e edição, se bem que não prime pela massificação e pela acessibilidade (a vários níveis), revela esse mesmo desejo de construção de comunidade, ao passo que as bandas desenhadas comerciais se pautam somente com uma preocupação de retorno imediato e que espera, as mais das vezes, algum grau de aceitabilidade em públicos internacionais, mas públicos que apenas os consomem pela inércia da maior visibilidade, e não uma opção real e activa.
Voltando atrás, para ligar os pontos todos, portanto, o que vejo ao ser confrontado com a Glomp, e a Kramer’s Ergot, e a Canicola, e a Mesinha de Cabeceira, e a Argh!, e outros exercícios maiores ou menores, de grande ou menor alcance, de pequena ou mais férrea pujança, é um gesto certeiro nessa permanente discussão e aproximação a uma comunidade amplíssima e tangível, erguida pela e unida na partilha estética.

Em muitos aspectos, e repetindo uma fórmula que se encontra em vários locais, a Glomp é comparada, e com propriedade, à Kramer’s Ergot. Como ela, nasce de um gesto antológico de novos e interessantes autores narrativos, que consolidam uma linguagem relativamente inovadora com princípios consensuais do que constitui a banda desenhada em geral, para paulatinamente se aproximar de cada vez mais uma política de radicalismo visual e narrativo, ainda no interior do território da banda desenhada. Tal como a revista americana nos últimos dois ou três números se distancia cada vez mais das suas congéneres, e até de si mesma nos primeiros passos, também estas últimas Glomp (desde o número 7, talvez?), em relação às anteriores, parece mais inclinada a uma experimentação da(s) linguagem(ns). Encontram-se aqui trabalhos magistrais, desde uma pequena banda desenhada tout court do já referido André Lemos, a uma “fuga e variação” divertidíssima de Lamelos, a um dos episódios da saga Power Masters de C.F., à presença fulminante de Tommi Musturi (o editor), de Amanda Vähämäki, Anders Nielsen, Ilan Manouach, Andrea Bruno, Ruppert e Mulot, Rui Tenreiro, ao "estranhamente familiar" das histórias curtas da sul-coreana Lee, Jung-Hyoun (com um exemplo acima), à aparentemente saga violenta infantil de Olivier Schrauwen (mais abaixo), e ainda muitos outros... Uma imensa diversidade de humores e naturezas de trabalho, num imenso livro. E acima de tudo, por mais uma vez, na melhor tradição das boas antologias de banda desenhada contemporânea, porque o gesto editorial de selecção e mise-en-scéne é coeso, multímodo, angariador de leituras diversificadas, desencadeador de novas relações, e mesmo belo, já que o objecto em si potencia o prazer sensual de ler estes trabalhos e de os atravessar com o olhar e os dedos.
Nota: agradecimentos a André Lemos, pela oferta do livro.

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