24 de novembro de 2007

Horace Dorlan. Andrzej Klimowski (Faber and Faber)


Como em muitos outros passos, a primeira pessoa a introduzir este autor ao público português (um público reduzido, mas sem dúvida que mais atento e capaz de traçar caminhos próprios) foi Domingos Isabelinho, e remeto à leitura do seu artigo, “Os sonhos e os segredos de Andrzej Klimowski”, publicado na Satélite Internacional no. 3 (Maio de 2003), no qual discorre sobre os dois anteriores livros do autor anglo-polaco Andrzej Klimowski, a saber, The Depository: A Dream Book, de 1994 e The Secret, de 2002 (ambos também da Faber and Faber). Tratam-se de livros que apresentam uma narrativa dita “muda” através de uma sequência de imagens, na senda de autores como Masereel, Ward e tantos outros (* e *). É também esse um excelente ponto de partida para uma introdução mais geral e para toda uma série de pistas de leitura que serão aqui retomadas com o mais recente livro do artista, Horace Dorlan, mas que estabelece desde logo algumas diferenças com os anteriores. A grande diferença – mas veremos que é a um nível aparente, não profundo – é que para além das sequências de imagens sem texto, ou melhor, sem falas directas das personagens ou intervenções de uma voz narradora externa (e logo, a inclusão de balões ou de legendas), se apresentam trechos de texto, verbal, literário, de narração, com diálogos, descrições, comentários não-narrativos da parte do narrador, que nos parece ser uma ora das personagens internas à diegese, ainda que não central, Ed Green, ora o próprio Horace Dorlan. Muitos dos críticos (inclusive as “laudas” das contracapas) se socorrem dos nomes de Kafka ou de movimentos como o Surrealismo para tentarem demarcar o universo de referências de Klimowski, como primeira abordagem a um entendimento dos seus aparentemente desconexos e ilógicos contos. Todavia, é preciso procurar as especificidades da escrita de Klimowski, que não participa nem do humor irónico ou perturbante de Kafka nem das procuras no acaso dos surrealistas (como sucede, por exemplo, no grande autor do movimento de “bandas desenhadas”, Max Ernst com os seus romances-colagem).
O tentarmos fazer uma pequena sinopse da estória, para além de um exercício difícil e que apaga todo o valor do texto por apenas mostrar a sua fábula (emprego aqui os específicos termos da teoria narratológica triádica como exposta por Mieke Bal, sendo o primeiro referente aos signos legíveis e interpretáveis, finitos no suporte material da obra, e a segunda os eventos na sua organização lógica e cronológica; passando-se ainda pelo crivo intermédio da história, que não é senão a forma de organizar os elementos da fábula numa ordem imaginativa e que se expressará num texto), seria sobremaneira difícil pois obrigar-nos-ia a transpor todo o texto, já que a fábula se dilui completamente numa impossibilidade, em elementos díspares e contraditórios, que se anulariam entre si. Ou melhor, se tomarmos em conta a emergência de cada uma dessas porções de elementos, cada “parte da estória”, como “verdadeiras” ou “possíveis”, chegaremos àquilo que Leibniz chamara de compossibilidade. Um exemplo acabado desse conceito na ficção (cinematográfica) encontra-se em L'Année dernière à Marienbad, de Alain Resnais e Alain Robbe-Grillet, mas há muitos outros realizadores que nisto mergulham, de Cronenberg a Lynch. Esta será a primeira pista para a estranheza provocada por Horace Dorlan. Não significa isto que não possamos tentar uma aproximação: Horace Dorlan é um entomologista conceituado, que estudara em Pisa quando jovem e deseja fazer uma apresentação científica que una a solidez académica à criatividade artística, unindo à sua própria capacidade de apresentar factos e trabalhos de investigação um espectáculo musical, visual e performativo. Nesse aspecto, é como se Dorlan procurasse uma outra maneira de pensar e, assim, de escrever sobre e se inscrever no mundo. Mas algo ocorre, talvez um acidente, talvez com o próprio Dorlan, talvez com um seu assistente (Ed), talvez apenas tenha sucedido um pequeno contratempo ou uma confusão qualquer. Confusão que se ressentirá mais na narrativa do que em qualquer outra dimensão. O que acontece é que ficamos perdidos em relação ao que é o nível primeiro da narrativa (ou pensamos ser esse nível) e os níveis intercalados ou hipodiegéticos (ou o que julgamos que sejam, com as redes complexas de elipses e metalepses, isto é, de um modo simples, “confusões” em relação a quem narra o quê, e que vão tornando tudo cada vez mais intricado, até atingirmos um final que não se trata de um desenlace nem de um remate, pois nem havia trama clássica nem uma só direcção a fechar), e chegamos mesmo a pensar que alguns desses níveis se imiscuem uns nos outros, misturando-se impossivelmente.
Esta convergência de vários níveis de eventos e níveis narrativos, quer conforme a pessoa do narrador quer em relação à “verdade” da diegese são o que ecoa em Horace Dorlan: de um momento para o outro, não estamos de modo algum seguros se estamos a seguir uma história ou outra, apenas sabendo que ambas não podem ser reais – a mulher de Horace ou esteve ou não esteve com ele em Pisa, ou é ou não é uma saxofonista exímia -, e paulatinamente somos levados a crer que uma delas é falsa ou fictícia (o que é sempre curioso acontecer no interior de uma ficção). Mas quando digo “uma delas”, ainda pareço dar conta de que é possível distinguir como que dois trajectos mais ou menos estanques; apenas porque incorro numa redução drástica que passa pela tentativa de verbalizar de outro modo o que a literatura permite, e essa clareza não existe no livro de Klimowski. Claro está que esta “falta de clareza” não deve ser considerada no seu mero valor descritivo e menos ainda na moralidade literária que parece indicar; bem pelo contrário, indica essa natureza de estranhamento e de aniquilamento de marcos lógicos que nos fazem melhor perder nos “bosques de ficção” (U. Eco). Só que, de quando em vez, há bosques bem mais cerrados do que outros, por vezes mesmo bosques nos quais não há caminho de retorno ou de saída, e isso só pode ser fonte de felicidade ao leitor. Se leitores existem que apenas se congratulam no conforto dos sendeiros mais arranjados e seguros, são esses leitores que não entendem que essas mesmas ficções são as mais marcescíveis com a marcha do tempo.

Mas tentamos aqui tornar mais claro – impossível – ou obscurecido por uma visão teórica – tal como quando fechamos ligeiramente as pálpebras para ver num dia especialmente luminoso -, como dizíamos, a estória que é construída pelo texto verbal. Sabemos porém que há uma grande parte ocupada pelas imagens, ou por um texto visual. Não será surpreendente nem chocante que esse contraste entre as várias “hipóteses” encontre, ao nível da diegese, uma possível explicação (ou interpretação, pelo menos), a qual nos leva a duas afirmações complementares: primo, há afinal uma história que é construída pela parte do texto somente; secondo, as partes reservadas às sequências de imagem somente seriam na verdade dispensáveis sem ocorrer uma quebra interna a esse mesmo texto. Cada uma das partes das imagens intercaladas não influi um sentido directo e imediato sobre a narrativa exposta da mesma forma. Mesmo a inclusão de estratégias mais próximas da banda desenhada como entendida de uma forma mais normalizada não resolvem o problema levantado. Há dois finais de capítulo que parecem continuar ou ilustrar esses mesmos capítulos, há uma sequência que retoma o que havia sido descrito verbalmente ao princípio, há um momento em que a conversa entre Dorlan e a sua mulher, Angela, passa pela apresentação de imagens que nós vemos também com eles, e o livro fecha-se com duas imagens que explicitam esse final. E, mais importante, existem quatro sequências que parecem desconexas ou apenas tangencialmente associadas à narrativa veiculada pelo texto (já de si desconexo). Mas nestes casos a pergunta que obrigatoriamente terá de surgir é: então que sentido têm esses mesmos trechos? Que diferenciação de sentido exercem? Qual o papel que lhes é reservado?
Há muitas afinidades que se poderiam procurar na obra de Klimowski. As constantes comparações com o cinema não é de todo descabida, pois parece ser com realizadores e argumentistas que surgem os mais imediatos elos. De um modo muito superficial, poder-se-ia por exemplo arregimentar alguns dos filmes de Peter Greenaway, nos quais homens das ciências – das exactas e observacionais – se aproximam de outros campos, artísticos, místicos, ou até mesmo campos que quanto mais lógicos mais loucos (Drowning by Numbers), para poder levar algo que é “More like a vision than a scientific lecture”, diz Dorlan a Angela. Uma outra referência será a Dennis Potter, famoso autor e dramaturgo inglês, sobretudo a três das suas séries de televisão absolutamente espantosas (ou duas, uma vez que os dois últimos títulos constituem um só corpo narrativo): The Singing Detective, de 1986, e Karaoke e Cold Lazarus, de 1996. Potter exerceu nestas séries (e noutras também, estou em crer) uma mistura muito particular de narrativas de vários níveis hipodiegéticos e de metalepses, a ficção interna desenvolvida a entrar na primeira ficção (por exemplo, um escritor desenvolve uma personagem que acabará por encontrar no seu próprio mundo como se de uma pessoa real se tratasse, mas em que essa personagem o soubesse sê-lo, ou outra variação), e ainda misturando dados biográficos reais (mas de que apenas nos podemos inteirar com referências extratextuais). Esta comparação não é displicente, uma vez que no texto, quando num dos momentos, num dos níveis, Ed Green se refere à sua própria obra como uma “science fiction biography”, precisamente as mesmas palavras com que se poderia apodar Cold Lazarus (e até certo ponto The Singing Detective). Este estranho livro que Ed escreve ecoa os estranhos desenhos esquemáticos que Dorlan parece ter criado aquando do seu acidente. Duas obras estranhas que nascem da doença, de uma interrupção de um trabalho lógico e sóbrio, interrupção que parece libertar uma possibilidade qualquer nas personagens (só numa, na outra, em ambas?). Qual destas obras é ficção, dentro da ficção geral do livro de Klimowski? Qual delas é que exerce maior domínio sobre as restantes histórias, ou sobre a “realidade” da ficção primeira? Ou será antes que nenhuma delas têm predomínio e ambas se espelham, espelhando-se na e espelhando a ficção primeira? Em termos temáticos (mas figurativos também, ou “de personagem”, já que voltamos a encontrar as pessoas-insecto, as criaturas aladas, os livros enquanto seres vivos), portanto, Horace Dorlan parece exponenciar aquilo que já havia estado presente nos trabalhos anteriores e que, no caso particular de The Depository, ecoava um incipit idêntico ao de Das Idee de Masereel (com quem partilha afinidades estilísticas, já que as especificidades das xilogravuras de Masereel parecem ser simuladas pelos desenhos de Klimowski: a leveza do pincel ou caneta permite uma maior ligeireza – que não deve ser confundida com “leviandade” mas brevidade, não “inconsequência” mas destreza - e maleabilidade que a incisiva goiva ou o profundo buril): os conceitos podem surgir ao seu criador quando este menos espera, ou quando já desespera, e pode ganhar uma vida própria, que já não lhe pertencerá, e ser usada e abusada por todos (vai não só ao encontro de, mas ainda contra a interpretação), e para bem ou para mal ganhará uma liberdade máxima (“para mal” significa que pode levar essa ideia, esse conceito, essa obra, à morte dela mesma). Essa pode ser, porém, a felicidade que cabe a autor. Com The Secret, há mesmo trechos narrativos que se parecem repetir em Horace Dorlan: entomologistas, performance-conferências, mulheres-morcego, homens-insecto...
A atenção de Klimowski incide sobre todos os sentidos do corpo humano, e há um grau, na narrativa, muito atento aos pormenores de arranjo das personagens, aos espaços, às coincidências de um local com uma obra de pintura, à forma de disposição de uma ementa, aos sons e cheiros que rodeiam um evento, uma forma de atenção minúscula que está em directo contraste com o modo de expressão visual pelo qual o autor opta: grandes áreas de pretos e brancos com alto contraste, personagens e objectos construídos com linhas de grossos contornos e pouco lugar para detalhes, uma figuração algo titubeante, que mais deve a uma breve caracterização por sinais mínimos gráficos do que por uma aturada personalização das personagens (uma estratégia, enfim, comummente empregue na banda desenhada dita “clássica”, sobretudo no eixo franco-belga). Ou seja, a bifurcação dos modos presentes no livro acabam por fazer emergir uma verdadeira contradição, não apenas pela inércia de serem duas “linguagens” diferentes, mas pelas maneiras que cada uma dessas linguagens se constitui. Se, portanto, em termos narrativos, a parte da imagem se mantém na mesma linha disruptiva que a da palavra, já numa aproximação de detalhe elas opõem-se. Um dos sentidos, todavia, é mais exacerbado que outros: o da visão. À partida, parecerá que não estou a apontar para nada mais do que a mais banal das direcções a apontar. Mas não me refiro à visualidade permitida nem pelas próprias imagens nem por aquela capacidade descritiva a que a maioria dos leitores se lança para chamar um determinado escritor de “muito visual”... A visão a que me refiro surge pelos jogos de reflexos, de fantasmas, de trocas de olhares que acontecem entre as personagens. A mera leitura do texto desocultará o sentido destas palavras. Ed Green conversa com fantasmas; Dorlan olha um homem que poderia ser ele mesmo no balcão da varanda de um apartamento que habitara, e um reflexo ao fundo de um lanço de escadas, e uma mulher que a custo reconhece, e as multidões e as acções delas nos lugares públicos onde com elas se cruza. A nossa leitura, se atenta, saberá desocultar outros tantos fantasmas de sentidos, em todos os sentidos.

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