Olivier Deprez é um dos fundadores das edições Fréon (que mais tarde se fundiriam com a Amok na Frémok), que desde logo se assumiu como uma das plataformas de vanguarda da banda desenhada, em todo o sentido, histórico e bélico e activo em termos estéticos, que esse vocábulo, “vanguarda”, implica, não obstante os constantes e graves abusos a que é submetido. Desde os primeiros números da Frigobox (a partir de 1994), revista desta associação, este artista francês assumiria um papel multímodo: artista, escritor, teorizador, mentor dos manifestos... As suas preocupações espelham a atitude geral de uma nova geração de artistas, precisamente os que se regulam pela proximidade ao grupo Frémok: a criação de uma banda desenhada com uma expressividade gráfica imbuída de um espírito experimental, lato e informado quanto à contemporaneidade das artes visuais, mas também uma consciente e activa manifestação de posições teóricas. Daí, por exemplo, a sua associação e amizade com um autor como Jan Baetens, a meu ver um dos mais interessantes teorizadores da banda desenhada dos nossos, se não de todos, os tempos. (Aliás, este Deprez – irmão do outro, o Denis – publicou um livro com Baetens, La Construction de une Ligne T.G.V.). No panorama francófono existem outros projectos próximos, mas as preocupações da L’Association são mais sentidas em termos editoriais, de legibilidade, de amplitude de públicos, de criação de novas sinergias, e a Le Dernier Cri tem uma aproximação bem mais livre em relação à expressão pessoal, o que leva até a uma certa animosidade entre estes grupos, que leva ao apodo de “arrogantes” aos autores da Frémok. Não penetrarei nessa polémica, uma vez que não conheço as pessoas a nível pessoal, em primeiro lugar, e em segundo dada a minha crença, a minha posição em que pouco importarão essas atitudes, já que são os frutos do trabalho, visíveis e legíveis e interpretáveis, o que deve estar no centro da nossa atenção de, acima de tudo, leitores. Mais, não obstante as agudas diferenças entre estes três grupos mencionados, todos esses trabalhos são válidos no seio desta arte tão ampla da banda desenhada, e cada um apresenta as suas próprias valências.
Para um imediato entendimento da inclinação teórica de Deprez, convido-vos a lerem o seu ensaio de leitura de um livro sobre os desenhos de Kafka, leitura a qual coloca em diálogo íntimo com a sua própria obra, Le Château, adaptação da obra homónima de Kafka, O Castelo (e cuja tradução portuguesa está disponível no último número da Satélite Internacional, onde encontrarão ainda uma entrevista a Deprez, a propósito deste mesmo livro).
O interesse por Kafka apresenta muitas dimensões, extremamente complexas e uma história já intricada e longa. As supostas filiações da sua obra e as adaptações dos seus escritos a outros modos de expressão estão pejados de exemplos, uns menos felizes, outros mais inteligentes, mas sempre levando a uma série de mal-entendidos e mesmo uma leitura enviesada e deturpada da força literária e o sentido último da obra do escritor checo. Esse mal-entendido cristalizou-se nessa palavra algo vazia, “kafkiano”, utilizada ao Deus-dará e a torto e a direito, e que pertence talvez à mesma categoria de “génio”, “original”, entre algumas outras... Por exemplo, um dos aspectos esquecidos ou pouco indicados na interpretação/leitura de Kafka é que o seu vocabulário (em alemão) é bastante simples, nunca apresentando uma frase conturbada, vocábulos menos imediatos, referências obscuras. O fosso problemático em Kafka não está na língua... Está antes, em parte, na estranheza que essa simplicidade provoca ao se verter sobre o inexaurível desespero que retrata.
A banda desenhada, enquanto modo de expressão, não é excepção nesta atracção pelo espaço aberto (e provavelmente fechado atrás de si) por Kafka. Perderíamos tempo numa lista, mas remete-vos mais uma vez para a S.I. #4, e deixo-vos a indicação de que a Frigobox apresentou logo no segundo número Les Mésanventures de Joseph K., de Olivier Deprez, e que mais tarde (Frigobox #10, 1999) Dominique Goblet também experimentaria adaptar um excerto d’O Castelo. Perderíamos tempo, mas ganharíamos uma forma de poder explicitar a seguinte afirmação: a esmagadora maioria dessas adaptações são redutoras – isto é, pegam num só elemento, o diegético as mais das vezes, e recolocam-no numa maneira linear de o recontar; esta adaptação de Deprez nem sequer é entendida por essa palavra pelo autor (vejam a entrevista citada), mas antes como uma forma de reescrita. De facto, Deprez reinscreve o acto criativo de Kafka de O Castelo na sua forma pessoal de criação de banda desenhada. "Transformação criadora", como já antes dissera aqui. Os “episódios”, as “personagens”, os “espaços” são coincidentes com o romance do escritor, sem dúvida, mas o mais surpreendente é a coincidência do gesto propriamente dito da criação.
Esse gesto particular é ainda mais sentido pelo facto desta obra não ser feita de desenhos a tinta, etc., mas numa sucessão de xilogravuras. Há uma série de questões que esse acto levanta, em termos estéticos: o golpe profundo na madeira como que imitando uma acto mais duradouro sobre o corpo humano, a inversão branco-negro/inscrito-vazio da placa à folha de papel, a ausência de nomes ou deícticos na escrita de Kafka para uma espécie de neblina gráfica que Deprez faz contínua neste livro... Questões que tentei explorar noutro texto (inédito), futuramente aqui indicado, mas que não posso revisitar convenientemente aqui.
Usualmente, os leitores comuns preocupam-se em ver se a “estória” (e os seus componentes) se mantém quando passa de um modo para outro. Nesse sentido, Deprez mantém a lista de personagens, mudando apenas (ligeiramente) o nome do protagonista, mantém as acções, os episódios, os espaços. Mas, como disse, mantém também aquela força que normalmente se perde quando se reconta uma tão poderosa obra, vertendo-a da sua textualidade e metamorfoseando-a nas qualidades específicas da banda desenhada, e é aí que reside a sua superioridade artística em relação a outras “adaptações” existentes.
15 de outubro de 2005
Le Château. Olivier Deprez, d'aprés Kafka (Frémok)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:24 da tarde
Etiquetas: Adaptação, Experimental, França-Bélgica
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3 comentários:
Apetitosos estes dois!
concordo com o André...!
alguma relação entre Deprez - Deprez?
Estou atrasado nos meus posts. Aguardem... Os Deprez são irmãos.
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