Reencontros e enlaces familiares, relações com objectos ou seres vivos que não humanos que despoletam emoções e chagas profundas, até mesmo sombras numa parede são suficientes para despertar impressões no coração das personagens. Estamos perante uma verdadeira pequena "comédia humana".
As diferenças entre as tradições literárias do Extremo Oriente e as europeias fazem pender a nossa balança para uma maior respeitabilidade do romance (mesmo assim, apenas nos últimos 200 a 300 anos) e as dessoutras culturas para a da breve narrativa. Por isso, não seria surpreendente saber que estas narrativas escolhidas fariam parte de um importante corpus da literatura moderna japonesa, a saber, do livro Keyaki no ki (precisamente uma espécie de ulmeiro), do escritor Utsumi Ryuichiro. Outras adaptações à mangá já foram aqui indicadas. Porém, a questão da adaptação é secundária, necessariamente, uma vez que se tratam de textos que não nos são – nesta fase pelo menos – facilmente acessíveis. E haverá sempre subtilezas perdidas, como os sotaques das personagens, conforme a indicação de Yoshikawa Ushio, no posfácio deste livro.
Como nos outros livros de Taniguchi, há sempre a presença de uma voz narrativa, surgindo nas “caixas” de texto. Porém, onde em Journal e Terre de Rêves pertencia às personagens intradiegéticas, esta voz em particular já não pertence a essa interioridade e voga acima das histórias, mas sem que essa distância ajude a construir alguma dimensão em relação à amplitude ou profundidade, bem pelo contrário, é na maioria dos casos tautológica, descrevendo precisamente a acção já visível. Tratar-se-á de um difícil afastamento do texto original de Utsumi da parte de Taniguchi ou revelará isto antes uma ainda tentativa adaptação, cujos mecanismos não são simples?
Houve algo que não mencionei ao falar dos outros livros. As figuras de Taniguchi, especialmente os rostos, não são demasiado expressivos, isto é, não surgem sinais expressivos gráficos que transmitam toda a amplitude dos rostos humanos. Não tem nada a ver com “não saber desenhar” ou coisa do género, que é uma questão, além de impertinente, muito complexa na banda desenhada já que se relacionará com muitos outros factores, aqueles que permitem falar desta arte de um modo holístico. Usualmente os artistas fazem-se valer de valores aqui onde ali não os têm. As personagens de Schuiten ou de Bilal, por exemplo, são bem mais “caras de pau”, e os artistas ditos “minimalistas” ou mesmo um Schulz fazem-se valer de outras dimensões permitidas por este modo de expressão. As personagens de Taniguchi acabam por cair dentro de um limitado espectro físico e de expressividade facial (não obstante as palavras Yoshikawa), mas é nos interstícios das acções que ele coloca toda a força: quando olham no vazio, se interrompe uma conversa (usualmente com um balão apenas preenchido de vazio ou reticências), baixam os olhos, pensam… Veja-se, por exemplo, a estória Le Cheval de Bois, na qual a criança Hiromi se presta na perfeição ao traço quase estático de Taniguchi, mas em contrapartida se representam grandes planos ou planos inclusivos das mãos da menina em contacto com as dos avós para nos fazer participar da pouca proximidade que se vai estabelecendo paulatinamente entre todos. Ou na ocultação do rosto da mãe dos protagonistas de Dans la Forêt, ilustrando literalmente o que diz e mostra dos “endurecimentos”.
Como se sabe, onde o romance se estrutura pela multiplicidade de tempos, espaços, personagens e intricação de acontecimentos (nas suas formas mais clássicas, claro está), o conto concentra no âmago da questão. E estas oito curtas narrativas de Utsumi-Taniguchi centram-se precisamente naquilo que as torna merecedoras de todo o esforço dedicado da parte de leitores com discernimento: a vida humana.
14 de outubro de 2005
L'Orme du Caucase. Jiro Taniguchi (a partir de Utsumi Ryuichiro) (Casterman)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:18 da manhã
Etiquetas: Japão
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário