Uma das mais básicas, bárbaras e patetas das acusações que se podem fazer perante uma obra de arte, sobretudo contemporânea, quando esta vem acompanhada de um texto do artista ou de outra pessoa, é que “uma obra de arte não precisa de explicações; vale por si mesma ou não vale nada”. Bom, confesse-se neste passo imediato que não estou escusado de ter caído nesta diatribe palerma e superficial numa que outra situação real, mas o dia a dia é feito de boutades que, numa pausa e reflexão, se apagam de imediato. A arte conceptual é construída precisamente na premissa de que se entenda, previamente, um conceito determinado para se poder apreciar o gesto artístico, ou por outras palavras, entender as regras com as quais se joga para se jogar melhor. (Mais)
Para ganhar, até, já que no jogo da arte ganham todos os intervenientes se não for a obra falha. Acima de tudo, penso que, perante qualquer objecto que se pretenda como “artístico”, a primeira pergunta que nos devemos colocar, antes de quaisquer barreiras, preconceitos, defesas (de nós-mesmos, não nos enganemos), é extremamente simples: “porque não?”. Simples, mas não simplória. Um “porque não?” não é simplesmente um encolher de ombros (conceptual) que pressupõe que não nos queiramos apoquentar com questões e gravidades, ou que nos divorciemos de uma predisposição à troca de ideias, ou que nos borrifemos para a capacidade de pensar. Trata-se de uma acção de forte significado. Em primeiro lugar estamos a colocar em questão uma negatividade, o não que nos arranha (ou à do nosso companheiro de visita) a garganta e quer sair disparado sem receio. Estamos a demonstrar que começar com um “não” é um mau começo, e que começar com um “sim” é mais difícil mas será no fim recompensado seguramente; ao passo que um “não” perde sempre, pois nem sequer fica para saber do resultado da inquirição abortada. Em segundo lugar, o interrogativo não podia ser o mais acertado. É como o “porquê?” repetido na infância perante o mundo, uma avidez jamais satisfeita cabalmente em querer, de facto, por mais tempo que demore e por mais que custe, em realmente entender o que se pergunta. “Porquê?”, perguntamo-nos à porta pela razão de não nos deixarem entrar, para que possamos entrar.
Na banda desenhada, se bem que esta atitude não seja propriamente conta-corrente, não é de todo inédita. A simples (!) existência dos projectos da Oubapo levam-nos a encontrar sem pestanejar de bandas desenhadas cuja fruição devem imperiosamente associar-se ao entendimento das suas regras de construção.
A razão do meu “porque não?” surge aqui associada ao livrinho de Florent Ruppert e Jerome Mulot, Gogo Club. Na Éprouvette no. 1 surgiram os primeiros “exercícios performativos” deste duo de autores, ainda acompanhadas de uma entrevista de J.-C. Menu. Digo performativos pois a acção criativa da dupla prende-se de facto com os parâmetros dessa disciplina artística (a imediatez, a circunstância concreta, a disponibilidade e interacção com os circunstantes, etc.).
Explicação do método: numa sessão de “dedicatórias” (exercício típico pelo qual passam os autores de banda desenhada em festivais ou convenções ou lançamentos, mas aqui invertido: são os autores que ficam com o produto e os “clientes” quem contribui para a sua construção), os autores levam uma folha ao comprido onde já desenharam, no fundo de uma vinheta maior, uma situação que implica os próprios autores e uma terceira personagem; e uma segunda vinheta, menor, onde estará uma situação de “desfecho”, “punchline” ou “resolução”, mesmo que seja um soco no entrevistado, despi-lo, mijar-lhe em cima. Uma pessoa que esteja presente aproxima-se dos dois e entabula uma qualquer conversa circunstancial, que é anotada em forma de diálogo nesse desenho prévio, para o qual os autores tentam guiar, minando a conversa de maneira a que se encaixe na situação predefinida. Esse texto final e actual vai, portanto, informar, de um modo estranho em maior ou menor grau, a situação visual já existente. A teatralidade está presente neste lançar uma regra (situação) cujo terceiro papel está reservado a um actor circunstancial, fazendo mergulhar os pressupostos, de Brecht às performances dos nossos dias, da “interactividade com o público” dentro do papel da banda desenhada. Os laivos de violência de algumas das “peças” apenas sublinham a barreira demolida entre o espaço do autor e o espaço do leitor que usualmente existe neste campo, onde cada um habita confortável um espaço que lhe é determinado e separadamente um do outro pelo objecto-livro. Outra das barreiras do interdito que a performance destruiu é o da linguagem/diálogos reais, com toda a redundância e ruído típicos da nossa experiência, mas extirpados da ficção construída (curiosamente, porém, os diálogos assim construídos remetem-me para a recordação de uma banda desenhada mais normalizada mas não menos exploratória dessa dimensão descomunicativa, que foi – acreditem ou não - Achille Talon, de Greg).
Gogo Club apresenta mais catorze destas peças (a acrescentar às dezasseis da l’Éprouvette no. 1), com um arranjo ligeiramente diferente e com mais uma alteração: no topo da prancha, ao centro, desenha-se uma espécie de máscara de gigantone, que se aventará como “personagem” da história apresentada no final deste livrinho. História que é construída a partir da premissa das funções das personagens apresentadas – o “bêbado”, o “polícia”, a “amante”, etc. essa história é usualmente representada num espaço cénico como que iluminado por um foco de luz. Apresenta-se assim uma dimensão teatral segunda, que não deseja criar quaisquer ilusões de realismo, mas bem pelo contrário revelar a artificialidade através de vários elementos (as máscaras, o foco de luz, os cartões de texto) para redimensionar a “entrevista/dedicatória” como blocos de construção de uma ficção patética.
Quando surgem (e vão surgindo, cada vez mais, estas improfícuas e aquelas significativas) as discussões em torno das potencialidades artísticas – na mais ampla e acabada acepção desta palavra – da banda desenhada, parece-me a mim que mais do que pugnar por um lugar das pranchas (concebidas enquanto tal, pelo menos) nos espaços expositivos das artes que a esses mesmos espaços se destinam no seu gesto inaugural, é preciso tentar compreender os autores e as acções efectivos no seu interior que ascendem a esse campo. Gogo Club é um desses gestos. Certo, poderá não ter chegado lá (seja lá onde esse lá for), mas para lá caminha...
Para ganhar, até, já que no jogo da arte ganham todos os intervenientes se não for a obra falha. Acima de tudo, penso que, perante qualquer objecto que se pretenda como “artístico”, a primeira pergunta que nos devemos colocar, antes de quaisquer barreiras, preconceitos, defesas (de nós-mesmos, não nos enganemos), é extremamente simples: “porque não?”. Simples, mas não simplória. Um “porque não?” não é simplesmente um encolher de ombros (conceptual) que pressupõe que não nos queiramos apoquentar com questões e gravidades, ou que nos divorciemos de uma predisposição à troca de ideias, ou que nos borrifemos para a capacidade de pensar. Trata-se de uma acção de forte significado. Em primeiro lugar estamos a colocar em questão uma negatividade, o não que nos arranha (ou à do nosso companheiro de visita) a garganta e quer sair disparado sem receio. Estamos a demonstrar que começar com um “não” é um mau começo, e que começar com um “sim” é mais difícil mas será no fim recompensado seguramente; ao passo que um “não” perde sempre, pois nem sequer fica para saber do resultado da inquirição abortada. Em segundo lugar, o interrogativo não podia ser o mais acertado. É como o “porquê?” repetido na infância perante o mundo, uma avidez jamais satisfeita cabalmente em querer, de facto, por mais tempo que demore e por mais que custe, em realmente entender o que se pergunta. “Porquê?”, perguntamo-nos à porta pela razão de não nos deixarem entrar, para que possamos entrar.
Na banda desenhada, se bem que esta atitude não seja propriamente conta-corrente, não é de todo inédita. A simples (!) existência dos projectos da Oubapo levam-nos a encontrar sem pestanejar de bandas desenhadas cuja fruição devem imperiosamente associar-se ao entendimento das suas regras de construção.
A razão do meu “porque não?” surge aqui associada ao livrinho de Florent Ruppert e Jerome Mulot, Gogo Club. Na Éprouvette no. 1 surgiram os primeiros “exercícios performativos” deste duo de autores, ainda acompanhadas de uma entrevista de J.-C. Menu. Digo performativos pois a acção criativa da dupla prende-se de facto com os parâmetros dessa disciplina artística (a imediatez, a circunstância concreta, a disponibilidade e interacção com os circunstantes, etc.).
Explicação do método: numa sessão de “dedicatórias” (exercício típico pelo qual passam os autores de banda desenhada em festivais ou convenções ou lançamentos, mas aqui invertido: são os autores que ficam com o produto e os “clientes” quem contribui para a sua construção), os autores levam uma folha ao comprido onde já desenharam, no fundo de uma vinheta maior, uma situação que implica os próprios autores e uma terceira personagem; e uma segunda vinheta, menor, onde estará uma situação de “desfecho”, “punchline” ou “resolução”, mesmo que seja um soco no entrevistado, despi-lo, mijar-lhe em cima. Uma pessoa que esteja presente aproxima-se dos dois e entabula uma qualquer conversa circunstancial, que é anotada em forma de diálogo nesse desenho prévio, para o qual os autores tentam guiar, minando a conversa de maneira a que se encaixe na situação predefinida. Esse texto final e actual vai, portanto, informar, de um modo estranho em maior ou menor grau, a situação visual já existente. A teatralidade está presente neste lançar uma regra (situação) cujo terceiro papel está reservado a um actor circunstancial, fazendo mergulhar os pressupostos, de Brecht às performances dos nossos dias, da “interactividade com o público” dentro do papel da banda desenhada. Os laivos de violência de algumas das “peças” apenas sublinham a barreira demolida entre o espaço do autor e o espaço do leitor que usualmente existe neste campo, onde cada um habita confortável um espaço que lhe é determinado e separadamente um do outro pelo objecto-livro. Outra das barreiras do interdito que a performance destruiu é o da linguagem/diálogos reais, com toda a redundância e ruído típicos da nossa experiência, mas extirpados da ficção construída (curiosamente, porém, os diálogos assim construídos remetem-me para a recordação de uma banda desenhada mais normalizada mas não menos exploratória dessa dimensão descomunicativa, que foi – acreditem ou não - Achille Talon, de Greg).
Gogo Club apresenta mais catorze destas peças (a acrescentar às dezasseis da l’Éprouvette no. 1), com um arranjo ligeiramente diferente e com mais uma alteração: no topo da prancha, ao centro, desenha-se uma espécie de máscara de gigantone, que se aventará como “personagem” da história apresentada no final deste livrinho. História que é construída a partir da premissa das funções das personagens apresentadas – o “bêbado”, o “polícia”, a “amante”, etc. essa história é usualmente representada num espaço cénico como que iluminado por um foco de luz. Apresenta-se assim uma dimensão teatral segunda, que não deseja criar quaisquer ilusões de realismo, mas bem pelo contrário revelar a artificialidade através de vários elementos (as máscaras, o foco de luz, os cartões de texto) para redimensionar a “entrevista/dedicatória” como blocos de construção de uma ficção patética.
Quando surgem (e vão surgindo, cada vez mais, estas improfícuas e aquelas significativas) as discussões em torno das potencialidades artísticas – na mais ampla e acabada acepção desta palavra – da banda desenhada, parece-me a mim que mais do que pugnar por um lugar das pranchas (concebidas enquanto tal, pelo menos) nos espaços expositivos das artes que a esses mesmos espaços se destinam no seu gesto inaugural, é preciso tentar compreender os autores e as acções efectivos no seu interior que ascendem a esse campo. Gogo Club é um desses gestos. Certo, poderá não ter chegado lá (seja lá onde esse lá for), mas para lá caminha...
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