É difícil, quando um autor, com uma sua obra, atinge um qualquer acme – mesmo que esse alcançar lhe tenha sido alheio, não procurado, simplesmente atingido como se o tivesse impelido um verdadeiro e antigo “entusiasmo” – não pautar todos e quaisquer outros dos seus gestos por esse anterior patamar. Martin Vaughn-James, quiçá malgré lui, é o autor do inimitável The Cage (1975), provavelmente um dos mais discutidos livros de banda desenhada (se for mais confortável, podemos acrescentar o adjectivo/erro/ofensa/incompletude “experimental”) entre um determinado círculo da crítica e apreciação desta arte. O que não significa ser um dos livros mais conhecidos desta mesma arte, apesar de ter sido exposto na primeira edição do Salão Lisboa (1999), e ter estado à venda durante anos numa das livrarias especializadas principais da capital. Vaughn-James é autor ainda de um outro punhado de livros, alguns obscuros e difíceis de obter (Elephant, The Projector, The Park – a reeditar brevemente, consta), outros mais recentes ou reeditados (o caso da versão francesa, textualmente diferente, de The Cage, i.e., La Cage, pela Las Impressions Nouvelles, e L’Enquêteur). Continuando uma carreira mais activa no círculo das artes visuais (pintura, colagens, desenho), e vivendo na Bélgica há largos anos, tornar-se-ia uma espécie, não diria de autor de culto (apesar dele se incorporar num, literalmente, aquando do empréstimo da sua pessoa para modelo do artista Desombres, na obra de Peeters e Schuiten, L’Enfant Penchée/A menina inclinada) mas de autor de uma obra de culto (The Cage). Qualquer rápida leitura e mera comparação superficial entre as outras obras e essa fará entender o porquê desse desequilíbrio e aparente injustiça ou cegueira ou monomania. A verdade é que The Cage estilhaça toda uma série de noções preconcebidas ou aceitadas socialmente em torno das narrativas visuais e abriu-se para um caminho inédito, que não mais seria revisitado ou pelo menos não do mesmo modo (havia já exposto esta visão a propósito de How to be Everywhere).
Dito isto, por mais que me tente libertar da leitura e, confesso-o, permanente fascínio com essa outra obra (que mais parece um caleidoscópio de dobras a qual, sob a repetente leitura, se vão desvendando sobre novas dobras a desvendar, e assim para todo o sempre), não consigo senão notar como todos os esforços de Vaughn-James posteriores parecem querer, a um só tempo, libertar-se do peso que ela havia criado – a destituição do seu universo diegético das obrigações para com a continuidade espácio-temporal, o apagar do corpo humano enquanto personagem necessária – e repetir um mesmo gesto de inauguração criativa. The Cage é ainda hoje uma obra fundamental. A sua força é fulcral para um entendimento amplo e consolidado do nosso campo. E exerce um campo magnético de interesse para com outras obras, mormente as do seu autor. Mas é um fôlego irrepetível.
Tal como L’Enquêteur, Chambres Noires desenvolve-se em torno dos elementos que compõem aquilo a que se dá o nome de “policial”. Mas esses elementos não se encontram agregados para a formação de uma trama, de uma história, de um (só) sentido. É como se habitassem as câmaras do sonho, onde um troço narrativo lançasse um qualquer elo inabalável a outro troço, apesar do próprio elo ser inanalisável, invisível mesmo, mas ainda assim puxasse para junto um do outro esses troços, fazendo deles uma unidade maior. Quer dizer, é precisamente pela desagregação dos elementos que eles podem novamente ser agregados. Tal como acontecera com L’Enquêteur – e em certa medida com todas as obras de Vaughn-James – não há uma decisão em ficarmo-nos num só “universo diegético”, havendo espaço para que vários se concatenem no espaço comum da unidade maior – o “livro”.
Apercebemo-nos que existem, porém, nódulos recorrentes. Por exemplo, a de quem alguém – o narrador-protagonista? – se encontra num quarto de hotel. Passará um filme na televisão desse quarto de hotel? Ou vários filmes, que um eventual sono do protagonista torna a percepção intermitente, quebrada, unida apenas pelos breves momentos da vigília (uma outra forma de apresentar os elos de que falava atrás)? Misturar-se-á a ficção (ou ficções) interna à “realidade” da ficção de Chambres Noires, levando-se a uma indecisão de separar a realidade da irrealidade? No fim de tudo, como concluir, como resumir, como moldar uma sinopse de Chambres Noires? Não havendo contornos nem esqueleto, apenas nos sobram órgãos, com as suas funções actanciais, sem dúvida, todos eles activos, efectivos, mas sem compor um corpo unido. Inverte-se aqui a imagem de Artaud/Deleuze/Guattari, do corpo-sem-órgãos (um corpo o qual o desejo desorganiza, procurando caminhos outros); são órgãos-sem-corpo (máquinas de apenas uma única função de desejo, monótonas, monónimas, mas sem que o desejo produzido contribua para um qualquer significado global, um sentido desse desejo).
A arte de Chambres Noires não é, de modo algum, nem surpreendente, nem muscular, nem sequer “bonita”. De novo, tal como L’Enquêteur e The Cage, verifica-se à apresentação de uma meia-dúzia de objectos (isto é, de representações de personagens, de espaços e de objectos propriamente ditos) que atravessam pequenas torções e variações. Se em The Cage isso levaria a uma fantasmagoria humana (sigo um artigo de Domingos Isabelinho), e em L’Enquêteur se entregava às variações possíveis e passíveis do romance policial, uma espécie de pastiche-homenagem-experimentalismo, aqui eleva-se a uma dispersão maior. Mas essa dispersão não termina como uma sua fortaleza. É antes uma mescla de epigonismo (mesmo que de si mesmo) e de maneirismo levado às últimas consequências, que, teme-se, é o niilismo do estilo.
Nota: agradecimentos a Martin Vaughn-James, pela oferta do seu livro.
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