Deveria ser óbvio logo à partida que José Feitor coloca estes animais em cena para que estes possam representar os homens no que estes, por sua vez, mais têm de animalesco. Mais, uma animalidade ainda mais abjecta porque não dominada pelo lado animal somente, mas que persiste apesar da suposta parte da humanidade que nos cabe. É o que se pode entender com a frase inserida no cartão que vem no interior desta publicação: “Foi-se o instinto, ficou o apetite”. Aliás, a isso mesmo ajuda a apresentação deste Animais! no blog que lhe é particular. Esta fórmula circular deveria ser o quanto antes suficiente para nos colocarmos no movimento de carrossel desta pequena publicação, não para verificar uma qualquer platitude ou obviedade, nem para nos colocar num rodopio incessante, mas para nos fazer pensar e repensar incessante e cada vez mais profundamente nessa questão.
Um outro aspecto óbvio é que todo e qualquer trabalho, mormente artístico, criativo, tem uma dimensão política. Todo. Inclusive, senão mais vincado por se desejar “invisível” ou, pior “inócuo”, aquele que declara não a ter. Mas também não pode deixar de ser verificável que essa dimensão pode por vezes ser mais marcada, mais visível, por alguns aspectos da obra de um autor. E a de José Feitor revela uma dimensão política marcada.
Não se entenda esta dimensão como a mais banal das partidarizações, ou rendição a princípios que rapidamente se atrofiam em dogmas. Falo dessa dimensão como concernente à opção em empregar-se os talentos e a voz pessoais numa leitura, crítica, admoestação (repare-se na exclamação do título, como se fosse um grito de chamada ou uma invectiva) e reconstrução da polis, da cidade, em que esse mesmo artista se insere. Quem acompanha o caminho de Feitor, aperceber-se-á de alguns maneirismos recorrentes, sendo a representação de e com e por animais uma delas, e uma irónica distância para com comportamentos humanos – distância que as tornam ridículas, mesmo que nós mesmos as cumpramos diariamente, mas de perto, logo, invisivelmente – outra. Esse caminho é feito sobretudo através da ilustração de imprensa ou outra, os desenhos livres que vai publicando no seu blog pessoal, Escroque, ou que vai expondo nas inúmeras mostras que organiza (associado sobretudo à Feira Laica, mas não só). Tendo em conta alguns dos temas que lança nas antologias que edita e nas exposições que organiza, apenas vemos uma confirmação desse pendor.
Este zine abre com um texto relativamente conhecido de Darwin e uma sua paralela adaptação à banda desenhada (uma prancha de seis vinhetas). As restantes páginas são ocupadas por uma pequena colecção de textos de várias proveniências, de natureza sociológica, psicológica, biológica, ou os cruzamentos possíveis dessas disciplinas, tendo o homem – o macaco nu, apetece dizer, como Desmond Morris – como objecto de observação, e desenhos que não se instituindo como ilustrações directas dessas mesmas citações, estabelecem com as mesmas vários tipos de alianças (ou tidos uns e outras como dois “todos parciais”, no seio do livro alcançando um significado ulterior”). Os desenhos em si têm vários graus de natureza, quer em termos de representação (verificando-se ou não a antropomorfização das criaturas, o estabelecimento de relações entre personagens, etc.) quer em termos de estilo gráfico (colagens, desenhos a contornos grossos ou finos, grandes manchas de negro ou linhas ténues, preto-e-branco ou a incursão por uma segunda cor).
Estas dimensão fragmentária e de reaproveitamento de materiais alheios é ainda uma outra característica – também verificada, ainda que tangencialmente, em Babinski – de José Feitor, como se ele se atribuísse a si mesmo o papel de respigador, apanhando os bocados que as cidades e os dias deixam para trás como se não tivessem importância alguma, e com eles montasse os seus instrumentos de respingador, devolvendo-os com estes pequenos, mas operantes, certeiros e irónicos ataques de insurreição.
Nota: apesar de ter uma cópia, as imagens foram retiradas dos vários blogs citados neste post.
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