A busca por estratégias visuais na banda desenhada que façam a melhor representação possível do som levou alguns autores a criar a belas pranchas, mais belas ainda quando esse som se torna música e essa música diz respeito à mais profunda modelação das paixões ou maneiras das personagens implicadas. Penso acima de tudo numa curta história de Nick Bertozzi (incluída no livro The Masochists), em que as mais esperadas onomatopeias são substituídas por formas visuais que correspondem aos instrumentos empregues na banda retratada e às relações desses sons, as quais estão em lugar dos elos de amizade entre essas personagens. Esta referência não se trata de um desvio, ou pelo menos de uma mera distracção. Há casos onde os autores pensam que a inclusão de uma pauta de música real leva a um maior entendimento do que essas marcas gráficas – que nada significam para analfabetos musicais, como eu – representarão, mas isso apenas poderá funcionar se estiver em contraste (visual, lá está) com algo anterior: Morris fê-lo em Sonata em Colt Maior.
Gipi segue uma outra estratégia de representação da música. A total invisibilidade. Ou, se preferirem, o “silêncio visual”. Surgem onomatopeias, pouco espectaculares, timidamente encerradas num balão ou soltas em torno do objecto de onde partem, em letras desenhadas do mesmo modo que as restantes palavras, e ligadas a um ladrar longe, uma máquina que mal funciona, um abrir forçado de uma janela, um estalar dos dedos, um rosnar humano. Mas quando se adivinha que os barulhos se coordenam numa qualquer espécie de harmonia para darem lugar à música, dissipam-se e não há quaisquer traços dela na superfície dos desenhos.
O tema de O Local é a amizade e as oportunidades vexadas da vida. A cola que une este grupo de jovens é a música (um potente rock de garagem como se adivinha pelos gestos, posições dos corpos, nas três pranchas “silenciosas” que encerram os três primeiros capítulos). Gipi, tal como no livro anterior, de que falámos aqui, continua a explorar o tempo que os jovens dedicam a se tornarem adultos pelas vias mais dolorosas. Torna-se natural que Apontamentos seja visto como mais “profundo” ou “sério” em relação a O Local pela matéria que constitui a circunstância dessas outras personagens – a guerra – mas em relação ao modo como as personagens se movem, se pensam a si mesmas e crescem (Gipi elabora pequenas versões do que seria um Bildungsroman da banda desenhada mergulhado no desencanto urbano e hodierno) não há quaisquer diferenças.
É curioso verificar como Gipi consegue fazer demonstrar as rotinas a que estas personagens se prendem apesar de apenas as mostrar, às rotinas, uma só vez. É na segunda canção que, pela fórmula estrutural de mostrar o espaço geral, quase anónimo, onde cada um dos membros da banda vive, e depois a sua relação com os seus familiares, erguer todo um edifício de repetições que se adivinham, as banais e esperadas tensões entre os filhos e os seus pais, tensões acerbadas pela igualmente esperada distância, desconhecimento e impaciência de uns em relação aos outros. A única personagem que escapa a esse circular é Giuliano, precisamente por ser aquele cuja rede de relações familiares e associada tensão e crise se vê dispersa por todo o livro, sendo ela a estrutura sobre a qual se ergue toda a trama: uma vez que há um tácito acordo entre Giuliano e o pai, que lhe empresta o “local” para os ensaios, que se vê quebrado, tudo o resto segue esse suporte, essa quebra e a redenção final (ainda que parcial).
A confirmação de outros aspectos anteriores verifica-se com O Local. Uma diegese construída de uma forma simples e contida, num ritmo calmo apesar da tensão que vamos sentido crescer, em que há um crescendo de informação mas sem grandes arroubos ou arranques, servida pelas suas linhas também elas simples, de uma grande estilização - tanto devedora de uma clássica “linha clara” como do estilo caligráfico tão em voga na Europa nos nossos dias - e um domínio competente e funcional da aguarela. Em relação a esta última, há a dizer que se em Apontamentos ela surgia apenas a pretos e cinzentos, que nada diminuía a sua força, aqui encontra-se já empregando cores, ainda que esbatidas, num espectro limitado que dá todo um ambiente crepuscular, e apetece dizer ainda “acimentado”, a todos os episódios, independentemente da suposta hora do dia ou sítio específico onde decorra a acção: seja na praia ou num passeio nocturno pela cidade, no interior do apartamento ou da “sala” de ensaios, está-se sempre preso à ideia do “local”.
Apenas duas palavras finais. Uma, de livre associação e quase impertinente para a interpretação da obra, é o facto da sua leitura ter sido reminiscente de uma outra, a da saga de Loverboy, de Marte e João Fazenda. Por um lado, por uma certa maneira de traço da figuração de Gipi, que está próxima do que Fazenda alcançara no terceiro volume de Loverboy, ainda que o artista português tenha alcançado um nível bem mais marcado de apuramento mínimo; por outro, um certo ambiente em torno das obsessões musicais típicas dos adolescentes, e o que ela parece representar – para além de arte, para além de expressão – em termos sociais. A banda de death metal a quem a banda de Giuliano rouba os instrumentos, os “Anjos Caídos”, e o humor que essa cena esconde ligeiramente (os protagonistas pensavam tratar-se do “grupo do padre”) é o que despoletou esta união de obras.
A outra palavra diz respeito ao gesto do editor. A Vitamina BD é uma editora relativamente recente mas mostra-se com capacidade de se consolidar e de lançar projectos a longo prazo. É com algum pesar que olhamos para a última década e vemos editoras a tentarem vingar no “mercado” (um caos) e ou a desaparecerem rapidamente ou a timidamente colocarem um título à consideração do público mas sem essa merecida atenção, e acumulamos nomes – Booktree, Witloof, Errata, Baleia Azul, Íman,... – que se esfumam no esquecimento. Mas maior pesar é verificar que as grandes editoras – na verdade, apenas uma neste momento, a Asa – ou as editoras médias – a Gradiva, por exemplo – prefiram uma política editorial confusa, com nenhuma continuidade, sem qualquer ideia de programa, ou com apostas mais a pender para o inócuo e parco em qualidade, para não dizer acéfalo, apagando muitas vezes os títulos de excelente qualidade que apresentam (por cada Gonick, dezenas de Cathys). A invasão, do momento, de uma colecção com o jornal Público que deveria dar pelo nome de – e perdoem-me a piadinha de mau gosto e seguidora das modas também – “tesourinhos deprimentes da bedê” é apenas um espécie de grito de desespero. Sejamos directos: a Vitamina BD tem um catálogo que não me preenche por completo ou que não coincide com os meus gostos (nem tem de o fazer, óbvio), mas parece haver uma contínua política de longo prazo com colecções para o grande público, concessões às circunstâncias e tendências do momento, a procura da satisfação de nichos menores, a entrega a autores clássicos e fortes (penso em Hermann), associações a outros projectos editoriais, inclusive internacionais, para maior fortalecimento nacional, o que contribui para a sua sustentabilidade, para a ocupação genuína, profissional e de bom gosto das prateleiras do país, e ainda, eis o que importa, abrir a possibilidade interna de editar de quando em vez objectos mais estranhos aos gostos “treinados” do público – daí que seja na subsidiária ou colecção 100 Sentidos. Seríamos mais felizes se houvesse maior inteligência na edição em Portugal: apontar a presença de Gipi no mundo deve ver-se como não apenas pedagogia mas abertura de novos gostos, de uma maior amplitude, e sensibilidade para com os variadíssimos caminhos da banda desenhada.
Comprei-o, ontem, na Feira do Livro. Cheguei, já tarde, preparei-me para ver um dvd mas comecei a folhea-lo...Fiquei tão absorvida com o livro que o li até à última página...
ResponderEliminarÉ muito bom!