28 de janeiro de 2008

Lucky. Gabrielle Bell (Drawn & Quarterly)

A banda desenhada não faz o mesmo que as artes visuais stricto sensu. Nestas, o forte da sua campanha é a emergência dos factos visuais em si mesmos, na banda desenhada a visualidade é empregue para um outro fim que implica a noção e a capacidade de leitura. Existem intervalos e medidas intermédias, como é natural. Artes visuais que se engajam em conteúdos programáticos legíveis (políticos, sociais, etc.) e banda desenhada que explora o choque visual sem qualquer condescendência para com uma dimensão narrativa (de alguns trabalhos da trupe de Fort Thunder a André Lemos, como exemplos). Mas no caminho do meio, aquele que é perseguido pela maioria dos autores desta arte em particular, poderemos dizer sem quaisquer temores de erro que se trata de uma escrita, no sentido em que os signos presentes e que constituem o texto servem para a sua interpretação, a sua leitura, a sua abertura a um sentido verbal. Uma história.
Gabrielle Bell não é, como soe dizer-se ainda que incorrendo no que me parece ser um abuso e erro, “minimalista”, mas é um facto de que as suas figuras apenas existem num limiar do estritamente necessário à execução da ideia de actantes – as personagens, os espaços, os objectos – da diegese que se desenrola à nossa frente. Quando se nota algum grau de maior complexidade ou de maior pormenor, usualmente isso deve-se a uma necessidade diegética, e não decorativa. Mesmo a utilização esparsa de planos diferentes serve esse propósito com exactidão. No entanto, os trabalhos mais recentes apenas a linhas e preto e branco parecem querer ganhar um outro tipo de consistência, abandonando esse estilo. O acompanhamento o dirá.
Lucky (publicação regular, e cuja capa do primeiro volume coligido se vê acima) revela uma escrita diarística, ainda que com diferenciações aqui e ali. Em todo o caso, as histórias que se publicam em Lucky contrastam com as demais (v. abaixo) por uma dose de “realidade” ou “autenticidade” para com a vida da autora, algumas vezes com indicações para os trabalhos noutros locais. A primeira parte deste livro (que corresponde ao primeiro número de Lucky) é composta por “entradas” que correspondem a um período de cerca de dois meses (com saltos). Há uma continuidade, não simplesmente cronológica, mas de acções que se tornam a chave do dia: a mudança do namorado, um novo emprego... A segunda parte (número/arco) inicia-se com a explicação de como a autora perdeu o "sketchbook" onde fizera grande parte do que deveria ser essa mesma parte, o que a leva a procurar uma outra forma de trabalhar, mais distante dos acontecimentos, mas ainda assim associando-se à veia do diário (ou da memória do seu quotidiano). Em todo o caso, é como se esse azar, como se essa perda, lhe permitisse explorar outros métodos de trabalho, que poderão ser vistos como libertadores, pelo menos no que diz respeito às estratégias de inscrição da própria autora nas suas histórias, enquanto personagem. Abre-se-lhe o caminho para o que parece ser auto-ficção, ou pura ficção. Não saberemos qual o grau de distância a não ser perguntando-lhe, e isso pouco importa para a fruição das suas histórias.
Os trabalhos de Bell nasceram em fanzines (ou mini-comix, como são chamados no seu burgo), e têm sido coligidos em volume (When I’m old and other stories), dizendo Lucky respeito à colecção num volume de três das publicações com o mesmo nome (entretanto, já saiu o segundo número do segundo volume; é do primeiro que se vê aqui a capa). Para além disso, Bell tem publicado histórias mais recentes, curtas e algumas a cores – que pouco contribuem, a meu ver, para garantir uma nova presença do trabalho de Bell e até se faz ressentir negativamente no trabalho da figuração, dos seus contornos legíveis -, nas francamente três melhores antologias (publicações semi-irregulares) dos Estados Unidos: Mome, Drawn & Quarterly Showcase e Kramer’s Ergot. É nesta última (a 5ª) que surge a história mais fantasiosa de Bell até à data, ainda que mais “calma” que My Affliction (volume 2, número 1), Cecil and Jordan in New York: o modo mais simples de se contar é que se trata de como o profundo ennui e alheamento de Cecil a leva a se transformar numa cadeira, que é depois “adoptada” por um desconhecido, passando a levar uma vida dupla. Se bem que se trate de uma “brincadeira”, com tudo o que ela tem de leve (mais Mrozeck que Kafka), de aplicação momentânea do que é sério e leva a pensar em exercício fátuo, ainda assim essa pequena história confirma um movimento de apagamento que Bell explora nas suas histórias. O mesmo ocorre com a história The hole, incluída no volume de Lucky.
Em todo o caso, há que notar nesse apagamento, que vejo como o seu maior tema, aquele que parece surgir em todas as prestações de Bell, o seu próprio basso continuo. A autora apaga-se enquanto personalidade discursiva sobre o mundo (excepto as falas com as outras personagens, as ocasionais legendas explicativas ou imediatamente relacionadas com o que testemunhamos também: a sensação que nos espera é a de uma voz em dúvida, não assertiva), para apenas lá estar como quem escreveu/desenhou. Este apagamento participa ainda de uma outra forma: na história The artist’s assistant, Bell ajuda uma outra artista a completar desenhos e quadros, mas esse emprego ganha uma dimensão assustadora de dissolver o seu próprio trabalho no da outra – por via ética da “assinatura” – e testemunhamos algumas desses medos-fantasias. Apesar do “final feliz” (literalmente e, por isso, cómico), paira sempre esse perigo. O equilíbrio é precário, como se depreende pela leitura de outras histórias curtas de temas contíguos: aulas de desenho que dá ou que recebe, o trabalho como modelo de que precisa mas não gosta, isto e o seu contrário... A “montanha russa” do espectáculo de que fala na primeira prancha está afinal presente em todas as suas experiências, mas nisso não tem qualquer diferença da flutuação de humores de todos nós.
A questão é saber criar, no seio dessa flutuação, uma estrutura que a devolva, e não que a disfarce – estratégia bem mais simples, acessível e corrente no acto criativo.

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