Por vezes, a aproximação de duas obras incomparáveis desperta linhas de leitura pertinentes. Essa aproximação pode ser – ou é sempre – circunstancial, como ler dois livros seguidos num mesmo espaço de tempo, o que desencadeia momentos de comparação, mesmo que falhos, ou de uma breve mistura de instrumentos, mesmo que erróneos.
A leitura é de um livro de Blexbolex, L’Oeil privé, e outro de Kikuchi Hironori, Mademoiselle Takada. O que surge dessa leitura conjunta?
A primeira percepção que se tem em relação a esta obra em particular de Blexbolex (já que noutros casos se dá algo de diferente, como o Disaster Boy na Dernier Cri) é que a sua inventabilidade gráfica não está totalmente ao serviço do modo da história, esgotando-se por vezes num mero efeito de superfície, o qual, não deixando de ser interessante de contemplar e estudar, desregula um certo equilíbrio à obra.
Estando associado à revista Ferraille, Blexbolex explora um dos mais reconhecidos universos de género da cultura popular, o policial, para construir uma história linear, não obstante o recurso a grandes elipses, segmentos de alucinação, sonho ou dúvida (momentos nos quais a mesma abordagem gráfica já ganha uma dimensão mais significativa, e não somente “de efeito”). Há uma intriga, uma trama, uma personagem principal – o detective – lançado no seu centro, as sucessivas crises, o desenlace, o sucesso. Cada episódio é iniciado por uma ilustração a página inteira, depreendendo tratar-se de uma espécie de página de rosto que recontava tudo o que se passara antes no episódio antes, estratégia típica de revistas regulares e de histórias em continuidade.
A construção de todos os objectos visuais, personagens inclusive, é feita de acordo com regras geométricas, como se Cézanne tivesse sido levado à letra tardiamente numa banda desenhada de uma leveza extrema. Essas geometrias confundem-se de quando em vez, quando a representação de elementos que não fariam parte do universo físico retratado ganham um corpo que tem um peso idêntico aos demais objectos: falo das onomatopeias, das linhas cinéticas, das gotas de surpresa, de estupefacção ou dor ou impacto, mas também do modo como as linhas de sombra ou de luz, as sombras e as manchas de cor acabam por fluir de acordo com princípios não naturalistas e quase de vontade própria, elaborando-se assim num complexo visual apelativo. Todavia, e apesar do humor necessariamente negro, da presença de palavrões, vestígios de violência extrema, sexo, e temas controversos - trata-se de um homem que clona a mãe para estar para sempre com ela, passando-se por seu pai, e depois esta “engravida” e dará à luz um clone desse mesmo homem..., podendo-se ou não fazer associações óbvias com a história de Cristo – a leitura global de L’Oeil privé apenas nos faz atravessar uma aventura leve, policial, de um desfecho “feliz” ainda que estranho, tornando ainda mais estranho pela barreira visual ter sido apenas barreira, e não caminho.
Já no livro de Kukuchi... (continua aqui).
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