(Continuação daqui)
Já no livro de Kikuchi, Mademoiselle Takada, as mesmas questões invertem-se. A aparência dos seus desenhos remete-nos de imediato para uma mangá ou um animé do mais comercial e infantil que existe (Doraemon, Zzanggu, Pokemon, etc.), mas por vários indícios, quer visuais (figuração) quer narrativos (as histórias), apercebemo-nos de que é de facto apenas uma aparência. A senhorita Takada evita que fantasmas de crianças sejam exploradas por uma exorcista, tenta reutilizar para bem do mundo a sua colecção de bonecas de plástico, tenta levar a cultura japonesa, sobretudo a aprendizagem do kanji, a todo o mundo... Rapidamente, portanto, nos apercebemos que, não obstante a organização das histórias ser tão linear quanto L’Oeil privé no que diz respeito à ordenação dos eventos, à gestão do tempo, do desenvolvimento das personagens e seu relacionamento com os nós narrativos, que tudo se abre para um pequeno universo de absurdos. No entanto, há que ter em conta que o absurdo traz à mistura dois elementos fulcrais, a saber, a angústia e o cómico, e que é o equilíbrio entre esses dois factores que caracteriza as obras particulares de autores particulares.
Se em José Carlos Fernandes, por exemplo, apesar do seu humor, é o elemento da angústia aquele que mais paira após a leitura d’A pior banda do mundo, em Kikuchi é a dimensão do cómico que leva a vantagem. Para mais, sublinhada que é pelos seus desenhos que mesclam um falso ar de “cute” com pequenos desvios a essas mesmas regras (ou grandes: veja-se, por exemplo, a representação monstruosa e terrífica de Madame Yamada a amamentar o seu filho).
É portanto, uma outra forma de construir a leveza, e suscitar o riso através de um confronto com a estranheza total. De acordo com a sua “ficha” da Comiclopedia, da Lambiek, a obra de Kikuchi foi apelidada por um dos seus editores na Garo como “uma droga que se lê”, sublinhando-se a sua “natureza alucinatória”. É uma boa imagem, sobretudo se tivermos em conta as relações que estas alucinações lançam com a realidade que nos rodeia, também ela cada vez mais contaminada por elementos que acharíamos “estranhos” em circunstâncias mais conservadoras, e o modo como após a sua leitura, nos apercebemos ainda mais conscientemente dessa “estranheza” mas igualmente do modo “natural” com que a aceitamos. Espécies de flashbacks?
Nota: agradecimentos a André Lemos, pela oferta do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário