Reading Bande Dessinée. Critical Approaches to French-language Comic Strip é um livro, diríamos, académico. No entanto, não é regido por uma tese, explorada na necessária argumentação. É antes uma colecção de estratégias de leitura, tendo como objecto – julgado unificado – da banda desenhada de expressão francesa. A autora distingue logo este “objecto” pelo emprego, num texto em inglês, da designação bande dessinée. (Mais)
Este livro está dividido em quatro capítulos, ou melhor, partes, e expô-las aqui ajudar-nos-á a compreender o escopo e êxito desta obra da investigadora inglesa. A primeira parte é uma breve mas muito bem equilibrada história da bande dessinée, desde o século XIX aos anos 60 (“A bande dessinée torna-se num meio infantil e depois começa a crescer”), passando pelos núcleos dos anos 70 (“Expansão e Experimentação”) e anos 80 (“Recuperação do Mainstream”), terminando num discussão sobre este modo de expressão desde os anos 90 até à actualidade (“O regresso do sector independente”). Juntamente com o recente livro de Bart Beatty, Unpopular Culture. Transforming the European Comic Book in the 1990s, temos aqui talvez os dois melhores contributos a entender os grandes desenvolvimentos desta verdadeira indústria (maior ou menos, dependendo dos países, e Miller fala da maior delas na Europa) nos últimos decénios. E, mais importante, há uma preocupação em não ser exaustiva, criando antes linhas de continuidade (ou de corte, onde isso é pertinente) e de desenvolvimento da linguagem, abordando essa cronologia de um modo crítico, perspectivado e significativo para o objecto de estudo. Em suma, um capítulo de verdadeira História, e não Arquivismo.
De seguida, nas três partes seguintes, Ann Miller experimenta vários modelos de análise crítica da banda desenhada (“abordagens” como está no sub-título) como uma espécie de mostra, aplicação e demonstração dessas mesmas estratégias. À partida, poderá parecer estarmos perante um compêndio quase escolar, uma sebenta. De certa forma, é isso mesmo, mas isso mesmo nada tem de negativo. Bem pelo contrário, é um livro que se inscreve numa longa tradição de intelectuais que providenciam volumes de divulgação de actos e de pensamentos de valor académico, simplificando o discurso e tornando-o perfeitamente inteligível, explorável e utilizável por um grande número de pessoas. Porém, e acrescentando ao valor positivo desta obra, estão as breves leituras de Miller sobre as obras que escolheu, leituras de uma extrema relevância, inteligência e reinscrição. Quase todos os modelos de Ann Miller haviam sido explorados por outros autores anteriormente, sem dúvida. Devemos, contudo, ter sempre em conta que esta é uma abordagem em inglês de um território francófono para os anglófonos, não só no que diz respeito ao círculo criativo (as obras de banda desenhada) como ao da interpretação intelectual (as de leitura sobre banda desenhada). Este livro encontra-se na esteira de autores como Bruno Lecigne, Thierry Groensteen, Pascal Lefèvre ou Jan Baetens, mas, no entanto, todas estas novas abordagens são desde já essenciais, inserem-se de imediato nesse corpus anterior, alcançando as três acções sempre necessárias à prossecução e crescimento de uma área do pensamento: reforçando-o, esclarecendo-o e complementando-o.
Como foi dito acima, e o fizemos em relação à primeira parte, penso que uma breve descrição destas partes e capítulos internos nos ajudarão a perceber a importância deste trabalho. A organização é pertinente, desde as dimensões mais, digamos, mensuráveis e objectivas, àquelas que constituem territórios mais fluidos.
A parte 2 apresenta três abordagens “analíticas”, a saber, referindo-se aos “códigos e recursos formais” da banda desenhada – passando pelas lições semiológicas de Saussure (menos em relação a Peirce), de Groensteen e Peeters, lendo-se L’Autoroute du Soleil de Baru -, aplicando teoria narrativa (ou melhor dizendo, as abordagens narratológicas) – partindo-se dos nomes fundamentais de Genette e Gaudreault para ler Le Cahier Bleu de André Juillard (livro o qual foi abordado precisamente pela teoria narratológica numa tese recentemente publicada, de Éric Lavanchy) – e considerando o objecto de estudo enquanto “forma de arte pós-moderna” – bebendo-se de várias fontes, mas tendo a obra de Marc-Antoine Mathieu como corpus central, por razões que são óbvias, já que a experimentação deste autor não é o somente na sua superfície, mas na própria teleologia dos elementos nas suas ficções, e que se reflectem na ontologia da própria arte.
A parte 3 apresenta três abordagens que nascem dos “Cultural Studies”, sobretudo naquilo que se pode mesmo chamar de “Identity Studies”, que revela tanto da psicologia como da sociologia como de novas disciplinas pós-políticas (feminismo, pós-colonialismo, etc.). Assim sendo, Miller centra-se sucessivamente na identidade nacional (francesa, claro) – estudando Astérix (como não?), o Superdupont de Gotlib, Lob et al., e a obra de Tardi-, nas identidades pós-coloniais – com a trilogia (agora com um quarto volume...) de Manu Larcenet Le Combat Ordinaire, Petit Polio de Farid Boudjellal e Ce pays qui est le vôtre de Kamel Khélif - e na questão das relações entre a masculinidade e a classe social – abordando as séries Les Bidochon de Binet e Lucien de Frank Margerin, a trilogia Léon la Came, de De Crécy e Chomet e Monsieur Jean de Dupuy e Berberian.
A última parte intitula-se “Bande Dessinée e subjectividade”, mergulhando totalmente nos aspectos de flutuação das personalidades envolvidas – as dos autores, dos leitores e das personagens, reencaminhando tangencialmente à questão das três intenções de Umberto Eco (intentio auctoris, intentio operis e intentio lectoris), se bem que utilizado instrumentos diversos e que, no fundo, são de facto empregues para a sua abordagem, e não como o autor italiano que as constitui como caveats dos perigos da sobreinterpretação. Os capítulos são “Abordagens psicoanalíticas a Tintin” – falando-se das obras de Peeters, Michael David, Tom McCarthy e Tisseron (alertando, porém, de um modo bem demarcado do que em relação ao trabalho dos restantes psico-escavadores, sobre o excesso de especulação, tida como verdade, deste autor: “convoluted and tenuous”, escreve Miller, pg. 210; recordemo-nos que é praticamente este autor que monta uma das espinhas dorsais da obra e Ana Bravo, lançando as suas bases em terreno periclitante -, “Autobiografia e Escrita Diarística na bande dessinée” – falando-se de Approximativement de Trondheim e Journal d’un album de Dupuy e Berberian – e “Género e Autobiografia” – explorando-se as visitações à questão das disparidades entre o género/sexo e as suas representações, falando-se não só de mulheres, Julie Doucet (Ciboire de Criss!) e Marjane Satrapi (Persepolis), mas também um homem, Jean-Christophe Menu (com Livret de phamille, sendo a interpretação de Miller superna neste ponto).
Conforme se poderá entender, todas as obras eleitas em relação a cada um dos temas poderia ser acompanhada por outras, mas a selecção, mais uma vez, revela antes da pertinência e do intelectual e culturalmente fecundo do que da exaustão informativa (ilusão dos arquivistas). Estou seguro que os leitores familiarizados com as obras referenciadas perceberão o quão produtiva é a sua aproximação, até mesmo titularmente, e estudo comparativo. Reading Bande Dessinée torna-se assim igualmente um instrumento de apoio ao ensino académico (teórico, crítico, intelectual) desta área, quer como leitura por si mesma quer como plataforma de oferta de questões a re-abrir ou re-aplicar sobre outros exemplos, ou até mesmo como ponto de partida para crítica destes modelos e sua reestruturação e melhoramento. Tarefa que não é fácil, mas é desde logo obrigatória.
Voltemos atrás. Escreveu-se: “quase todos os modelos de Ann Miller haviam sido explorados por outros autores anteriormente”, podendo mesmo quase fazer-se uma listagem de ligações que demonstrem essa continuidade. O valor não é diminuído, bem pelo contrário, é elevado graças à capacidade de clareza e de numa só frase, numa pequena nota da sua leitura, Ann Miller nos re-apresentar uma das obras que julgávamos familiares. O modo como a análise, de Miller, sobre Le Cahier Bleu de Juillard demonstra a obrigatoriedade de uma segunda leitura do livro pela sua primeira leitura, ou a reconsideração das relações políticas entre Astérix, Superdupont a obra de Tardi (sobretudo aquela que revisita a 1ª Grande Guerra, mas além disso também), são casos, penso, maiores. E é esse o valor de uma análise e de uma crítica intelectual, é a possibilidade de nos fazer descobrir (como quem diz “pela primeira vez”, não redescobrir) numa obra familiar interpretações ainda por fazer.
Nota: agradecimentos a Domingos Isabelinho, não só pela oferta do livro, como pela primeira abordagem do mesmo e os diálogos sempre profícuos e cujo vitorioso acabo por ser eu, por aprender (roubar) mais. Veja-se aqui.
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