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O artigo a que me referi num post anterior foi publicado na Vértice no. 135, de Julho-Agosto 2007. Coloco aqui um texto ligeiramente alterado. Coisas destas acontecem. Entreguei este artigo dois meses atrás à redacção da revista Vértice, mas indicando tratar-se de numa versão de trabalho. Por minha culpa, fiz a revisão de algumas gralhas, incompletudes, períodos menos claros, mas não os acrescentos que se vinham a desenvolver em diálogo com outras pessoas. Foi publicada uma versão legível, e que ainda subscrevo, mas a que aqui apresento possui um ou outro detalhe, uma maior correcção e um grau maior de clareza em relação ao que pretendia dizer. Mas não está esgotada a discussão e há ainda muito a dizer e a explicitar, a debater. Havia sido mais discreto ou comedido no artigo publicado na Vértice. É uma polémica-em-construção, e estou seguro, digo-o outra vez, de que não esgotámos ainda os pontos a discutir. Esperemos que suscite respostas, da parte dos interessados, da própria autora, e iremos tornando a questão cada vez mais clara.
Não seguiu também o título do artigo, pelo que saiu com o título do livro discutido. As minhas desculpas por este lapso, totalmente da minha responsabilidade. E espero que a publicação deste artigo aqui não impeça os interessados de obter uma cópia da revista Vértice.
Artigo:
O livro que se traz aqui à discussão é da autoria de Ana Bravo, investigadora com um currículo académico e profissional consolidado, mas que lhe acrescenta aqui uma incursão pelo domínio da banda desenhada através de uma Tese de Mestrado que conflui os discursos de desconstrução que emergiram graças ao feminismo, aos Gender e Women Studies, sobre a obra mais famosa de Hergé. A invisibilidade do género feminino em Tintin. A conspiração do silêncio quer colocar sob essa lupa de análise política o famoso “clássico” da banda desenhada. Enquanto o gesto em si é não só louvável como desejado na contínua construção de um discurso crítico no interior da banda desenhada, esta obra apresenta toda uma série de problemas que desejo aqui debater.
A primeira parte, sobretudo aquela que versa de uma forma mais global a história da banda desenhada e as suas várias “linhas de fuga”, já especializando sobre a representação do género feminino na banda desenhada em termos gerais, sofre de algumas generalidades redutoras, erros factuais, quando não abusos crassos, afirmações insustentadas, tipologias inexplicadas (quando não inexplicáveis), e até mesmo indícios de plágio (entre as páginas 40 e 41 tecem-se considerações sobre a figuração dos “bons” e dos “maus” e suas associações étnicas, que segue quase ipsis verbis as mesmas considerações de Domingos Isabelinho no Nemo no. 21, de 1996; o exemplo é o mesmo: Ming), trocas de nomes e filiações, curvas demasiado apertadas do que se está a discutir, dificultando uma leitura suave. Pequenos tropeções que colocam em cheque a acuidade desejada por uma aproximação académica deste complexo e imenso (como outros quaisquer) objecto cultural. Isto é, problemas tipificados de autores, mesmo intelectuais de peso nas suas áreas correspondentes, que mostram uma aproximação superficial ao “corpus de saber” existente sobre a banda desenhada. Um só ponto que mostra esta problemática de modo claro em relação à obra de Bravo: poucos são os momentos onde se mostra uma leitura de autores que tenham desenvolvido algum trabalho alargado e sustentado sobre esta temática precisa, a representação e figuração da mulher na banda desenhada; Trina Robbins, por exemplo, não se encontra na bibliografia ou nas notas de rodapé. Certo, não é esta uma informação suficiente para denegrir a investigação, já que a bibliografia é forte no que diz respeito aos Feminist Studies propriamente ditos. Apontam-se os problemas citados apenas como pista de desconfiança da minha parte pessoal em relação à relação da autora com a banda desenhada, jamais em relação ao valor académico do trabalho em geral. Isto é, não existe uma verdadeira relação sustentada e muito menos académica com a banda desenhada logo à partida, o que faz ressentir o próprio trabalho, a sua natureza académica, de uma série de fragilidades que não se deveriam verificar para a sustentabilidade da tese central.
Hélas!, parece que assim continuamos no território de ser um objecto “não-identificado”, passível deste vol d’oiseau, verificado em quase todas as frentes (vide o programa da RTP2 Câmara Clara dedicado a esta arte, que não passou de um certo nível nostálgico-familiar, não obstante a qualidade dos seus intervenientes) que não aquelas que se dediquem a tempo inteiro...
Seja como for, o objectivo deste livro/tese não é o de reapresentar a banda desenhada como um todo (como se tal fosse possível), nem sequer repensar uma atitude global e equilibrada sobre quer as suas potencialidades (virtuais, eventuais, futuras) quer sobre o seu imenso corpus diversificado (actual, verificado, histórico), mas sim discutir o que o título promete. Nesse objectivo, a obra de Ana Bravo é directa no que diz respeito ao que quereria combater: “o sexismo cultural impera no acesso das mulheres à criação, impondo leis economicamente e simbolicamente desvalorizadoras para as mulheres, porque o território é ainda masculino, por natureza, por herança cultural e histórica” (pag. 57). A existência dessa opressão é real, existente na banda desenhada (também), existente na obra de Hergé na forma de uma “assimetria simbólica” (173), e é isso o que importa desmontar, desconstruir, derrubar. A conclusão deste trabalho é claríssima, contundente, produtiva para futuras análises, quer da obra do próprio Hergé quer para outras produções artísticas deste campo.
A sociedade em que vivemos (portuguesa, europeia, ocidental, liberal-capitalista, etc.) apresenta uma imagem de si mesma como uma homogeneidade no que diz respeito à distribuição dos papéis sociais e de poder de acordo com uma linha divisória pelo sexo. Os meninos de azul e as meninas de rosa. Esse é tão-somente o primeiro passo para criar a ideia de que existem distribuições (seja do que for) “apropriadas a cada um”. Os direitos estão consignados nas leis, nas constituições, nas cartilhas e nos manuais, mas o desequilíbrio é tangível e verificável em praticamente todas as esferas. Para além dessa falta de balanço real, a própria dicotomização dos sexos leva a que se entenda ser apenas esse o eixo de relação possível, apagando da equação a possibilidade de terceiros sexos, de expressividades sexuais diferentes da “norma”, da ultrapassagem da família como suposta unidade estruturante da sociedade livre (o contrário, dizem os tradicionalistas, é o caos), etc. É a existência destes discursos, mesmo que aparentemente invisíveis, que deve ser combatida por uma determinada resistência cultural, intelectual e política. A aplicação dos seus instrumentos na banda desenhada é bem-vinda e necessária. O aspecto que indiquei ao princípio, em relação à introdução geral do estudo de Ana Bravo, é que me parece menos produtivo e imparcial: a banda desenhada não é, por si só, ou em si mesma, ou como um todo, sustentadora desse discurso. Se o é aparentemente ou se a esmagadora maioria da sua produção mais visível o é, essa situação é tal e qual como qualquer outra expressão cultural contemporânea, desde o cinema à literatura. No entanto, penso que não se faria um juízo de valor global sobre todo o cinema a partir de produções de comédias românticas de Hollywood nem toda a literatura a partir de um nicho de produção presente nos escaparates contemporâneos; bem pelo contrário, afunilar-se-ia o escopo do trabalho, explicitando tratar-se de uma amostra (mais ou menos representativa), mas jamais julgando a arte inteira... Analisar o Tintin desta perspectiva é producente (e aplicável em muitos, muitos outros títulos), mas cunhar TODA a banda desenhada deste modo (ou doutro modo qualquer generalizador) é um abuso, que não toma em atenção – por desconhecer? – precisamente aquelas produções que apresentam ou pelo menos apontam para uma discursividade dos géneros outra. Apelar para autoridades, como Umberto Eco, não abona a favor de uma leitura informada do campo expressivo existente da banda desenhada, quer histórica quer contemporaneamente. A banda desenhada não é necessariamente um campo que se situa sempre “entre o mito e o romance” (citação de Eco na pág. 174), nem espaço privilegiado de “estereótipos sociais”, como se fosse intrínseco à sua existência enquanto linguagem específica o compactar-se com esse estatuto. Isso depende da obra, do autor, da circunstância exacta e concreta. Exemplos de excepções? Herriman com Krazy Kat ou o papel da Luluzinha na obra de M. H. Buell e John Stanley nos “clássicos”, Y: The Last Man de Brian Vaughan e Pia Guerra contemporaneamente, e no círculo do mainstream. E se atentarmos a todo um rol de autoras politicamente engajadas, de Roberta Gregory a Isabel Carvalho, ou outras que não se associando com discursos mais directos, exercem o seu poder criativo para uma visão mais equilibrada do outro (Chantal Montellier, Marjane Satrapi, Jill Thompson), teremos uma visão mais ampla ainda. Por isso, e apesar de encontrar na Conclusão deste livro um texto esclarecedor (em relação aos propósitos, mesmo que incumpridos) e elementar (num sentido de “ponto de partida”, mas também em termos de ausência da complexidade do cruzamento das informações e várias linhas de investigação), discordo em absoluto de frases como “a relação entre a temática da BD e a inevitabilidade de um quadro referencial feminino que privilegia a imagem estereotipada das mulheres” (175). Esta estratégia é também uma de deixar na invisibilidade ou “debaixo do radar crítico” (para utilizar mais uma vez a famosa frase de Spiegelman) toda uma criação da banda desenhada que importa discutir e tornar presente na sua abordagem cada vez mais pública.
O estilo de escrita levanta alguns dissabores de leitura. Em termos sintácticos, o abuso de vírgulas que quebram a ligação entre o sujeito e o predicado é uma característica demasiado notável, o que não ajuda à fluidez da leitura. Em termos de lógica e organização do discurso, apresentam-se indicações um pouco vagas, pouco elaboradas, para logo passar à seguinte, cita-se um autor e logo depois outro, sem qualquer nexo de causalidade entre os dois empréstimos exteriores, havendo mesmo pedaços de texto que mais parecem ser uma colecção de factos e sound-bites para tornar a prestação mais enriquecida. Exemplo: “A ligação de Hergé às personagens é tão forte que era ele mesmo quem desenhava sempre as figuras, deixando os cenários e os adereços para os seus colaboradores. Para marcar o estilo, Hergé introduziu os balões em Les Aventures de Tintin, pondo as personagens a falar” (104). Se esta última parte deve ser lida num contexto maior, em que se conta (breve, esquemática e incompletamente) a história do “balão de fala” e a sua transmutação por Hergé, a primeira leva-nos a lê-la várias vezes para entender a pertinência. Hergé desenharia as personagens apenas porque tinha uma ligação “tão forte” com elas? Não se poderia pensar que as desenharia... por ser o seu autor? E soa sempre uma surpresa inédita um autor ter ligações fortes com as suas personagens? E se, em algumas partes, há um fio condutor que nos ajuda a perceber o contexto, ultrapassando a necessidade de ler as mesmas fontes para poder entender o raciocínio, outras há em que se apresenta um dado completamente descontextualizado ou “fora do sítio”, obrigando a retornar atrás para completar a imagem que se pretendia criar.
Mas, voltemos ao que importa, uma tese apresenta ideias. E são elas que devem ser sustentadas. Estas apenas surgem directamente na parte III, a partir da página 117, isto é, o busílis da questão: a representação das mulheres no universo ficcional de Tintin.
Algumas das ideias apresentadas são-no da forma de silogismos, derivados de premissas que não buscam nem sustentar-se nem desconstruir-se por sua vez. Duas, pelo menos, são constantes. A primeira prende-se com o insistente apelo, repetido até à exaustão sem qualquer análise da parte dos seus utilizadores, ao facto de Hergé ter sido cultor da chamada “linha clara”, sendo o rosto de Tintin a sua máxima expressão, “simplicidade” a qual permite “abrindo-se a todas as interpretações” um “suporte ideal para a identificação do leitor” (102)... Em primeiro lugar, poderíamos ver. Mesmo colocando de lado as pequenas mudanças a que a figuração da personagem Tintin foi sujeita ao longo da sua vida livresca, com sucessivas refigurações e reapresentações, é verdade que o rosto de Tintin continua a ser apresentado de um modo esquemático, senão mesmo infográfico (o que leva à possibilidade de entendê-lo como “assexuado”, mas precisar-se-ia aqui de um maior grau de análise). Mas bastar-nos-á folhear as páginas de um dos álbuns com atenção às flutuações faciais do capitão Haddock, do professor Tournesol, do vilão Rastapopoulos, entre outros, para depreendermos que essa estratégia visual não é uma constante em todas as personagens. A “linha clara” não é permeável em toda a produção de Hergé (e colaboradores e estúdio). Em segundo lugar, mesmo que exista essa simplicidade, a aceitação sem mais da teoria da projecção do leitor é problemática. Sabemos que Scott McCloud também a subscreve. Mas de onde vem essa teoria? E não é preciso deixar explícito que é uma teoria? Isto é, não faz parte de dados objectivamente (seja isso o que for) observáveis, mensuráveis. Somos obrigados a acreditar nessa teoria só porque se a repete até à exaustão? Não subscrevo essa ideia, mas este não é o espaço nem tempo de a desmontar. É apenas uma questão que não é colocada de modo mais claro e sustentado por Ana Bravo.
A outra ideia apresentada sem questionamento, e que serve de sustento à argumentação subsequente, é ainda mais melindrosa. Trata-se de uma crença demasiado central no biografismo, ou melhor, numa criptologia psicanalítica. Uma análise de uma obra de arte não tem necessariamente de ser estética num sentido restrito, isto é, enquanto juízo e com uma dimensão valorativa. Mas esse posicionamento, em termos gerais, implica que haja uma distinção muito séria e estruturante das três intenções (nem tudo o que é Eco é luz, mas algumas das suas lições ainda nos ajudam): a do autor, a da obra, a do leitor. A do leitor diz respeito à Teoria da Recepção e à sociologia. A da obra é a única que leva a uma constante busca e discussão entre as várias interpretações, e a uma leitura estética, é a única possível de interrogar. A do autor é passível de dialogar com o jornalismo, o biografismo propriamente dito, uma história, etc. É Serge Tisseron, freudiano da velha guarda, o fundador de todo um rol de associações que atravessam a fronteira da vida real, histórica e biografável de Georges Remi e a dos périplos aventureiros da sua personagem Tintin. Tintin chez le psychanalyste (1985), Psychanalyse de la bande dessinée (1987), Hergé (1987), Tintin et les secrets de la famille : secrets de famille, troubles mentaux et création (1990), La Bande dessinée au pied du mot (1990), Tintin et le Secret d’Hergé (1993) são os títulos que marcam a etapa do seu edifício. Este “detective do divã”, “em roda livre” (para utilizar duas expressões de Harry Morgan sobre Tisseron), explora os possíveis traumas de Hergé e as formas psicologizantes da banda desenhada ela-mesma, e depois factos palpáveis da sua vida – como a descoberta da bastardia do pai -, para depois os redescobrir, sob a forma de sintomas (termo técnico da psicologia, entenda-se), na obra de Hergé. Os Dupont/d são os gémeos pai-tio de Hergé, a necessidade de aventura e viagens é uma “fuga ao poder maternal”, as cavernas gélidas da lua são um útero aonde se retorna, a Castafiore é uma imagem-espelho... Percebemos onde nos poderá levar uma livre interpretação e interpenetração dos dados biográficos e da obra de um autor. Não é que a psicanálise se apresente como um “mau” caminho, muito menos como “proibido”. Simplesmente é “um” caminho, e como tal deverá ser também ele passível de alguma crítica, prudência, contestação. A aceitação quase cega das suas conclusões, sobretudo as de Tisseron, são insustentadas teoricamente... Apresentar paralelos entre a Margarida do Fausto de Gounod (de 1859) e a avó paterna de Hergé (124) é “bene trovato”, mas quebradiço academismo.
A utilização dos escritos de Pol Vandromme também são tomados ao pé da letra, sem qualquer desconto para com as afirmações bombásticas e criticáveis desse escritor. Se Vandromme fez uma afirmação sobre Hergé ou a sua obra, deverá ser entendido como um seu argumento, ideia, suposição, e não como uma basilar verdade que deve ser tomada como ponto de chegada. Mais uma vez, as fontes são apresentadas acriticamente, o que não abona em favor do desenvolvimento de uma ideia equilibrada e justa para com Hergé e a sua obra, de um ponto de vista académico, cuja neutralidade cabal é impossível mas nada impedindo de se a tentar alcançar.
Há outras vias abertas e não perseguidas. No tratamento da comunidade cigana em Tintin, por exemplo, perde-se mais tempo em questões genéricas, originárias e da sociabilização contemporânea da etnia em si do que o seu efectivo papel em As Jóias de Castafiore. Quando se analisa o papel das mulheres negras (147 e ss.), a autora comete o deslize de empregar a palavra “negrito” para se referir à criança da etnia local representada. Duvido que se empregasse “branquito” no caso de uma criança branca...
Compreendam. O que me leva a estas considerações não é a desconstrução central deste livro, comendatória, laudável, e desejável noutros discursos da banda desenhada. Para além das produções onde a misoginia ou sub-representação da mulher é real e clara – da banda desenhada tradicional de super-heróis à do género high-fantasy – é necessário aplicá-la noutros discursos, desde as supostas obras feministas da Losfeld (Pravda, Barbarella, etc., criadas por homens) à banda desenhada independente/underground mundial (pasto para tantos outros preconceitos), passando mesmo por autores onde se desconfiaria o contrário. Um exemplo: Baudoin, de quem falo repetidamente, não obstante a sua atenção para com um quotidiano e uma poeticidade do real, não escapa da gravidade de um certo baba cool de 68, onde qualquer mulher representa o “Eterno Feminino” e amar uma significa amar todas... é uma outra maneira de negar a construção da personalidade.
O título desta obra é uma pequena provocação que nos obriga a reler a obra de Hergé em busca desta imagem. Não se poderá falar propriamente de uma invisibilidade a pleno direito, uma vez que a presença das mulheres é real, mas que atravessa vários planos da sub-representação, que terão a ver com índices de participação, dos papéis assumidos, dos valores negativos que ocupa, etc. A tese de Ana Bravo cria um campo de referências e de leitura analítica (até determinado ponto) que constrói um espaço primeiro de respostas. Mas é no campo da interpretação que surgem desvios que trago aqui à consideração. Até mesmo a questão de reduzir a única presença feminina constante ao papel de Milou me parece uma interpretação constrangida, para provar a todo o preço a força da tese. Recorrer às informações exteriores à obra (biografismo, considerações gerais sobre antroponímicos franceses), ou a traduções estrangeiras que tenham optado indiscutivelmente pelo género feminino poderiam ser contrabalançadas por outras escolhas contrárias, do género masculino, verificado nas traduções das línguas germânicas, por exemplo... Mais, para além do genericamente neutro nome de Milou (por mais ginástica que se queira fazer, a análise dever-se-ia centrar na personagem em si), Milou não é necessariamente uma cadela nem cão, mas sim de género indefinido (tal como, de certa forma, Tintin o é, como se apontou atrás). Se por um lado o companheirismo ficaria mais coeso entre a esfera dos machos, também esta natureza indistinta ficaria bem (paralelo interessante ao sexo de Krazy Kat?). Ou será que o eventual paralelismo entre Milou e o terceiro sexo seria uma “emenda pior que o soneto”?
Depois surge a questão de Castafiore, absolutamente central para a deste edifício analítico. Que a representação de Castafiore seja caricatural, não há dúvidas. Que essa representação, tomada como paradigma de representação do género feminino na obra de Hergé, aponte para um certo grau de misoginia, também não suscitará questões de maior. Mas observar essa representação sem uma contextualização num quadro maior de representações já não é inocente. Afinal, o narcisismo a que Castafiore se reporta não é, de longe diferente, daquele que assola Haddock e o seu alcoolismo mal resolvido, o professor Tournesol e as suas “engenhocas”, os detectives Dupont/d e a sua obsessão do momento e a incompetência de sempre... E os tratamentos caricaturais de figuração também não diferem. Ou será que a representação caricatural da mulher é mais ofensiva e visível que a do homem? Não poderei responder cabalmente a esta questão, mas tendo em conta a equação da opressão falocêntrica e os discursos normativos, é natural que o tratamento de ridicularização das personagens-opressores passe mais despercebida (é simplesmente “humor”) que as das oprimidas (é “estereótipo” e “sub-representação”). O que julgo importante é a necessidade de um estudo cabal da figuração e representação em Hergé, e então, sim, estudar a différance (derridiana, claro, citado no livro). “Ainda que não se tivesse analisado o universo de representações masculinas, por exclusão de partes, concluímos por índices quase simbólicos de participação das mulheres em Les Aventures de Tintin” (164). Não encontro aqui um fundamento poderoso. Formas de vestuário, tipologias de intervenção discursiva, presença no plano da imagem, figurações, papéis tradicionais... são todos estes aspectos os parâmetros estudados para o desvelamento desse discurso normativo (logo, misógino) da obra de Hergé. Criar-se-ia assim um potente instrumento estatístico, não fossem alguns problemas de exactidão; e sem exactidão a estatística derroca sobre si mesma. Mas para além disso, um instrumento deverá valer pelo e no seu uso, e não na sua mera existência. E a análise estatística, dissociada de uma efectiva análise das relações actanciais e diegéticas, uma “close reading” das unidades narrativas em que se inscrevem esses papéis, ou por outras palavras, flutuando essas informações sem o seu contrapeso, não se ancora numa visão sustentada. Aliás, este é um dos problemas de base: não respeitar a divisão clássica entre o narrador (a função e agência que focaliza as informações e o discurso político no interior da obra) e o autor (a pessoa histórica, real, cuja vida poderá informar o sistema de produção mas se separa da intentio operis). É óbvio que nada proíbe que se façam leituras sobre os dois territórios e se os aproximem, mas seria necessário justificar qual a pertinência dessa aproximação. Enfim, em vez de uma estrita e clara separação entre as esferas narratológica, estética e sociológica, faz-se aqui uma mescla complicada de entender, injustificada.
As indicações por Ana Bravo dos valores cromáticos em Castafiore sem contraponto das mesmas nas restantes personagens não cria uma imagem completa, como se desejaria. A aplicação dos conceitos/exercícios de interpretação freudianos sobre os objectos, como Tom McCarthy faz em Tintin and The Secret of Literature (esmeralda de Castafiore = clítoris de Castafiore), são saltos interpretativos curiosos e até divertidos, mas saltos. McCarthy apresenta um exercício curioso, de associações livres até certo ponto “alucinadas”, mas que nos remete a uma (re)interpretação tão forte que nos obriga a uma releitura da obra. Além disso, não se pretende inscrever de modo algum num discurso académico absoluto, o qual responde a regras apriorísticas e não tem de demonstrar a sua sustentabilidade a cada passo. Ficamos sem ver o chão que fundamenta os passos. Mas se esses saltos funcionam em McCarthy, tornam-se chaves de descodificação poderosas, os de Ana Bravo recolocam-nos na casa de partida, exigindo mais respostas a questões colocadas de forma mais exacta. A leitura de As Jóias de Castafiore através da repetida fórmula do livro “onde não se passa nada” provoca a expurgação imediata de um dos aspectos positivos desta estória em particular, que está relacionado com a questão da intolerância/tolerância para com os ciganos aparcados nos jardins de Moulinsart. Essa questão (simples?) não redime todo o Hergé dos seus preconceitos rácicos, primeiro colonialistas, mais tarde anti-semitas, sexuais, e políticos, mas aponta a um elemento que deveria estar presente no sopesar da obra.
Castafiore é uma caricatura. Assim sendo, é imputável a um estereótipo conciso, e não geral. Não vejo nessa personagem necessariamente uma caricatura do género feminino como não vejo os irmãos Dupont/d uma caricatura da autoridade em geral ou o Capitão Haddock como de toda a marinha mercante... São estereótipos, combatíveis, sem dúvida, mas não holísticos em relação à humanidade. Mais, quase sempre Castafiore é indicada como uma diva, uma representação de um certo modo da ópera do seu tempo. Callas é o nome mais citado, aqui e noutros livros. Desconhecimento da área? Só porque é soprano? Mas há sopranos “magras” (mesmo que Callas o tenha sido por maus caminhos)! Distracção das fontes, do contexto histórico? Facilitismo de argumentação? Histórica e fisicamente, Castafiore está mais próxima de Elisabet Schumann ou de Birgit Nilsson ou de outra qualquer “cantora gorda” (...until the fat lady sings...), i.e., o estereótipo da cantora de ópera! Vocalmente estará próxima de Natália de Andrade? Isto se acreditarmos que é Castafiore que “canta mal”, mas...no Scala?! Não serão antes as personagens de Hergé que não têm nem cultura nem sensibilidade para apreciar Gounod e muito menos Wagner? E já agora, porque não citar Elisabeth Schwarzkopf, e jogar com a antítese dos nomes, de uma “cabeça preta” a uma “flor casta”? Os jogos de associações são relativamente fáceis; importa é a sua pertinência e produtividade analítica. Nem uma nem outra se verificam neste caso.
Também se tecem algumas considerações sobre a segunda mais marcante personagem feminina em Tintin: Peggy, mulher de Alcazar (Tintin e os Pícaros). Esta é representada como um protótipo da mulher desprovida dos “encantos feminis”, e a subsequente atenção da parte de Tournesol confirma essa condição, pois Tournesol, se interpretado de acordo com os instrumentos certos, será visto como a-personagem-que-entende-tudo-ao-contrário (mesmo que acerte no fim). Ou seja, essa atracção não confirma Peggy como atraente tout court, em si mesma (a atracção de Alcazar por ela será do foro psicológico?). Mais uma presença da representação misógina, sem dúvida. Todavia, ela exerce um poder férreo sobre a figura de Alcazar, por sua vez quem exerce um grande poder sobre tantos homens... Servirá esta situação para ilustrar a proverbial e bacoca frase “por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher”? Será uma excepção caricatural de poder da mulher sobre o homem que confirma precisamente a regra, o “normal”? Ou será uma caricatura, por sua vez, dos papéis libertários que as mulheres assumiam cada vez mais, e visivelmente, na década de 60? Estas perguntas acabam por ser respondidas na obra de Ana Bravo, e apontam mais uma vez para as “intenções” que se mostrariam férteis num trabalho sustentado e levado ao seu consequente desenvolvimento. O meu uso do condicional não é retórico, mas a condição suficiente acaba por não se juntar à argumentação. Essa condição é o fundamento.
A mera ausência de figuras femininas é imputável a um preconceito? Sim. Tintin no País dos Sovietes e de Marchando sobre a Lua são “aventuras de temática política e científica onde a mulher nem como figurante tem lugar” (165; no entanto, reportem-se ao estudo de J.P.Boléo, que mostra ser esta uma informação incorrecta). A sua ausência, portanto, é um dado negativo, pois a não-representação é em si mesma uma representação pela negativa, é o mesmo que dizer “menina não entra” (e no clube do Bolinha, a Luluzinha sempre conseguia superar essa proibição falha). É este tipo de preconceitos que persistem na mais comum das linguagens, ou até mesmo em expressões que dizem mais sobre as nossas limitações (nossas enquanto agentes supostamente “inconscientes”, o que é fraca defesa, dessa opressão) do que sobre as dos objectos da nossa leitura. É como quando se emprega a terrivelmente agressiva expressão “frígida” a uma mulher que não responde aos avanços de um homem, que assim depreende ser ele próprio (nós) irresistível. Essa ausência, em Tintin e alhures, espelha uma “estratégia de alheamento à emergência de novos dados históricos” (166). Quando a publicidade da Verbo anuncia a leitura da obra de Hergé como plataforma para que os jovens descubram “o maravilhoso mundo da Banda Desenhada através de aventuras que continuam a resistir à corrosão do tempo e às modas”, e que as aventuras de Tintin “expressam frequentemente os valores da liberdade contra todos os tipos da tirania”, apetece dizer, empregando uma conhecida fórmula: “Todos? Não! Há uma tirania que se mantém irredutível”. E se por “corrosão do tempo” e “modas” se entende a desconstrução feminista, protagonizada presentemente na obra de Ana Bravo, então bem-vinda seja. É verdade que Hergé não o terá feito por ter um propósito anti-feminino, nem sequer seria uma sua preocupação (positiva ou negativamente). Todavia, isso não nos impede de tentarmos a sorte da desconstrução, que poderá ser produtiva em termos de descobrirmos os discursos que subjazem a cultura onde se inscreve uma determinada obra.
Repetindo a modo de conclusão: ao passo que a exposição da estrutura básica, a sua assunção enquanto problemática a debater e combater (a misoginia e questões afins), é aceitável, são as suas generalizações aplicadas para além do território demarcado e sobretudo o método argumentativo que despoletam estas minhas considerações e desconfianças. A desconstrução a que me refiro tem de ser consistente por todos os lados, e algumas das estratégias apresentadas no livro de Bravo são “moles” e caem numa espécie de “mania da perseguição”, isto é, uma construção do discurso pela negativa, em vez de uma construção coesa e cabal da diferenciação, e poderosamente desconstrutiva, como se encontra nos trabalhos de Mieke Bal ou de Kaja Silverman, por exemplo, duas autoras que também fazem convergir uma leitura semiótica com o feminismo aplicado a discursos artísticos.
O “maravilhoso mundo da Banda Desenhada”, independentemente das suas prestações mais visíveis, não apresenta somente uma discursividade monolítica, defensora do status quo, opressiva e preconceituosa. Escuso-me de exemplos concretos, pois o ónus não deveria estar em “provas de defesa”, mas simplesmente num equilibrado conhecimento da multímoda existência deste campo de criação. Existem exemplos actuais de discursos outros no seio deste modo de expressão.
As palavras “justo” e “juízo” estão relacionadas uma com a outra, a primeira procurando a sua maior verdade no equilíbrio do fiel, a segunda na oferta que representa. Um bom trabalho académico ancorar-se-á na amplitude real e actual desses discursos da banda desenhada para prestar um serviço que faça aproximar o mais possível as palavras “juízo” e “justo” uma da outra. A invisibilidade da construção dos fundamentos acaba por ser a perdição de vermos neste trabalho académico essa junção.
Nota: este artigo deve ser lido em diálogo com as breves considerações de José Carlos Fernandes mas sobretudo com as de João Paiva Boléo, em torno desta mesma obra de cunho académico. A leitura da recensão (muito) crítica e contundente e desconstrutivamente analítica deste investigador levou a uma troca de impressões e algumas alterações atempadas a este artigo, que aqui evoco. Muitos dos assuntos a que meramente aponto neste artigo superficial estão explanados claramente no seu artigo. Entretanto, saiu também o artigo de João Ramalho Santos no Jornal de Letras de Agosto/Setembro, sobre esta obra, a leitura do qual aconselho vivamente. E deixo mais outra nota: este ano foi publicado um livro de Pierre Bayard, já traduzido em português e intitulado “Como falar dos livros que não lemos?”. De certa forma, A Invisibilidade... acaba por ser uma espécie de paráfrase dessa questão: “Como fazer um trabalho interpretativo sobre signos não-presentes ou não-apresentados?”
Nota: Agradecimentos a João Paiva Boléo, Sara Figueiredo Costa, Domingos Isabelinho, Maria Filomena Molder e Miriam Sampaio. Muito ajudaram a pensar e a escrever este artigo, quer o tenham sabido quer não.
Não seguiu também o título do artigo, pelo que saiu com o título do livro discutido. As minhas desculpas por este lapso, totalmente da minha responsabilidade. E espero que a publicação deste artigo aqui não impeça os interessados de obter uma cópia da revista Vértice.
Artigo:
O livro que se traz aqui à discussão é da autoria de Ana Bravo, investigadora com um currículo académico e profissional consolidado, mas que lhe acrescenta aqui uma incursão pelo domínio da banda desenhada através de uma Tese de Mestrado que conflui os discursos de desconstrução que emergiram graças ao feminismo, aos Gender e Women Studies, sobre a obra mais famosa de Hergé. A invisibilidade do género feminino em Tintin. A conspiração do silêncio quer colocar sob essa lupa de análise política o famoso “clássico” da banda desenhada. Enquanto o gesto em si é não só louvável como desejado na contínua construção de um discurso crítico no interior da banda desenhada, esta obra apresenta toda uma série de problemas que desejo aqui debater.
A primeira parte, sobretudo aquela que versa de uma forma mais global a história da banda desenhada e as suas várias “linhas de fuga”, já especializando sobre a representação do género feminino na banda desenhada em termos gerais, sofre de algumas generalidades redutoras, erros factuais, quando não abusos crassos, afirmações insustentadas, tipologias inexplicadas (quando não inexplicáveis), e até mesmo indícios de plágio (entre as páginas 40 e 41 tecem-se considerações sobre a figuração dos “bons” e dos “maus” e suas associações étnicas, que segue quase ipsis verbis as mesmas considerações de Domingos Isabelinho no Nemo no. 21, de 1996; o exemplo é o mesmo: Ming), trocas de nomes e filiações, curvas demasiado apertadas do que se está a discutir, dificultando uma leitura suave. Pequenos tropeções que colocam em cheque a acuidade desejada por uma aproximação académica deste complexo e imenso (como outros quaisquer) objecto cultural. Isto é, problemas tipificados de autores, mesmo intelectuais de peso nas suas áreas correspondentes, que mostram uma aproximação superficial ao “corpus de saber” existente sobre a banda desenhada. Um só ponto que mostra esta problemática de modo claro em relação à obra de Bravo: poucos são os momentos onde se mostra uma leitura de autores que tenham desenvolvido algum trabalho alargado e sustentado sobre esta temática precisa, a representação e figuração da mulher na banda desenhada; Trina Robbins, por exemplo, não se encontra na bibliografia ou nas notas de rodapé. Certo, não é esta uma informação suficiente para denegrir a investigação, já que a bibliografia é forte no que diz respeito aos Feminist Studies propriamente ditos. Apontam-se os problemas citados apenas como pista de desconfiança da minha parte pessoal em relação à relação da autora com a banda desenhada, jamais em relação ao valor académico do trabalho em geral. Isto é, não existe uma verdadeira relação sustentada e muito menos académica com a banda desenhada logo à partida, o que faz ressentir o próprio trabalho, a sua natureza académica, de uma série de fragilidades que não se deveriam verificar para a sustentabilidade da tese central.
Hélas!, parece que assim continuamos no território de ser um objecto “não-identificado”, passível deste vol d’oiseau, verificado em quase todas as frentes (vide o programa da RTP2 Câmara Clara dedicado a esta arte, que não passou de um certo nível nostálgico-familiar, não obstante a qualidade dos seus intervenientes) que não aquelas que se dediquem a tempo inteiro...
Seja como for, o objectivo deste livro/tese não é o de reapresentar a banda desenhada como um todo (como se tal fosse possível), nem sequer repensar uma atitude global e equilibrada sobre quer as suas potencialidades (virtuais, eventuais, futuras) quer sobre o seu imenso corpus diversificado (actual, verificado, histórico), mas sim discutir o que o título promete. Nesse objectivo, a obra de Ana Bravo é directa no que diz respeito ao que quereria combater: “o sexismo cultural impera no acesso das mulheres à criação, impondo leis economicamente e simbolicamente desvalorizadoras para as mulheres, porque o território é ainda masculino, por natureza, por herança cultural e histórica” (pag. 57). A existência dessa opressão é real, existente na banda desenhada (também), existente na obra de Hergé na forma de uma “assimetria simbólica” (173), e é isso o que importa desmontar, desconstruir, derrubar. A conclusão deste trabalho é claríssima, contundente, produtiva para futuras análises, quer da obra do próprio Hergé quer para outras produções artísticas deste campo.
A sociedade em que vivemos (portuguesa, europeia, ocidental, liberal-capitalista, etc.) apresenta uma imagem de si mesma como uma homogeneidade no que diz respeito à distribuição dos papéis sociais e de poder de acordo com uma linha divisória pelo sexo. Os meninos de azul e as meninas de rosa. Esse é tão-somente o primeiro passo para criar a ideia de que existem distribuições (seja do que for) “apropriadas a cada um”. Os direitos estão consignados nas leis, nas constituições, nas cartilhas e nos manuais, mas o desequilíbrio é tangível e verificável em praticamente todas as esferas. Para além dessa falta de balanço real, a própria dicotomização dos sexos leva a que se entenda ser apenas esse o eixo de relação possível, apagando da equação a possibilidade de terceiros sexos, de expressividades sexuais diferentes da “norma”, da ultrapassagem da família como suposta unidade estruturante da sociedade livre (o contrário, dizem os tradicionalistas, é o caos), etc. É a existência destes discursos, mesmo que aparentemente invisíveis, que deve ser combatida por uma determinada resistência cultural, intelectual e política. A aplicação dos seus instrumentos na banda desenhada é bem-vinda e necessária. O aspecto que indiquei ao princípio, em relação à introdução geral do estudo de Ana Bravo, é que me parece menos produtivo e imparcial: a banda desenhada não é, por si só, ou em si mesma, ou como um todo, sustentadora desse discurso. Se o é aparentemente ou se a esmagadora maioria da sua produção mais visível o é, essa situação é tal e qual como qualquer outra expressão cultural contemporânea, desde o cinema à literatura. No entanto, penso que não se faria um juízo de valor global sobre todo o cinema a partir de produções de comédias românticas de Hollywood nem toda a literatura a partir de um nicho de produção presente nos escaparates contemporâneos; bem pelo contrário, afunilar-se-ia o escopo do trabalho, explicitando tratar-se de uma amostra (mais ou menos representativa), mas jamais julgando a arte inteira... Analisar o Tintin desta perspectiva é producente (e aplicável em muitos, muitos outros títulos), mas cunhar TODA a banda desenhada deste modo (ou doutro modo qualquer generalizador) é um abuso, que não toma em atenção – por desconhecer? – precisamente aquelas produções que apresentam ou pelo menos apontam para uma discursividade dos géneros outra. Apelar para autoridades, como Umberto Eco, não abona a favor de uma leitura informada do campo expressivo existente da banda desenhada, quer histórica quer contemporaneamente. A banda desenhada não é necessariamente um campo que se situa sempre “entre o mito e o romance” (citação de Eco na pág. 174), nem espaço privilegiado de “estereótipos sociais”, como se fosse intrínseco à sua existência enquanto linguagem específica o compactar-se com esse estatuto. Isso depende da obra, do autor, da circunstância exacta e concreta. Exemplos de excepções? Herriman com Krazy Kat ou o papel da Luluzinha na obra de M. H. Buell e John Stanley nos “clássicos”, Y: The Last Man de Brian Vaughan e Pia Guerra contemporaneamente, e no círculo do mainstream. E se atentarmos a todo um rol de autoras politicamente engajadas, de Roberta Gregory a Isabel Carvalho, ou outras que não se associando com discursos mais directos, exercem o seu poder criativo para uma visão mais equilibrada do outro (Chantal Montellier, Marjane Satrapi, Jill Thompson), teremos uma visão mais ampla ainda. Por isso, e apesar de encontrar na Conclusão deste livro um texto esclarecedor (em relação aos propósitos, mesmo que incumpridos) e elementar (num sentido de “ponto de partida”, mas também em termos de ausência da complexidade do cruzamento das informações e várias linhas de investigação), discordo em absoluto de frases como “a relação entre a temática da BD e a inevitabilidade de um quadro referencial feminino que privilegia a imagem estereotipada das mulheres” (175). Esta estratégia é também uma de deixar na invisibilidade ou “debaixo do radar crítico” (para utilizar mais uma vez a famosa frase de Spiegelman) toda uma criação da banda desenhada que importa discutir e tornar presente na sua abordagem cada vez mais pública.
O estilo de escrita levanta alguns dissabores de leitura. Em termos sintácticos, o abuso de vírgulas que quebram a ligação entre o sujeito e o predicado é uma característica demasiado notável, o que não ajuda à fluidez da leitura. Em termos de lógica e organização do discurso, apresentam-se indicações um pouco vagas, pouco elaboradas, para logo passar à seguinte, cita-se um autor e logo depois outro, sem qualquer nexo de causalidade entre os dois empréstimos exteriores, havendo mesmo pedaços de texto que mais parecem ser uma colecção de factos e sound-bites para tornar a prestação mais enriquecida. Exemplo: “A ligação de Hergé às personagens é tão forte que era ele mesmo quem desenhava sempre as figuras, deixando os cenários e os adereços para os seus colaboradores. Para marcar o estilo, Hergé introduziu os balões em Les Aventures de Tintin, pondo as personagens a falar” (104). Se esta última parte deve ser lida num contexto maior, em que se conta (breve, esquemática e incompletamente) a história do “balão de fala” e a sua transmutação por Hergé, a primeira leva-nos a lê-la várias vezes para entender a pertinência. Hergé desenharia as personagens apenas porque tinha uma ligação “tão forte” com elas? Não se poderia pensar que as desenharia... por ser o seu autor? E soa sempre uma surpresa inédita um autor ter ligações fortes com as suas personagens? E se, em algumas partes, há um fio condutor que nos ajuda a perceber o contexto, ultrapassando a necessidade de ler as mesmas fontes para poder entender o raciocínio, outras há em que se apresenta um dado completamente descontextualizado ou “fora do sítio”, obrigando a retornar atrás para completar a imagem que se pretendia criar.
Mas, voltemos ao que importa, uma tese apresenta ideias. E são elas que devem ser sustentadas. Estas apenas surgem directamente na parte III, a partir da página 117, isto é, o busílis da questão: a representação das mulheres no universo ficcional de Tintin.
Algumas das ideias apresentadas são-no da forma de silogismos, derivados de premissas que não buscam nem sustentar-se nem desconstruir-se por sua vez. Duas, pelo menos, são constantes. A primeira prende-se com o insistente apelo, repetido até à exaustão sem qualquer análise da parte dos seus utilizadores, ao facto de Hergé ter sido cultor da chamada “linha clara”, sendo o rosto de Tintin a sua máxima expressão, “simplicidade” a qual permite “abrindo-se a todas as interpretações” um “suporte ideal para a identificação do leitor” (102)... Em primeiro lugar, poderíamos ver. Mesmo colocando de lado as pequenas mudanças a que a figuração da personagem Tintin foi sujeita ao longo da sua vida livresca, com sucessivas refigurações e reapresentações, é verdade que o rosto de Tintin continua a ser apresentado de um modo esquemático, senão mesmo infográfico (o que leva à possibilidade de entendê-lo como “assexuado”, mas precisar-se-ia aqui de um maior grau de análise). Mas bastar-nos-á folhear as páginas de um dos álbuns com atenção às flutuações faciais do capitão Haddock, do professor Tournesol, do vilão Rastapopoulos, entre outros, para depreendermos que essa estratégia visual não é uma constante em todas as personagens. A “linha clara” não é permeável em toda a produção de Hergé (e colaboradores e estúdio). Em segundo lugar, mesmo que exista essa simplicidade, a aceitação sem mais da teoria da projecção do leitor é problemática. Sabemos que Scott McCloud também a subscreve. Mas de onde vem essa teoria? E não é preciso deixar explícito que é uma teoria? Isto é, não faz parte de dados objectivamente (seja isso o que for) observáveis, mensuráveis. Somos obrigados a acreditar nessa teoria só porque se a repete até à exaustão? Não subscrevo essa ideia, mas este não é o espaço nem tempo de a desmontar. É apenas uma questão que não é colocada de modo mais claro e sustentado por Ana Bravo.
A outra ideia apresentada sem questionamento, e que serve de sustento à argumentação subsequente, é ainda mais melindrosa. Trata-se de uma crença demasiado central no biografismo, ou melhor, numa criptologia psicanalítica. Uma análise de uma obra de arte não tem necessariamente de ser estética num sentido restrito, isto é, enquanto juízo e com uma dimensão valorativa. Mas esse posicionamento, em termos gerais, implica que haja uma distinção muito séria e estruturante das três intenções (nem tudo o que é Eco é luz, mas algumas das suas lições ainda nos ajudam): a do autor, a da obra, a do leitor. A do leitor diz respeito à Teoria da Recepção e à sociologia. A da obra é a única que leva a uma constante busca e discussão entre as várias interpretações, e a uma leitura estética, é a única possível de interrogar. A do autor é passível de dialogar com o jornalismo, o biografismo propriamente dito, uma história, etc. É Serge Tisseron, freudiano da velha guarda, o fundador de todo um rol de associações que atravessam a fronteira da vida real, histórica e biografável de Georges Remi e a dos périplos aventureiros da sua personagem Tintin. Tintin chez le psychanalyste (1985), Psychanalyse de la bande dessinée (1987), Hergé (1987), Tintin et les secrets de la famille : secrets de famille, troubles mentaux et création (1990), La Bande dessinée au pied du mot (1990), Tintin et le Secret d’Hergé (1993) são os títulos que marcam a etapa do seu edifício. Este “detective do divã”, “em roda livre” (para utilizar duas expressões de Harry Morgan sobre Tisseron), explora os possíveis traumas de Hergé e as formas psicologizantes da banda desenhada ela-mesma, e depois factos palpáveis da sua vida – como a descoberta da bastardia do pai -, para depois os redescobrir, sob a forma de sintomas (termo técnico da psicologia, entenda-se), na obra de Hergé. Os Dupont/d são os gémeos pai-tio de Hergé, a necessidade de aventura e viagens é uma “fuga ao poder maternal”, as cavernas gélidas da lua são um útero aonde se retorna, a Castafiore é uma imagem-espelho... Percebemos onde nos poderá levar uma livre interpretação e interpenetração dos dados biográficos e da obra de um autor. Não é que a psicanálise se apresente como um “mau” caminho, muito menos como “proibido”. Simplesmente é “um” caminho, e como tal deverá ser também ele passível de alguma crítica, prudência, contestação. A aceitação quase cega das suas conclusões, sobretudo as de Tisseron, são insustentadas teoricamente... Apresentar paralelos entre a Margarida do Fausto de Gounod (de 1859) e a avó paterna de Hergé (124) é “bene trovato”, mas quebradiço academismo.
A utilização dos escritos de Pol Vandromme também são tomados ao pé da letra, sem qualquer desconto para com as afirmações bombásticas e criticáveis desse escritor. Se Vandromme fez uma afirmação sobre Hergé ou a sua obra, deverá ser entendido como um seu argumento, ideia, suposição, e não como uma basilar verdade que deve ser tomada como ponto de chegada. Mais uma vez, as fontes são apresentadas acriticamente, o que não abona em favor do desenvolvimento de uma ideia equilibrada e justa para com Hergé e a sua obra, de um ponto de vista académico, cuja neutralidade cabal é impossível mas nada impedindo de se a tentar alcançar.
Há outras vias abertas e não perseguidas. No tratamento da comunidade cigana em Tintin, por exemplo, perde-se mais tempo em questões genéricas, originárias e da sociabilização contemporânea da etnia em si do que o seu efectivo papel em As Jóias de Castafiore. Quando se analisa o papel das mulheres negras (147 e ss.), a autora comete o deslize de empregar a palavra “negrito” para se referir à criança da etnia local representada. Duvido que se empregasse “branquito” no caso de uma criança branca...
Compreendam. O que me leva a estas considerações não é a desconstrução central deste livro, comendatória, laudável, e desejável noutros discursos da banda desenhada. Para além das produções onde a misoginia ou sub-representação da mulher é real e clara – da banda desenhada tradicional de super-heróis à do género high-fantasy – é necessário aplicá-la noutros discursos, desde as supostas obras feministas da Losfeld (Pravda, Barbarella, etc., criadas por homens) à banda desenhada independente/underground mundial (pasto para tantos outros preconceitos), passando mesmo por autores onde se desconfiaria o contrário. Um exemplo: Baudoin, de quem falo repetidamente, não obstante a sua atenção para com um quotidiano e uma poeticidade do real, não escapa da gravidade de um certo baba cool de 68, onde qualquer mulher representa o “Eterno Feminino” e amar uma significa amar todas... é uma outra maneira de negar a construção da personalidade.
O título desta obra é uma pequena provocação que nos obriga a reler a obra de Hergé em busca desta imagem. Não se poderá falar propriamente de uma invisibilidade a pleno direito, uma vez que a presença das mulheres é real, mas que atravessa vários planos da sub-representação, que terão a ver com índices de participação, dos papéis assumidos, dos valores negativos que ocupa, etc. A tese de Ana Bravo cria um campo de referências e de leitura analítica (até determinado ponto) que constrói um espaço primeiro de respostas. Mas é no campo da interpretação que surgem desvios que trago aqui à consideração. Até mesmo a questão de reduzir a única presença feminina constante ao papel de Milou me parece uma interpretação constrangida, para provar a todo o preço a força da tese. Recorrer às informações exteriores à obra (biografismo, considerações gerais sobre antroponímicos franceses), ou a traduções estrangeiras que tenham optado indiscutivelmente pelo género feminino poderiam ser contrabalançadas por outras escolhas contrárias, do género masculino, verificado nas traduções das línguas germânicas, por exemplo... Mais, para além do genericamente neutro nome de Milou (por mais ginástica que se queira fazer, a análise dever-se-ia centrar na personagem em si), Milou não é necessariamente uma cadela nem cão, mas sim de género indefinido (tal como, de certa forma, Tintin o é, como se apontou atrás). Se por um lado o companheirismo ficaria mais coeso entre a esfera dos machos, também esta natureza indistinta ficaria bem (paralelo interessante ao sexo de Krazy Kat?). Ou será que o eventual paralelismo entre Milou e o terceiro sexo seria uma “emenda pior que o soneto”?
Depois surge a questão de Castafiore, absolutamente central para a deste edifício analítico. Que a representação de Castafiore seja caricatural, não há dúvidas. Que essa representação, tomada como paradigma de representação do género feminino na obra de Hergé, aponte para um certo grau de misoginia, também não suscitará questões de maior. Mas observar essa representação sem uma contextualização num quadro maior de representações já não é inocente. Afinal, o narcisismo a que Castafiore se reporta não é, de longe diferente, daquele que assola Haddock e o seu alcoolismo mal resolvido, o professor Tournesol e as suas “engenhocas”, os detectives Dupont/d e a sua obsessão do momento e a incompetência de sempre... E os tratamentos caricaturais de figuração também não diferem. Ou será que a representação caricatural da mulher é mais ofensiva e visível que a do homem? Não poderei responder cabalmente a esta questão, mas tendo em conta a equação da opressão falocêntrica e os discursos normativos, é natural que o tratamento de ridicularização das personagens-opressores passe mais despercebida (é simplesmente “humor”) que as das oprimidas (é “estereótipo” e “sub-representação”). O que julgo importante é a necessidade de um estudo cabal da figuração e representação em Hergé, e então, sim, estudar a différance (derridiana, claro, citado no livro). “Ainda que não se tivesse analisado o universo de representações masculinas, por exclusão de partes, concluímos por índices quase simbólicos de participação das mulheres em Les Aventures de Tintin” (164). Não encontro aqui um fundamento poderoso. Formas de vestuário, tipologias de intervenção discursiva, presença no plano da imagem, figurações, papéis tradicionais... são todos estes aspectos os parâmetros estudados para o desvelamento desse discurso normativo (logo, misógino) da obra de Hergé. Criar-se-ia assim um potente instrumento estatístico, não fossem alguns problemas de exactidão; e sem exactidão a estatística derroca sobre si mesma. Mas para além disso, um instrumento deverá valer pelo e no seu uso, e não na sua mera existência. E a análise estatística, dissociada de uma efectiva análise das relações actanciais e diegéticas, uma “close reading” das unidades narrativas em que se inscrevem esses papéis, ou por outras palavras, flutuando essas informações sem o seu contrapeso, não se ancora numa visão sustentada. Aliás, este é um dos problemas de base: não respeitar a divisão clássica entre o narrador (a função e agência que focaliza as informações e o discurso político no interior da obra) e o autor (a pessoa histórica, real, cuja vida poderá informar o sistema de produção mas se separa da intentio operis). É óbvio que nada proíbe que se façam leituras sobre os dois territórios e se os aproximem, mas seria necessário justificar qual a pertinência dessa aproximação. Enfim, em vez de uma estrita e clara separação entre as esferas narratológica, estética e sociológica, faz-se aqui uma mescla complicada de entender, injustificada.
As indicações por Ana Bravo dos valores cromáticos em Castafiore sem contraponto das mesmas nas restantes personagens não cria uma imagem completa, como se desejaria. A aplicação dos conceitos/exercícios de interpretação freudianos sobre os objectos, como Tom McCarthy faz em Tintin and The Secret of Literature (esmeralda de Castafiore = clítoris de Castafiore), são saltos interpretativos curiosos e até divertidos, mas saltos. McCarthy apresenta um exercício curioso, de associações livres até certo ponto “alucinadas”, mas que nos remete a uma (re)interpretação tão forte que nos obriga a uma releitura da obra. Além disso, não se pretende inscrever de modo algum num discurso académico absoluto, o qual responde a regras apriorísticas e não tem de demonstrar a sua sustentabilidade a cada passo. Ficamos sem ver o chão que fundamenta os passos. Mas se esses saltos funcionam em McCarthy, tornam-se chaves de descodificação poderosas, os de Ana Bravo recolocam-nos na casa de partida, exigindo mais respostas a questões colocadas de forma mais exacta. A leitura de As Jóias de Castafiore através da repetida fórmula do livro “onde não se passa nada” provoca a expurgação imediata de um dos aspectos positivos desta estória em particular, que está relacionado com a questão da intolerância/tolerância para com os ciganos aparcados nos jardins de Moulinsart. Essa questão (simples?) não redime todo o Hergé dos seus preconceitos rácicos, primeiro colonialistas, mais tarde anti-semitas, sexuais, e políticos, mas aponta a um elemento que deveria estar presente no sopesar da obra.
Castafiore é uma caricatura. Assim sendo, é imputável a um estereótipo conciso, e não geral. Não vejo nessa personagem necessariamente uma caricatura do género feminino como não vejo os irmãos Dupont/d uma caricatura da autoridade em geral ou o Capitão Haddock como de toda a marinha mercante... São estereótipos, combatíveis, sem dúvida, mas não holísticos em relação à humanidade. Mais, quase sempre Castafiore é indicada como uma diva, uma representação de um certo modo da ópera do seu tempo. Callas é o nome mais citado, aqui e noutros livros. Desconhecimento da área? Só porque é soprano? Mas há sopranos “magras” (mesmo que Callas o tenha sido por maus caminhos)! Distracção das fontes, do contexto histórico? Facilitismo de argumentação? Histórica e fisicamente, Castafiore está mais próxima de Elisabet Schumann ou de Birgit Nilsson ou de outra qualquer “cantora gorda” (...until the fat lady sings...), i.e., o estereótipo da cantora de ópera! Vocalmente estará próxima de Natália de Andrade? Isto se acreditarmos que é Castafiore que “canta mal”, mas...no Scala?! Não serão antes as personagens de Hergé que não têm nem cultura nem sensibilidade para apreciar Gounod e muito menos Wagner? E já agora, porque não citar Elisabeth Schwarzkopf, e jogar com a antítese dos nomes, de uma “cabeça preta” a uma “flor casta”? Os jogos de associações são relativamente fáceis; importa é a sua pertinência e produtividade analítica. Nem uma nem outra se verificam neste caso.
Também se tecem algumas considerações sobre a segunda mais marcante personagem feminina em Tintin: Peggy, mulher de Alcazar (Tintin e os Pícaros). Esta é representada como um protótipo da mulher desprovida dos “encantos feminis”, e a subsequente atenção da parte de Tournesol confirma essa condição, pois Tournesol, se interpretado de acordo com os instrumentos certos, será visto como a-personagem-que-entende-tudo-ao-contrário (mesmo que acerte no fim). Ou seja, essa atracção não confirma Peggy como atraente tout court, em si mesma (a atracção de Alcazar por ela será do foro psicológico?). Mais uma presença da representação misógina, sem dúvida. Todavia, ela exerce um poder férreo sobre a figura de Alcazar, por sua vez quem exerce um grande poder sobre tantos homens... Servirá esta situação para ilustrar a proverbial e bacoca frase “por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher”? Será uma excepção caricatural de poder da mulher sobre o homem que confirma precisamente a regra, o “normal”? Ou será uma caricatura, por sua vez, dos papéis libertários que as mulheres assumiam cada vez mais, e visivelmente, na década de 60? Estas perguntas acabam por ser respondidas na obra de Ana Bravo, e apontam mais uma vez para as “intenções” que se mostrariam férteis num trabalho sustentado e levado ao seu consequente desenvolvimento. O meu uso do condicional não é retórico, mas a condição suficiente acaba por não se juntar à argumentação. Essa condição é o fundamento.
A mera ausência de figuras femininas é imputável a um preconceito? Sim. Tintin no País dos Sovietes e de Marchando sobre a Lua são “aventuras de temática política e científica onde a mulher nem como figurante tem lugar” (165; no entanto, reportem-se ao estudo de J.P.Boléo, que mostra ser esta uma informação incorrecta). A sua ausência, portanto, é um dado negativo, pois a não-representação é em si mesma uma representação pela negativa, é o mesmo que dizer “menina não entra” (e no clube do Bolinha, a Luluzinha sempre conseguia superar essa proibição falha). É este tipo de preconceitos que persistem na mais comum das linguagens, ou até mesmo em expressões que dizem mais sobre as nossas limitações (nossas enquanto agentes supostamente “inconscientes”, o que é fraca defesa, dessa opressão) do que sobre as dos objectos da nossa leitura. É como quando se emprega a terrivelmente agressiva expressão “frígida” a uma mulher que não responde aos avanços de um homem, que assim depreende ser ele próprio (nós) irresistível. Essa ausência, em Tintin e alhures, espelha uma “estratégia de alheamento à emergência de novos dados históricos” (166). Quando a publicidade da Verbo anuncia a leitura da obra de Hergé como plataforma para que os jovens descubram “o maravilhoso mundo da Banda Desenhada através de aventuras que continuam a resistir à corrosão do tempo e às modas”, e que as aventuras de Tintin “expressam frequentemente os valores da liberdade contra todos os tipos da tirania”, apetece dizer, empregando uma conhecida fórmula: “Todos? Não! Há uma tirania que se mantém irredutível”. E se por “corrosão do tempo” e “modas” se entende a desconstrução feminista, protagonizada presentemente na obra de Ana Bravo, então bem-vinda seja. É verdade que Hergé não o terá feito por ter um propósito anti-feminino, nem sequer seria uma sua preocupação (positiva ou negativamente). Todavia, isso não nos impede de tentarmos a sorte da desconstrução, que poderá ser produtiva em termos de descobrirmos os discursos que subjazem a cultura onde se inscreve uma determinada obra.
Repetindo a modo de conclusão: ao passo que a exposição da estrutura básica, a sua assunção enquanto problemática a debater e combater (a misoginia e questões afins), é aceitável, são as suas generalizações aplicadas para além do território demarcado e sobretudo o método argumentativo que despoletam estas minhas considerações e desconfianças. A desconstrução a que me refiro tem de ser consistente por todos os lados, e algumas das estratégias apresentadas no livro de Bravo são “moles” e caem numa espécie de “mania da perseguição”, isto é, uma construção do discurso pela negativa, em vez de uma construção coesa e cabal da diferenciação, e poderosamente desconstrutiva, como se encontra nos trabalhos de Mieke Bal ou de Kaja Silverman, por exemplo, duas autoras que também fazem convergir uma leitura semiótica com o feminismo aplicado a discursos artísticos.
O “maravilhoso mundo da Banda Desenhada”, independentemente das suas prestações mais visíveis, não apresenta somente uma discursividade monolítica, defensora do status quo, opressiva e preconceituosa. Escuso-me de exemplos concretos, pois o ónus não deveria estar em “provas de defesa”, mas simplesmente num equilibrado conhecimento da multímoda existência deste campo de criação. Existem exemplos actuais de discursos outros no seio deste modo de expressão.
As palavras “justo” e “juízo” estão relacionadas uma com a outra, a primeira procurando a sua maior verdade no equilíbrio do fiel, a segunda na oferta que representa. Um bom trabalho académico ancorar-se-á na amplitude real e actual desses discursos da banda desenhada para prestar um serviço que faça aproximar o mais possível as palavras “juízo” e “justo” uma da outra. A invisibilidade da construção dos fundamentos acaba por ser a perdição de vermos neste trabalho académico essa junção.
Nota: este artigo deve ser lido em diálogo com as breves considerações de José Carlos Fernandes mas sobretudo com as de João Paiva Boléo, em torno desta mesma obra de cunho académico. A leitura da recensão (muito) crítica e contundente e desconstrutivamente analítica deste investigador levou a uma troca de impressões e algumas alterações atempadas a este artigo, que aqui evoco. Muitos dos assuntos a que meramente aponto neste artigo superficial estão explanados claramente no seu artigo. Entretanto, saiu também o artigo de João Ramalho Santos no Jornal de Letras de Agosto/Setembro, sobre esta obra, a leitura do qual aconselho vivamente. E deixo mais outra nota: este ano foi publicado um livro de Pierre Bayard, já traduzido em português e intitulado “Como falar dos livros que não lemos?”. De certa forma, A Invisibilidade... acaba por ser uma espécie de paráfrase dessa questão: “Como fazer um trabalho interpretativo sobre signos não-presentes ou não-apresentados?”
Nota: Agradecimentos a João Paiva Boléo, Sara Figueiredo Costa, Domingos Isabelinho, Maria Filomena Molder e Miriam Sampaio. Muito ajudaram a pensar e a escrever este artigo, quer o tenham sabido quer não.
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