Le Coup de Grâce é, como reza a primeira nota, um álibi “sem projecto nem fito”. A equipa desta editora – pertencente ao círculo da Autarcix Comix (que já havíamos debatido em parte em relação a um dos seus objectivos gerais – reuniu ou convidou artistas a desenvolver novos trabalhos para este livro em torno das limitações, ultrapassagens ou dissoluções possíveis da ideia de narrativa, aliada à criação da banda desenhada. Cita-se como sombra de pensamento por onde se desenvolvem novas correntes o famoso ensaio de Walter Benjamin, “O Narrador” (que já havíamos também citado a propósito de Joann Sfar como paladino da “narração”), no qual o crítico apontara a uma emergente “crise da narração”, e ao mesmo tempo sensibilizando-nos para a de novas formas de partilhar as experiências entre o criador e o fruidor de uma obra de arte, que descia, digamos assim, de um círculo colectivo para a da comunicação directa entre dois pólos isolados. O que isto significa é que as obras de arte deixariam de ser partilháveis em termos comuns, como cultura de comunidade, para existirem enquanto recorrente leitura e recriação (não necessariamente apenas de teor literário restrito). Peter Watkins é outro dos autores citados, sobretudo na sua noção de “monoforma”, isto é, uma estrutura narrativa relativamente básica (linearidade e determinismo, intriga e herói, continuidade e localização) e repetidamente empregue nas mais variadas indústrias, de Hollywood até à banda desenhada como um todo nos mercados comerciais.
Estes dois signos – “crise da narração” e “crítica da monoforma” – permitem que se problematize a narrativa enquanto estrutura rígida, formulaica, e ainda o aparente imperativo de que a banda desenhada deve ser ou seguir esse tipo de narrativa. Pode ser, mão não deve ser somente. Watchmen, de Moore e de Gibbons, o run de Daredevil de Bendis e Maleev, L’Ascension du Haut Mal de David B., são exemplos de grandes e maravilhosas bandas desenhadas em narrativa, cada uma com a sua especificidade e rigor, mas não podem servir como fronteira para lá da qual se esgota a ideia de banda desenhada. Le Coup de Grâce revisita experiências e propõe novas tentativas, ou cumprimentos mesmo, em que se permite a produção de sentidos (isto é, “significados”) em todos os sentidos (agora como “direcção”), reformulando um princípio deleuziano neste território. Relatar, como “re-transportar”, “re-ligar”, e assim, “re-estabelecer uma relação”. Historicamente falando, é possível incorporar num contínuo a existência de obras de imagens em séries das quais emerge um sentido último sem que ele tenha sido criado por elementos lineares ou ordenados, uma estória, uma resonância pela presença dos instrumentos e não pela organização das notas: Goya, Hokusai, Masereel são exemplos únicos, mas mais recentemente e entre nós, poder-se-ia falar igualmente de Tiago Manuel (e haverá uma experiência de Richard Câmara que mergulhará nesta natureza). E outros exemplos haveria a notar.
A banda desenhada, tal como o cinema, é uma arte que nasceu no seio da sua própria experimentação, sem quaisquer “modelos únicos” pelos quais se pautar, se bem que se permitisse beber de tantas e tão díspares fontes. A fotografia, por exemplo, não obstante o seu aspecto inovador em termos tecnológicos, levou algum tempo a separar-se das suas associações, modelares, a certas escolas de pintura, o academismo, a paisagística... Apenas por razões sociológicas, e que levaram o seu tempo a sedimentar (por volta dos anos 20 ou 30 do século XX, no mundo ocidental), a banda desenhada seria tornada refém de um círculo estreito de temas, públicos, canais de distribuição. As excepções sempre verificadas, todavia, serviam precisamente para confirmar essa regra, ou pior, essa normatividade (que passa ainda hoje por “normalidade”). Mas se este debate é "eterno" na pintura, e saudavelmente existente no cinema, para apenas citar duas áreas, na banda desenhada ainda é matéria votada a um quase esmagador silêncio, que faz destas excepções fogos nada, esperemos, fátuos.
Le Coup de Grâce não o é totalmente, isto é, não é um terminus irreversível em relação à narrativa na banda desenhada (nem nos parece que deva existir um, crendo-se antes em toda a diversidade); mas é um golpe que tenta restabelecer a liberdade da criação despojada dessa canga. Apresentam-se artigos de discussão, ensaios, entrevistas e correspondências sobre projectos antigos e outros inacabados ou problemáticos, bandas desenhadas tout court, mas que apresentam ligeiros desvios em relação à narração, exercícios oubapianos (Manouach, Laurent D’Ursel), e croquis (os quais, por razões agora suspensas, não incluímos no território da banda desenhada, por mais amplo que este seja).
Estes dois signos – “crise da narração” e “crítica da monoforma” – permitem que se problematize a narrativa enquanto estrutura rígida, formulaica, e ainda o aparente imperativo de que a banda desenhada deve ser ou seguir esse tipo de narrativa. Pode ser, mão não deve ser somente. Watchmen, de Moore e de Gibbons, o run de Daredevil de Bendis e Maleev, L’Ascension du Haut Mal de David B., são exemplos de grandes e maravilhosas bandas desenhadas em narrativa, cada uma com a sua especificidade e rigor, mas não podem servir como fronteira para lá da qual se esgota a ideia de banda desenhada. Le Coup de Grâce revisita experiências e propõe novas tentativas, ou cumprimentos mesmo, em que se permite a produção de sentidos (isto é, “significados”) em todos os sentidos (agora como “direcção”), reformulando um princípio deleuziano neste território. Relatar, como “re-transportar”, “re-ligar”, e assim, “re-estabelecer uma relação”. Historicamente falando, é possível incorporar num contínuo a existência de obras de imagens em séries das quais emerge um sentido último sem que ele tenha sido criado por elementos lineares ou ordenados, uma estória, uma resonância pela presença dos instrumentos e não pela organização das notas: Goya, Hokusai, Masereel são exemplos únicos, mas mais recentemente e entre nós, poder-se-ia falar igualmente de Tiago Manuel (e haverá uma experiência de Richard Câmara que mergulhará nesta natureza). E outros exemplos haveria a notar.
A banda desenhada, tal como o cinema, é uma arte que nasceu no seio da sua própria experimentação, sem quaisquer “modelos únicos” pelos quais se pautar, se bem que se permitisse beber de tantas e tão díspares fontes. A fotografia, por exemplo, não obstante o seu aspecto inovador em termos tecnológicos, levou algum tempo a separar-se das suas associações, modelares, a certas escolas de pintura, o academismo, a paisagística... Apenas por razões sociológicas, e que levaram o seu tempo a sedimentar (por volta dos anos 20 ou 30 do século XX, no mundo ocidental), a banda desenhada seria tornada refém de um círculo estreito de temas, públicos, canais de distribuição. As excepções sempre verificadas, todavia, serviam precisamente para confirmar essa regra, ou pior, essa normatividade (que passa ainda hoje por “normalidade”). Mas se este debate é "eterno" na pintura, e saudavelmente existente no cinema, para apenas citar duas áreas, na banda desenhada ainda é matéria votada a um quase esmagador silêncio, que faz destas excepções fogos nada, esperemos, fátuos.
Le Coup de Grâce não o é totalmente, isto é, não é um terminus irreversível em relação à narrativa na banda desenhada (nem nos parece que deva existir um, crendo-se antes em toda a diversidade); mas é um golpe que tenta restabelecer a liberdade da criação despojada dessa canga. Apresentam-se artigos de discussão, ensaios, entrevistas e correspondências sobre projectos antigos e outros inacabados ou problemáticos, bandas desenhadas tout court, mas que apresentam ligeiros desvios em relação à narração, exercícios oubapianos (Manouach, Laurent D’Ursel), e croquis (os quais, por razões agora suspensas, não incluímos no território da banda desenhada, por mais amplo que este seja).
Algumas das experiências incidem mais no aspecto da visualidade, ou onde a aparente simplicidade se alia ao humor, como no caso de Harry Lagoussis ou Greg Shaw (vejam-se aqui “O misterioso motard dos piscas”; as quais se citam no livro, pelo que se depreende da diferença de tamanho das restantes obras e a colocação periférica na mancha da página), ou que prima por uma fragmentação do figural (mais do que do figurativo, como no exemplo das "amibas" de Francesco Defourny), atendendo a sensação de estranheza que ainda assim mantém um que outro princípio da banda desenhada (nem necessário nem suficiente, mas verificável estatisticamente): a sequencialização, a distribuição espácio-temporal por vinhetas contíguas, a manutenção de uma unidade espacial ou de personagem, etc. São esses os casos de Pascal Mathey, Benoît Guillaume, Pauline Cardon, Ruppert e Mulot. Outros há que exploram a relação entre texto e imagem, a relação plasmática entre as duas instâncias na banda desenhada, mas cuja dimensão do texto se dissocia de um programa narrativo-linear para entrar num território de abertura poética: Benoît Preteseille e Carl Roosens. Neste âmbito, estão acompanhados por algumas outras experiências anteriores já referidas noutros momentos neste espaço (John Porcellino, Dice Industries, Warren Craghead, Fredrik von Blixen), e que Olivier Deprez, no seu ensaio aqui incluído, abre a autores como Thierry van Hasselt, Vicent Fortemps, Dominique Goblet, Frédéric Coché.
Uma antologia cuja diversidade permite não só pensar, mas repensar e repesar este ainda não-identificado objecto cultural.
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