Tal como se notará de imediato mesmo perscrutando a capa deste pequeno livro, a “prisão” a que estas histórias se referem tomam a aparência de jaulas de jardim zoológico. As jaulas são uma forma de prisão muito particular. O seu propósito não é somente limitar a liberdade de movimento da criatura encerrada, nem afastá-la de um contacto permanente com outras criaturas, mas de reduzir a um mínimo a própria teleologia dessa criatura (já que creio existir uma teleologia natural, ou melhor, a existência de elos sociais mesmo no mundo dito “natural” por oposição ao “humano”, e logo, o estabelecimento de fitos e relações entre todas e quaisquer criaturas) a objecto de observação. De conhecimento, de prazer, curiosidade passageira, coleccionismo, enciclopedismo... seja qual for o factor último apontado como objectivo dessa separação, a criatura passa da sua individualidade a exemplo. Não obstante a louvável noção de preservação e defesa, um jardim zoológico é sempre algo literalmente contranatura, artificial. Nosso.
As criaturas que estão presas nas Prison Stories, do croata Igor Hofbauer, previamente publicadas noutras instâncias (ver aqui), são de aparência humana, não o sendo totalmente. Todas elas, porém, são passíveis de serem inteligíveis enquanto objectos de observação e projecção. Que projecções de sentido serão possíveis?
Ler a primeira história, “Olympia Story”, como metáfora política não é muito difícil. Uma velha estrela da canção popular vive numa gaiola, como se de um animal se tratasse, exercendo uma curiosidade sobre várias pessoas, uma curiosidade que é uma mistura (ainda que esses elementos misturados possam parecer isolados conforme cada pessoa em particular que a observa) de nostalgia, ódio, sentido do ridículo, fascínio. Descobriremos de que ela se alimenta das novas estrelas da música que vão surgindo, mas cujas famas parecem mais fugazes e repentinas (precisamente por serem pasto da fome das velhas glórias); mas cada refeição torna mais perigosa a manutenção dessa dieta. Não será, portanto, essa uma possível maneira de metaforizar aquele regimes que parecem suspensos no tempo, que se vão consumindo numa autofagia crónica (literalmente, “como Cronos”), nos quais os poderes instituídos “desde sempre”, “no direito divino”, “com a bênção de Deus”, “a bem da Nação” engolem os pequenos movimentos de diferenciação política que podem ir surgindo, mas conhecem de imediato a morte prematura, sem sequer terem tempo de criar uma oportunidade de deixar uma inflexão nesse dado país. E que depois os regurgitam, não como interlocutores de poder, mas confirmações da “degenerescência” e do “perigo” em que as suas respectivas sociedades e estados poderiam eventualmente cair, caso os poderes não estivessem “no controle das coisas”. Esta é uma constante histórica, e presentemente, os acontecimentos na Birmânia, a posição da Sérvia em relação à independentização do Kosovo, as dificuldades de emergência e consolidação dos movimentos islâmicos democráticos laicos (isto é, “laicos” mas inscritos numa sociedade de base cultural islâmica, tal como vivemos nós num estado laico de inscrição católica) na área do sudoeste asiático, são ocorrências que confirmam essa continuidade.
Mas há outras formas de ler as prisões, corroboradas pelas seguintes histórias, “Band you never heard never saw” e “My prison story”, ambas em torno de personagens licantropos. O país ou estado enquanto prisão, sendo a antiga República Democrática Alemã o grande exemplo, com o seu imenso muro, para além da extensão física, e as Stasi e as Cheka, erguendo outros muros, aparentemente menores, em torno da vida de cada cidadão. Mas não são somente esses estados aqui desvendados como prisão. Os ditos estados democráticos, que permitem toda a “liberdade de entretenimento” possível, todas as “escolhas de canais” que se podem desejar, acabam no prato da mesma balança. Quer um quer outro afunilam o espaço confinado permitido ao indivíduo, e é neste que chegamos à ideia do próprio corpo ou da pele como prisão (os lobos-homens da banda rock e o lobisomem da segunda curta). Há um lado da irreverência violenta da cultura musical do rock e do punk e do hardcore de cariz político que se instala através destas personagens, mas esse proverbial poder libertador surge aqui limitado. Por outro lado, a dimensão mais ampla nas histórias é a do absurdo, já que todas elas apresentam as suas pequenas realidades como fait accompli, sem qualquer necessidade de contextualização ou explicação. Nesse jogo de deslocação passa-se aquilo que Mieke Bal apelida de descrições de tipo “metafórico-metonímico”, nas quais existem relações de contiguidade entre os elementos de cada termo mas em que apenas o seu todo constitui a comparação entre os objectos; leva-se assim a uma grande metáfora, e é essa metáfora que se tenta aqui desvendar.
As criaturas que estão presas nas Prison Stories, do croata Igor Hofbauer, previamente publicadas noutras instâncias (ver aqui), são de aparência humana, não o sendo totalmente. Todas elas, porém, são passíveis de serem inteligíveis enquanto objectos de observação e projecção. Que projecções de sentido serão possíveis?
Ler a primeira história, “Olympia Story”, como metáfora política não é muito difícil. Uma velha estrela da canção popular vive numa gaiola, como se de um animal se tratasse, exercendo uma curiosidade sobre várias pessoas, uma curiosidade que é uma mistura (ainda que esses elementos misturados possam parecer isolados conforme cada pessoa em particular que a observa) de nostalgia, ódio, sentido do ridículo, fascínio. Descobriremos de que ela se alimenta das novas estrelas da música que vão surgindo, mas cujas famas parecem mais fugazes e repentinas (precisamente por serem pasto da fome das velhas glórias); mas cada refeição torna mais perigosa a manutenção dessa dieta. Não será, portanto, essa uma possível maneira de metaforizar aquele regimes que parecem suspensos no tempo, que se vão consumindo numa autofagia crónica (literalmente, “como Cronos”), nos quais os poderes instituídos “desde sempre”, “no direito divino”, “com a bênção de Deus”, “a bem da Nação” engolem os pequenos movimentos de diferenciação política que podem ir surgindo, mas conhecem de imediato a morte prematura, sem sequer terem tempo de criar uma oportunidade de deixar uma inflexão nesse dado país. E que depois os regurgitam, não como interlocutores de poder, mas confirmações da “degenerescência” e do “perigo” em que as suas respectivas sociedades e estados poderiam eventualmente cair, caso os poderes não estivessem “no controle das coisas”. Esta é uma constante histórica, e presentemente, os acontecimentos na Birmânia, a posição da Sérvia em relação à independentização do Kosovo, as dificuldades de emergência e consolidação dos movimentos islâmicos democráticos laicos (isto é, “laicos” mas inscritos numa sociedade de base cultural islâmica, tal como vivemos nós num estado laico de inscrição católica) na área do sudoeste asiático, são ocorrências que confirmam essa continuidade.
Mas há outras formas de ler as prisões, corroboradas pelas seguintes histórias, “Band you never heard never saw” e “My prison story”, ambas em torno de personagens licantropos. O país ou estado enquanto prisão, sendo a antiga República Democrática Alemã o grande exemplo, com o seu imenso muro, para além da extensão física, e as Stasi e as Cheka, erguendo outros muros, aparentemente menores, em torno da vida de cada cidadão. Mas não são somente esses estados aqui desvendados como prisão. Os ditos estados democráticos, que permitem toda a “liberdade de entretenimento” possível, todas as “escolhas de canais” que se podem desejar, acabam no prato da mesma balança. Quer um quer outro afunilam o espaço confinado permitido ao indivíduo, e é neste que chegamos à ideia do próprio corpo ou da pele como prisão (os lobos-homens da banda rock e o lobisomem da segunda curta). Há um lado da irreverência violenta da cultura musical do rock e do punk e do hardcore de cariz político que se instala através destas personagens, mas esse proverbial poder libertador surge aqui limitado. Por outro lado, a dimensão mais ampla nas histórias é a do absurdo, já que todas elas apresentam as suas pequenas realidades como fait accompli, sem qualquer necessidade de contextualização ou explicação. Nesse jogo de deslocação passa-se aquilo que Mieke Bal apelida de descrições de tipo “metafórico-metonímico”, nas quais existem relações de contiguidade entre os elementos de cada termo mas em que apenas o seu todo constitui a comparação entre os objectos; leva-se assim a uma grande metáfora, e é essa metáfora que se tenta aqui desvendar.
O modo como Hofbauer gere as memórias das personagens (sobretudo na primeira história) e as capacidades organizativas da prancha para permitir a assunção da multiplicidade de sensações e pensamentos dos inervenientes apenas torna a implicação dessas leituras metafóricas mais ricas.
Igor Hofbauer é sobretudo conhecido pelo seu trabalho de designer de uma centena de cartazes de eventos relacionados com música, espectáculos, cinema e praticamente todas as artes existentes. O seu “sentido de design”, portanto (perdoe-se o chavão), é empregue aqui numa série de elementos construtivos da banda desenhada. É sobejamente repetido (facto que de tão claro quase pode passar em silêncio) que os seus cartazes trabalham na tradição que Rodchenko, se não inventou, pelo menos tornou como o “seu” estilo: linhas oblíquas gerindo o texto composto de letras de uma legibilidade extrema, uma gestão equilibradíssima entre os pretos, cinzentos e brancos para a disposição das figuras e informações a ler, uma distribuição clara entre os espaços da imagem e os do texto, e das vinhetas pelas pranchas. A imagem aqui apresentada mostra claramente parte dessa herança artística, ao mesmo tempo aliada ao tipo de crítica avançada. Os contrastes vincados entre as áreas de cor, não-cor e intermédio, aliadas às suas linhas que misturam breves traços direitos e longas e nervosas curvas para criar os contornos das personagens e objectos, poderão recordar uma tentativa de imitar as especificidades da xilogravura expressionista de um Masereel, por exemplo, mas num grau naturalmente de maior suavidade formal. É na presença do absurdo, nas violências retratadas, nas pequenas personagens secundárias deixadas sempre em segundo plano apesar dos seus desejos em passar para o primeiro, que essas suavidades formais se dissipam sempre, como o fumo que está num espaço qualquer, pairando, mas jamais se deixará como presença tangível.
Nota: agradecimentos a Sílvia Pereira, por ter insistido sempre na atenção deste autor. Houve em tempos uma ideia de oportunidade em trazê-lo a Portugal, num pequeno projecto “de café”... Ficam os votos para que se concretize num outro futuro.
Igor Hofbauer é sobretudo conhecido pelo seu trabalho de designer de uma centena de cartazes de eventos relacionados com música, espectáculos, cinema e praticamente todas as artes existentes. O seu “sentido de design”, portanto (perdoe-se o chavão), é empregue aqui numa série de elementos construtivos da banda desenhada. É sobejamente repetido (facto que de tão claro quase pode passar em silêncio) que os seus cartazes trabalham na tradição que Rodchenko, se não inventou, pelo menos tornou como o “seu” estilo: linhas oblíquas gerindo o texto composto de letras de uma legibilidade extrema, uma gestão equilibradíssima entre os pretos, cinzentos e brancos para a disposição das figuras e informações a ler, uma distribuição clara entre os espaços da imagem e os do texto, e das vinhetas pelas pranchas. A imagem aqui apresentada mostra claramente parte dessa herança artística, ao mesmo tempo aliada ao tipo de crítica avançada. Os contrastes vincados entre as áreas de cor, não-cor e intermédio, aliadas às suas linhas que misturam breves traços direitos e longas e nervosas curvas para criar os contornos das personagens e objectos, poderão recordar uma tentativa de imitar as especificidades da xilogravura expressionista de um Masereel, por exemplo, mas num grau naturalmente de maior suavidade formal. É na presença do absurdo, nas violências retratadas, nas pequenas personagens secundárias deixadas sempre em segundo plano apesar dos seus desejos em passar para o primeiro, que essas suavidades formais se dissipam sempre, como o fumo que está num espaço qualquer, pairando, mas jamais se deixará como presença tangível.
Nota: agradecimentos a Sílvia Pereira, por ter insistido sempre na atenção deste autor. Houve em tempos uma ideia de oportunidade em trazê-lo a Portugal, num pequeno projecto “de café”... Ficam os votos para que se concretize num outro futuro.
1 comentário:
Agradeço os agradecimentos e o texto. Votos de um Fabuloso 2011! Vera Suchankova
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