“O estilo em filosofia é o movimento do conceito”. Esta conhecida fórmula de Deleuze, em Pourparlers (em Portugal, Conversações, na Fim de Século; pg. 192), especificada como variação, modulação e tensão da linguagem, não é somente um princípio seguido por Christian Rosset, como ainda constitui mesmo a matéria da sua escrita. Indissociáveis são o modo de escrever e o modo de pensar e, consequentemente, os frutos dessa mesma escrita e desse pensamento.
Avis d’orage en fin de journée é um título, poético, como se notará, no sentido de poesis, “fazer”, de criar uma imagem com que se desencadeie um pensamento, mesmo que na aparência de imagens encadeadas umas nas outras. De um ponto de vista superficial, poder-se-á dizer que este volume reúne artigos “escritos entre 1986 e hoje (com um hiato de quinze anos) e de os colocar em tensão, sem respeitar a ordem cronológica da sua escrita” (página 10). No entanto, não é apenas a sua ordem cronológica original que é colocada de lado, mas, libertos que estes textos estão das suas publicações originais (Les Cahiers de la Bande Dessinée, 9éme Art, l’Éprouvette,...), eles tornam-se veículos a partir do qual o autor recupera matéria discutida para relançar as suas impressões, leituras, obsessões, e ideias. O que nos força à citação de dois princípios importantes, duas imagens. A ideia de relançamento prende-se à ideia de Rosset, passando por Mallarmé, de que un coup de dés jamais n’abolira le hasard. As leituras aqui propostas são livres, capítulos uns presos à força da circunstância, a um autor, um livro, uma efeméride, mas todas elas relançando as bases do diálogo possível, e assistindo-se ao direito de se associar a ligações tão livres quanto de diversas.
Por outro, é preciso explicar que o subtítulo, hantologie, é um jogo devedor a Derrida e que pretende dar conta da aglomeração da palavra antologia com “hantise”, ou “obsessão” em francês. Os fantasmas de Rosset vogam, sem dúvida, a sua infância, os mecanismos que nela foram instalados através da banda desenhada, mas todas as ligações possíveis no diálogo da cultura: Rosset escreve sobre música, mormente a contemporânea, e é com ela que mais faz dialogar a banda desenhada (ambas são “um domínio preciso e fluido”, p. 15), se bem que não somente. Precisemos que esse retorno à infância nada tem de nostálgico. Um tema central, estruturante, é o da coexistência da melancolia com a memória (e ainda a meditação). A melancolia é vista como um movimento nada análogo à nostalgia, esta buscando um conforto, um conformismo, que a melancolia recusa.
Os objectos são variados: Hergé, Jacobs, Calvo, Cestac, Schlingo, Macherot, Forest, Baudoin, Guibert, Menu, Gottfredson, Sfar, Trondheim, Killoffer, Altan, F’Murr, mas não podemos dizer que se tratam de artigos fechados sobre esses autores e as suas obras somente. É a partir das sombras culturais lançadas pelos seus gestos que Rosset percorre (persegue?) os fantasmas que ele neles vislumbra e, mais, encontra. Não haja dúvidas, esta é uma obra filosófica com o objecto banda desenhada. Se Groensteen havia dito que ela se tratava de um objecto cultural não identificado, Rosset não a quer identificar, mas pretende lançá-la no centro da tempestade ou do caldeirão, escolha-se a metáfora, da cultura, no seu sentido mais musculado.
Há aqui um programa do pensar, falando-se, tratando-se da banda desenhada como arte – sem desculpas, mas também sem maiúsculas, o que denota desde logo uma verdadeira predisposição inteligente em dar início (quando já deveríamos ir a meio) a um diálogo com os vários territórios criativos. O contrário apenas alimenta argumentações de serão em bonomia. Qual a justificação dessa atitude? Como pensá-la? Normalmente estas questões desejam o silêncio, por duas razões antinómicas: ou a simples ignorância anti-intelectual que habita a cidade da banda desenhada (e de outros campos, terminando por se discutir, como exemplos, como o futebol de x ou o pão-de-ló de y são uma arte, misturando tudo sem escalas de valorização ou de actos criativos, cegos pela “democratização” e a “relatividade”, princípios esses também despojados da sua verve); ou pelo contrário um profundo conhecimento do perpétuo movimento do pensamento e, assim, permitindo afinal uma resposta simples, directa, cabal e até mesmo definitiva (mas não definidora): ça “est un object qui change” (p. 62). Mais, é uma arte cujas potencialidades não se encontram no cruzamento (de novo, a bastardia) com as outras artes, ou inclinações na sua direcção, mas antes na criação de um alhures próprio território (p. 64.). É caso para dizer, “conhece-te a ti mesma e deixa-te mudar no que apenas em ti pode mudar”. Christian Rosset vê a banda desenhada como um caso misto, mas entendendo nessa natureza o signo da heterogeneidade e não a da hibridação, o que se poderia tornar um argumento para a consideração da banda desenhada enquanto forma bastarda. Isto é muito profundo. Trata-se de um encontro amoroso, mas nada de misticismos de novela, de “união dos espíritos e corpos”, mas um encontro que preserva duas forças na sua especificidade. Um magnetismo.
Devo confessar, em termos mais pessoais, que a leitura deste livro foi uma mescla de admiração e de terror, por sentir uma afinidade terrível no modo como Rosset escreve, a matéria de que ele escreve, e a direcção (ou direcções, e sinuosas) que o pensamento dele desenha, que são o modo, a matéria e a direcção que o lerbd (e outros gestos) pretende cumprir – se bem ou mal, se conseguido ou não, é outra questão e não a responder por mim mesmo. Rosset fala também da necessidade de uma crítica robusta (tema recorrente, repetido, mas raras vezes cumprido efectivamente) e opõe um jornalismo pachorrento que a troco de álbuns das grandes casas escreveria linhas como “Escrevamos alegremente sobre BD de uma forma impertinente e irónica mas ao mesmo tempo celebrando a nossa devoção fetichista para com o nosso querido médium” (p. 41) a uma maneira de escrita que vê como “mais pertinente escrever por fragmentos com o rigor (e a ausência da rigidez) de uma errância aberta e atenta às transformações (changements) do terreno” (idem; itálicos do autor). Uma escrita fragmentária como “escrita democrática” (o autor, citando Baudrillard). Fragmentos que devem ser entendidos como blocos acabados em si mesmos e que estabelecem uma relação uns com os outros não como texto corrido e completo (fechado) mas como fazendo emergir a ideia de uma constelação de pensamento (símile de Walter Benjamin).
A existência dessa maneira fragmentária prende-se com o perpétuo movimento. Uma dança de mutualidades. Por um lado, a crítica deve encontrar-se com o seu objecto em transformação enquanto sombra que persiga o mesmo movimento, isto é, que dialogue directamente com essa transformação e com ela se transforme ela-mesma. A escrita de Rosset está em consonância portanto com aquele estilo de que Deleuze fala e que tem estado presente (esteve sempre presente, desde os mais estruturados dos pensadores, como Kant, aos mais rizomáticos, como o próprio Deleuze) na escrita de autores contemporâneos em torno das discussões intelectuais da arte (enquanto campo máximo). Por outro, deve-se este novo hausto à emergência de uma “outra banda desenhada que não recusa mais o risco do confronto, como toda a arte que se respeita desde a noite dos tempos, que exige uma nova crítica, a qual as outras práticas desde sempre reclamaram e obtiveram de uma maneira muito simples e quase natural” (todas as citações, p. 110). Mas o que tem parecido mais natural é o anti-intelectualismo, a auto-corrosão das condições de possibilidade de pensar com, pensar para, pensar para além de: “[o crítico] é alguém que está não na ressonância de uma corrente da sociedade (onde se encontra a multidão) mas num espaço um pouco fora do caminho” (o autor cita aqui Gébé, dizendo que o crítico deve estar “un pas de côté”. Enfim, “o trabalho essencial (da leitura, de análise, de “monstração”) consiste portanto em redimir toda a verdadeira obra de pressupostos ligados ao exercício de uma profissão – de um métier” (p. 258). Rosset alerta para a necessidade de uma permanente libertação da leitura/escrita contra uma esclerose dos discuros, inclusive os académicos.
Esta libertação, bebendo, vampirizando – no melhor sentido, pois beber sangue altera a composição do próprio bebedor, mescla a sua estrutura genética com a da “vítima”, promove um encontro inusitado e profundo e completo – as mais diversas disciplinas, autores, áreas de pensamento e criação não é totalmente um acto inédito, mesmo no campo da banda desenhada – havíamos falado há pouco de Tom McCarthy – mas é um acto ainda assim único, raro e por isso mesmo de um fulgor magnífico e portentoso.
Não sei se me apercebi de tudo o que se passa neste livro. É possível que não. É preciso esperar pela noite. É preciso que a tempestade estale. É preciso que prolifere aquilo que Rosset planta aqui (aqui, no livro, e aqui, em nós).
Este é um post acalorado. não que não sejam os demais, mas neste implica-se melhor o amor à causa.
ResponderEliminare é (também) por existir que cá venho contagiar-me.
É isso mesmo, fiquei afogueado com a leitura deste livro. Uns calores que invectivam a vontade débil e fustigam o cérebro preguiçoso deste vosso escriba. Mostra o "ali" onde se quer ir, mas ainda não se sabe como lá chegar...
ResponderEliminarPedro
Brilhante e sentido texto do escritor Pedro Vieira Moura. Parabéns deste, este sim, mero escriba.
ResponderEliminarBonjour
ResponderEliminarje ne parle pas le portugais, mais j'ai le sentiment que cet article est formidable. J'écris juste pour prendre contact. Je suppose que vous parlez parfaitement le français. J'aimerais bien en parler avec vous. À bientôt? (rosset.chris@orange.fr)